Em maio de 2016 abria-se a 15ª Bienal de Arquitetura de Veneza, talvez o evento mais importante e emblemático da arquitetura internacional desde a década de 1980, quando foi criada. Tal abertura trazia, entretanto, uma novidade: pela primeira vez o evento tinha como curador um latino americano – Alejandro Aravena. Esse destaque não seria isolado na carreira recente do arquiteto que fez parte da comissão julgadora do Prêmio Pritzker de 2010 a 2015 sendo laureado no ano de 2016. Desde logo é fundamental perceber que tal destaque não assume caráter de absoluta exceção e pode, de certo modo, ser entendido como a ponta de uma valoração e visibilidade que a arquitetura chilena contemporânea passa a receber a partir de finais da década de 90.
Inicialmente intitulada como “geração dos 90” (TORRENT) pela crítica, a produção contemporânea da arquitetura chilena diz respeito a uma aparição valorativa crescente que pode ser percebida em outros casos de visibilidade que ocorrem desde o início dos anos 90 até os dias de hoje. Como, por exemplo, o prêmio Andrea Palladio pela Casa del Cerro de Undurraga Devés em 1991, o prêmio Borromini que Mathias Klotz recebe em 2001 pela Escola Altamira, o Edifício Manantiales selecionado para ser exibido na exposição "Tall Buildings" do MoMA em Nova York em 2004 como também o Leão de Ouro por Pedro Alonso e Hugo Palmarola na Bienal de Veneza de 2014 (PASTORELLI, 2017).
As revistas especializadas produzidas fora do Chile sobre essa produção possuem uma enorme capacidade de ilustrar o momento de prestígio dessa arquitetura. Dentre 10 arquitetos chilenos entrevistados – sendo todos inseridos no campo e atuantes em contextos distintos – quando questionados sobre o principal meio de difusão da arquitetura chilena, creditaram unanimemente que as revistas especializadas internacionais possuíram um papel central nesse processo de visibilidade.
Com 36 publicações valorosas sobre a arquitetura chilena divulgadas na Espanha, 35 nos Estados Unidos, 34 na Itália etecetera; na cartografia do mapa mundi aqui exposta, fica evidente o quanto a valoração da arquitetura chilena recebeu auxílio de outros países e o quanto os principais países disseminadores são também aqueles com destacável poder econômico e cultural, portanto, aqueles com maior capacidade de disseminação desse conteúdo – Estados Unidos e Europa.
Por conta da importância das revistas especializadas, existe uma pesquisa feita no âmbito da Pontificia Universidad Católica que resultou na publicação do livro El Discurso de la Arquitectura Contemporánea Chilena - Cuatro Debates Fundamentales. Nela foram encontradas publicações sobre a arquitetura chilena em 20 países, totalizando 65 diferentes revistas e 266 exemplares que abordavam essa produção arquitetônica.
Tendo em vista que o processo de valoração da produção recente chilena desde os anos 90 diz respeito a um fenômeno de valoração possivelmente mensurável pelo total de publicações; para analisar criticamente o que é essa arquitetura os números são insuficientes - é necessário ir para a experiência corporal.
Em um esforço de aproximação com a vivência espacial, foi realizada uma viagem a campo para transformar em uma experiência arquitetônica aquilo que era mais teórico. Na pesquisa mencionada foram levantados 89 projetos, porém, apenas 23 foram destacados e ilustrados no livro. Dentre estes 23 foi possível visitar 12 passando por 7 localidades diferentes – Valparaíso, Santiago, Antofagasta, San Pedro de Atacama, Concepción, Coliumo e Pucón nessa ordem.
Na primeira parada, em Valparaíso temos o projeto Hospederia del Errante. Ele chama a atenção por não ser minimalista, não é uma estética moderna. Vendo a construção na paisagem, como outros projetos, a cor branca cria um contraste visual com a vegetação escura ao seu redor. Não se tratam de formas simples ou de ângulos retos, mas a materialidade é única – tudo de concreto com pintura branca. Porém, ao analisar a parte interior do projeto salta aos olhos a quantidade de informações ali presentes. Muitas materialidades distintas, com cores diversas e poucos alinhamentos e sem gerar ruído; a composição é harmônica e a espacialidade aconchegante.
O Parque Cultural Valparaíso, explicitamente na mesma localidade, traz um diálogo poético com o preexistente por meio da espacialidade criada. O desafio projetual era de transformar uma ex-penitenciária e seu entorno em um espaço de cultura e encontro; programas muito diferentes que se desdobram em espacialidade também diversas. Como resposta ao desafio, o projeto além de propor uma construção nova também gerou uma nova espacialidade à ex-penitenciária. A construção antiga, fazendo jus ao seu novo uso, saiu de um espaço estreito com pouca luz para um grande espaço com pé-direito triplo e luminosidade efetiva ao manter apenas a fachada e suas janelas com novos usos internos mais espaçosos e, portanto, favoráveis ao encontro.
