Pode existir boa arquitetura sem modulação?

Presente na narrativa do Dilúvio no livro do Gênesis, Noé teria construído uma arca após um chamado de Deus, que decidiu inundar e destruir toda a vida na Terra por conta do mau comportamento da Humanidade. Apenas a família de Noé e um casal de cada espécie de animais poderia entrar na enorme embarcação e se salvar. Na bíblia, a arca é descrita com as medidas exatas de 300 côvados de comprimento por 50 de largura e 30 de altura. Esta era uma unidade utilizada na época, baseada no comprimento do antebraço, desde a ponta do dedo médio até o cotovelo. Um holandês que tem se dedicado a construir uma réplica da Arca de Noé, sem sucesso em encontrar um valor correspondente preciso no sistema métrico, utilizou as medidas do seu próprio corpo como o módulo. Modulação na arquitetura quer dizer adaptar o projeto a um módulo definido, geralmente uma medida base ou um material. Seja um metro, um tijolo, um azulejo ou um container, ela serve para facilitar o processo de projeto e torná-lo mais eficiente e sustentável.

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Oficinas E2E / 57STUDIO. Image © Roland Halbe

A empresa dinamarquesa LEGO orgulha-se de que uma peça fabricada no fim dos anos 50 continuará encaixando perfeitamente em outra que acabou de sair da fábrica. Por mais trivial que possa parecer o exemplo de um brinquedo infantil, fazer encaixar e combinar diversos componentes de uma edificação é algo que tem gerado discussões há muito tempo.

Segundo o livro Introdução à coordenação modular da construção no Brasil [1], que apresenta um panorama histórico e os principais conceitos teóricos da Coordenação Modular, na arquitetura grega, a proporção dos elementos equivalia à expressão de beleza e harmonia. O diâmetro da coluna (que nem sempre era o mesmo) era a unidade básica para todas as demais dimensões em um templo. O fuste, os frisos, os capitéis seguiam uma modulação rígida. Já em Roma, medidas antropométricas (baseadas nas dimensões do corpo), com suas divisões e múltiplos, determinavam o tamanho de tijolos, telhas e recipientes de água. Evidentemente, diferenças foram observadas entre as “mesmas medidas” ao longo do enorme território Romano. No Japão, a unidade era o “shaku”, de origem chinesa. Durante a Idade Média, a unidade de medida “ken” (que se convencionou como 6 shaku) evoluiu até se tornar o módulo que regia a estrutura, os materiais e o espaço da arquitetura japonesa. Os tatames, que revestiam os pisos da maioria dos ambientes, tinham a dimensão de 1 por ½ ken (que equivalia à medida de duas pessoas comodamente sentadas ou uma deitada). Isso era o que determinava o espaçamento entre as colunas das construções, evitando que algum tatame precisasse ser recortado.

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Junta em construção tradicional de madeira na China. Image © Han Shuang

Mas considera-se o Palácio de Cristal a primeira aplicação da construção modular. A necessidade de construir muito rapidamente um espaço de 71.500 m², para a primeira exposição internacional industrial no final do século XIX, demandou que toda a construção fosse construída com componentes industrializados, apenas montados no local. O módulo que determinou as dimensões da malha foi o pano de vidro máximo que poderia ser construído na época, com cerca de 8 pés de comprimento. Múltiplos de oito determinaram a localização de todas as peças e a dimensão dos espaços.

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MEETT Toulouse Exhibition and Convention Centre / OMA. Image © Marco Cappelletti

Já no século XX e com um início de industrialização massiva na construção civil, alguns arquitetos, como Walter Gropius, começam a desenvolver protótipos e construções pré-fabricados para aumentar a velocidade das construções e reduzir as perdas. Durante a Segunda Guerra Mundial, prevendo uma demanda por reconstrução rápida na Alemanha, Ernst Neufert escreveu o livro Bauordnungslehre, concebendo um sistema de coordenação octamétrica (100 cm / 8), que baseava-se no módulo de 12,5 cm. Na Alemanha, esse sistema foi amplamente aplicado em produtos da construção, como blocos, lajes, caixilhos e telhas de fibrocimento.

