Inércia: rios invisíveis de São Paulo

A cidade de São Paulo como uma das maiores e mais populosas cidades do mundo acumulou ao longo dos anos uma profusão de relações entre o seu território e as pessoas que nele habitam. Ao semear e alimentar interesses, São Paulo tornou-se em pouco tempo um grande centro e ganhou relevância frente ao cenário nacional. Contudo, a metrópole apresenta cada vez mais um distanciamento entre suas camadas sociais, sem contar com o caos frequentemente estabelecido na cidade, seja por meio do trânsito ou dos habituais trasbordamentos, resultado do mau planejamento urbano, que atende aos interesses de poucos em detrimento a saúde da cidade.

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Todo ano São Paulo é castigada pelas suas águas durante os meses chuvosos. Os rios quase que o ano inteiro invisíveis em meio ao concreto e a velocidade das grandes avenidas, mostram-se presentes e reivindicam o seu lugar de pertencimento. Em um curto intervalo de tempo, a paisagem da cidade se transforma e a questão das enchentes é colocada em voga, onde promessas são feitas e pouco é concretizado. O que se percebe durante este período é a valorização da pauta ambiental relacionada às enchentes e à poluição dos rios, porém, o descompasso ambiental gerado no decorrer dos séculos não é exclusivo para entender as problemáticas das águas paulistanas.

Para além da desequilibrada exploração humana referente aos seus recursos naturais, é preciso olhar para a questão através da lente do próprio desenho da cidade e as relações político-sociais atreladas na construção deste território. Em sua tese, “A presença e a ausência dos rios de São Paulo: acumulação primitiva e valorização da água”, o arquiteto José Paulo Neves Gouvêa, discorre sobre este processo que deu origem aos rios que se conhece hoje e investiga a causa do isolamento urbano relacionado as águas em São Paulo. O processo de dominação dos rios paulistanos, intrinsicamente ligado à ocupação territorial de sua várzea e a valorização da acumulação de capital, é leitura central no que diz respeito à água, que antes um bem comum, foi lentamente incorporada ao processo de obtenção de renda de subsistência com o crescimento da cidade, tornando-se parte integrante do modo de produção capitalista nos anos seguintes.

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Cota 724, nível máximo da enchente de 1929. Autoria própria

A dominação das águas e o remodelamento forçado de suas várzeas, deram espaço a urbanização desta grande área, até então destinada a dilatação do rio, e ao aprisionamento das águas em longas e estreitas retas de concreto. Sua ocupação diretamente e, quase que exclusivamente, alinhada aos interesses da classe dominante e detentora do capital, deram forma a projetos urbanos que se desenvolveram sobre o tecido da cidade, provocando consequências nas dinâmicas urbanas até hoje, como os recorrentes trasbordamentos dos rios e a supressão dos mesmos, na qualidade de recurso natural e de um elemento propriamente urbano. 

Os frutos deste processo histórico deram origem a uma relação desmedida entre ocupação humana e natureza, lógica que também exclui os grupos marginalizados, relegados historicamente a áreas mais vulneráveis e periféricas da cidade. O desenho urbano imposto que desconhece os seus rios, é ao mesmo tempo agressivo ao pedestre, evidencia o uso do transporte individual e desconsidera a riqueza de usos possíveis atreladas as águas. Ao dar as costas aos rios, a várzea de São Paulo, com suas grandes avenidas e antigos lotes industriais, estabelecem dinâmicas urbanas voltadas à produção e exploração do trabalho, suprimindo vazios urbanos importantes da vida em comunidade.

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Mapa de 1930 - área da cidade próxima a confluência dos rios Tietê e Pinheiros. Autoria própria

Para Milton Santos o próprio espaço físico é determinante para definir um repertório sobre as relações políticas e sociais. 

O espaço (...) pode ser tratado como um conjunto inseparável de fixos e fluxos. Se a definição dos fixos vem da qualidade e quantidade (ou densidade) técnicas que encerram, a definição dos fluxos deriva de sua qualidade e do seu peso político. Tal oposição é necessária. Ela é, mesmo, indispensável para distinguir entre o processo imediato de produção, cuja definição é técnica, e as outras instâncias: circulação, distribuição, consumo, cuja definição é cada vez mais do domínio político.

Os fixos são econômicos, sociais, culturais, religiosos etc. Eles são, entre outros, pontos de serviço, pontos produtivos, casas de negócio, hospitais, casas de saúde, ambulatórios, escolas, estádios, piscinas e outros lugares de lazer. – Milton Santos apud Gabriel Kogan; A natureza do espaço. EDUSP, 1996.

Em outras palavras, o território urbano ensina como se relacionar e conviver dentro dele mesmo, direta e indiretamente. Esta visão ao mesmo tempo concreta e política sobre o território é característica de sua obra e manifesta-se de modo preciso em cidades como São Paulo.

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Mapa de 2017 - área da cidade próxima a confluência dos rios Tietê e Pinheiros. Autoria própria

A estruturação da cidade passa a desvalorizar por consequência espaços de lazer e esses espaços voltados a celebração do ócio, não tem lugar dentro deste desenho de cidade. Áreas que pertenciam ao futebol de várzea e aos clubes de regatas, agora não passam de memórias arquivadas em fotografias de época. Reconquistar tais territórios significa reorientar a lógica desse sistema já enraizado, que apresenta o capital como protagonista, tornando a cidade mais acolhedora para seus próprios habitantes. 

Ao aspecto estrutural da questão, deve-se somar a carência que São Paulo revela de elementos na paisagem que servem de referência para os seus habitantes, especialmente no que diz respeito aos rios, que se encontram invisíveis ao olhar corrente. Tentativas de captar este olhar são expostas com o objetivo de chamar a atenção ao descaso ao mesmo tempo que se empenham em solucionar a complexa problemática. Trabalhos como do Grupo Metrópole Fluvial, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, tratam do assunto de forma assertiva, porém tem dificuldade em transbordar dos meios acadêmicos e atingir setores administrativos compromissados em lidar a questão de modo incisivo.

Encarar o assunto é fundamental para aflorar a existência do rio, chamar a atenção para a sujeira que o destrói e despertar o imaginário em direção a uma cidade mais convidativa. As águas paulistanas são uma beleza latente em São Paulo e a procura pela criação de um sentimento de pertencimento à vida urbana a partir das águas como elemento aglutinador não é inconcebível e o desafio de ressignificar a ocupação do território permanece.

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Autoria própria

Referências bibliografias
GOUVÊA, José Paulo Neves. A presença e a ausência dos rios de São Paulo: acumulação primitiva e valorização da água. Tese de doutoramento. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2016.
KOGAN, Gabriel. Arquitetura do território. Trabalho de conclusão de curso. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2009.

Este trabalho surgiu da sede em investigar as águas paulistanas. Entre a observação das capivaras teimosas no rio Tietê e os peixes inexistentes do rio Pinheiros, o descuido de São Paulo com suas águas, assim como a própria água, elemento líquido, fluído e instigante, encontraram suas frestas durante o meu percurso e também estão presentes nesse ensaio.

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Sobre este autor
Cita: Conrado Cavani Monteiro. "Inércia: rios invisíveis de São Paulo" 01 Nov 2020. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/950412/inercia-rios-invisiveis-de-sao-paulo> ISSN 0719-8906

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