Em Santiago o Edifício Manantiales chama a atenção pela estrutura exposta na parte exterior do edifício. O projeto, que esteve presente na exposição "Tall Buildings" do MoMA (2004), possui um desenho estrutural concebido para vencer os esforços de torção diante de terremotos que são frequentes no Chile.
Ainda na capital chilena o projeto Centro Cultural Palacio la Moneda e o Centro Cultural Gabriela Mistral possuem um contexto histórico entrelaçado de certa maneira. O Palacio de la Moneda em 1973, enquanto sede do governo, foi bombardeado junto à articulação do golpe de estado para a implantação da ditadura civil-militar. O golpe punha fim ao governo de esquerda de Salvador Allende e simbolicamente, transformou em nova sede do governo o edifício Diego Portales (que hoje abriga o Centro Cultural Gabriela Mistral). Tratava-se da arquitetura que representava um marco da modernidade chilena durante o governo de Allende, pois sua construção se deu em 275 dias no ano de 1972 para hospedar a UNCTAD III.
No início dos anos 2000 os dois projetos foram transformados em centros culturais simbolicamente. Hoje o Palacio de la Moneda é a atual sede do governo e o Centro Cultural Palacio la Moneda é um projeto que se insere na parte subterrânea em frente ao palácio. A fruição e conexão com a rua em rampas nessa localização trazem a esse centro cultural uma espacialidade simbólica – mantêm a visual da sede do governo ao mesmo tempo que aproxima as pessoas dessa edificação. Uma construção que pode se aproximar de um manifesto político em prol da cidadania pela sua própria arquitetura.
O edifício Diego Portales ao se transformar em Centro Cultural Gabriela Mistral mudou sua inserção no tecido urbano por meio da gradação entre espaços francamente abertos, semi-fechados mas ainda abertos ao olhar pelo uso do vidro ou do aço corten vazado, e aqueles escondidos que se fecham como prerrogativa para atender usos específicos. Em seu entorno o projeto atrai atenção pelo contraste visual do aço corten em relação a outras materialidades e inclusive o concreto do próprio projeto, mas também pela livre ocupação do espaço fortemente perceptível pelo intenso fluxo de pessoas que ali circulam com destaque para a apropriação enquanto espaço de dança que ocorre majoritariamente no centro cultural, mas também em quadras no entorno da construção.
O último projeto visitado em Santiago, o Museu de la Memoria y los Derechos Humanos, também se associa a uma memória histórica relacionada à ditadura, mas não enquanto preexistência e sim enquanto uso proposto em nova construção – um museu construído para memorar o sofrimento do período ditatorial. A materialidade da fachada também chama a atenção pelo contraste com o entorno inclusive do próprio projeto em concreto. A chapa metálica com uma coloração entre o azul e o verde possui um caráter translúcido que dialoga com a cidade. Durante o dia esconde o interior e de noite mostra-se iluminando sutilmente a cidade.
Saindo da Região Metropolitana em direção ao norte do Chile e, mais especificamente, direcionando-se ao Deserto do Atacama a segunda parada ocorre em Antofagasta. O percurso de mais de 12 horas no ônibus pode aparentar cansativo, mas pode ser uma oportunidade para apreciar a paisagem no final do percurso ao despertar pela manhã. Na janela a estética seca da terra cria contrastes entre o marrom avermelhado do solo e o céu homogeneamente azul. O único projeto aí visitado trata-se do Museo del Desierto de Atacama que trouxe fortemente um diálogo com a paisagem que se manteve presente em praticamente todos os próximos projetos visitados.
Esse museu, enquanto uso, se propõe a expor o Deserto do Atacama do ponto de vista geológico e econômico, mas a arquitetura cumpre o papel de mostrá-lo paisagisticamente. A localização do projeto se dá em frente às Ruinas de Huanchagua – um estabelecimento industrial de 1888 destinado a fundição de prata cuja estética se mescla ao deserto por sua materialidade quase terrosa e também por sua aparência de ruína. A materialidade de concreto no museu mostra um primeiro elemento que auxilia na sensação de continuidade entre o museu e as ruínas. Além disso a volumetria proposta tira proveito do desnível no terreno para estabelecer diálogos que valorizam a preexistência das ruínas enquadrando-a ou mesclando-se a ela.