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Tencent Beijing Headquarters / OMA. Image © Ossip van Duivenbode

Le Corbusier, no Modulor, em 1948, desenvolveu estudos para um estudo de proporcionalidade que adequasse medidas antropomórficas às necessárias à produção industrial. Ele fundamentou o Modulor na matemática, utilizando as dimensões estéticas da seção áurea e da série de Fibonacci, e nas proporções do corpo humano através das dimensões funcionais. Pesquisadores, agências governamentais e órgãos competentes, sobretudo a ISO (International Organization for Standardization), acordaram, entre a década de 50 e 60, que a medida do módulo base de 10 centímetros, ou cerca de 4 polegadas, seria adotada pelos países.

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Paris Courthouse / Renzo Piano Building Workshop. Image Cortesia de Renzo Piano Building Workshop
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Paris Courthouse / Renzo Piano Building Workshop. Image © Sergio Grazia

Este histórico muito breve buscou trazer a importância da busca por normatização e coordenação modular entre os materiais, produtos e mesmo entre países. Nos projetos, isso refere-se ao entendimento dos materiais para uma execução da obra com menos resíduos, também prevendo adequações futuras para outras funções. Utilizar o maior número de peças repetidas possível simplificar os processos de fabricação, montagem e acabamentos. Isso não equivale, diretamente, a um projeto monótono ou burocrático. Há projetos altamente inovadores que utilizam largamente a modulação dos materiais. A unidade, chamada de módulo, define as dimensões e proporções dos elementos, estabelecendo uma relações de dependência entre eles e o produto final, que é a edificação.

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MEETT Toulouse Exhibition and Convention Centre / OMA. Image © Marco Cappelletti

Por exemplo, um bloco estrutural de concreto. No Brasil, em norma, o padrão deverá ter 19cm x 19cm x 39 cm. Há também peças com ½ comprimento, para fechar as fiadas. Existe uma tolerância mínima, de milímetros, mas as peças terão medidas muito similares entre si. Considerando as juntas, idealmente você deveria desenhar o projeto utilizando uma grade de 20 cm x 20 cm, que passará pelos eixos entre os blocos. Isso evitará que alguma peça precise ser serrada na obra, que além de aumentar o tempo da mesma, reduzir suas características funcionais, irá tornar o acabamento ruim. A mesma modulação pode acomodar as aberturas, os pisos, chapas de gesso, telhas metálicas, e podem abranger até as gavetas, e por aí vai. Isso não quer dizer que o projeto não poderá conter ângulos, ou quebrar a modulação vez ou outra. Um primeiro passo é entender o material, como são construídos e montados e qual a modulação ideal para cada um deles. Se possível, escolher produtos e materiais que possam ser acomodados nas mesmas grades proporcionará um projeto mais consciente e uma obra muito mais rápida e fácil.

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Prefabricated Country Home / Figurr Architects Colective. Image © David Boyer

Ao contrário do que possa ser o senso comum, as restrições e condicionantes da coordenação modular não comprometem a liberdade ou a criatividade do arquiteto, muito pelo contrário. E se você não for Frank Gehry ou Zaha Hadid, é muito mais provável que seu projeto terá que se adaptar aos produtos de mercado, e não o contrário.

Nota
[1] Greven, Hélio Adão; Baldauf, Alexandra Staudt Follmann. Introdução à coordenação modular da construção no Brasil. UFRGS. Programa de Tecnologia da Habitação Habitare. 2007. Disponível neste link.

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Sobre este autor
Cita: Eduardo Souza. "Pode existir boa arquitetura sem modulação?" 01 Dez 2020. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/951860/pode-existir-boa-arquitetura-sem-modulacao> ISSN 0719-8906

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