De Antofagasta para San Pedro de Atacama o percurso de ônibus dura também algumas horas, mas a paisagem continua igualmente atraente. O primeiro projeto visitado aqui foi o Hotel Explora Atacama que expõe a relação com a paisagem por meio de enquadramentos, mas também por meio de cores e adicionalmente possui um design interno aconchegante – com muitos mobiliários e iluminação (naturais ou artificiais) precisamente posicionados.
Localizado em um terreno privilegiado o hotel possui constantes enquadramentos da topografia acentuada com o céu saturadamente azul. Além disso, a construção em madeira amarelada cria um diálogo cromático com a vegetação natural com flores da mesma cor.
Hotel Explora Atacama. Fotografia e produção gráfica por Stela Mori Neri
O projeto Hotel & Spa Tierra Atacama é mais um hotel no Deserto do Atacama onde a arquitetura e a paisagem caminham juntos. Porém nesse caso, há um estímulo à introspecção nos espaços por meio de vegetações próximas criando uma primeira camada que antecede o horizonte. Além disso muitos usos e suas respectivas construções ficam isoladas e possuem capacidade para um número muito restrito de pessoas – onde restam a solitude do corpo e a paisagem árida do deserto.
Hotel & Spa Tierra Atacama. Fotografia e produção gráfica por Stela Mori Neri
De San Pedro de Atacama à Concepción, o trajeto que leva do norte ao sul do Chile mesmo de avião dura algumas horas. O clima mudou fortemente, o céu agora não era mais tão azulado e novamente voltava-se para uma cidade grande. O único projeto aqui visitado foi a Biblioteca Central Universidad de Bío-Bío localizado em um grande centro universitário aberto e conectado com a cidade. Dentre outros projetos ali que também chamam atenção, a biblioteca com sua estética externa de madeira escura parece aconchegante, mas a parte mais convidativa é justamente uma escala iluminada pela área de leitura interna onde é possível subir e visualizar toda a construção por dentro sem propriamente entrar.
A pouco mais de uma hora de distância de Concepción é possível ir a Coliumo de ônibus e voltar no mesmo dia apenas para visitar a Casa Poli. Um trajeto nada turístico pois a localização é desconhecida pela população no geral, mas cujos moradores locais usufruem do entorno pela beleza do projeto e da paisagem do mesmo. Chegando em frente ao projeto parecia algo como uma propriedade privada pois tinha uma espécie de cerca, mas existia um pequeno trecho sem cerca onde os moradores passavam sendo que alguns levavam inclusive alimentos para piquenique. A localização privilegiada do projeto, que hoje é uma residência artística, do alto da colina, cria um visual de tirar o fôlego e que é inserido junto ao projeto seja por meio da materialidade – o concreto que dialoga com as pedras ao redor – ou os enquadramentos internos que tornam a paisagem onipresente internamente.
A última localidade dessa viagem teve parada em Pucon cujo único projeto visitado trata-se das Termas Geométricas – um local turístico com águas de banho aquecidas por atividades vulcânicas cuja temperatura pode chegar a 45 graus. A experiência corporal parecia desafiante; em um clima de 6° os banhistas se sentiam perfeitamente confortáveis com roupas de banho molhadas e o que explicava isso era justamente o tempo que o corpo leva na perda de calor. Passado o primeiro desafio restava apenas contemplar a arquitetura. Um percurso todo em madeira tingida de vermelho que criava um contraste cromático forte com sua cor complementar; o verde da vegetação. Mesmo com a fumaça saindo da água ainda assim o contraste era visível e atraente.
Em suma, um ótimo projeto para sintetizar algumas vivências corporais marcantes nesse pequeno trajeto do norte ao centro-sul do Chile com materialidades marcantes, arquitetura valorando a relação com a paisagem e jogos cromáticos que criam diálogos visuais contemplativos.
O ensaio e a viagem exposta são fruto da iniciação científica com bolsa FAPESP “Campo Arquitetônico Chileno em Análise: as Políticas de fomento à Arquitetura do Consejo Nacional de Cultura y las Artes do Chile e a geração dos 90” com orientação da professora Dra. Marianna Al Assal.
Referências bibliográficas
ADRIÀ, Miquel (ed.). Blanca Montaña, Arquitecture in Chile. Santiago: Puro Chile, 2013.
CNCA. Consejo Nacional de la Cultura y las Artes. Política de Fomento de la Arquitectura. Valparaíso: CNCA, 2017.
MONDRAGÓN, Hugo et al. El Discurso de la Arquitectura Chilena Contemporánea: cuatro debates fundamentales. Santiago: Ediciones ARQ, 2017.
MORI NERI, Stela. Campo Arquitetônico Chileno: a Construção de uma Imagem a partir dos anos 90. 2019. Trabalho de Conclusão de Curso - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Escola da Cidade, São Paulo.
PASTORELLI, Giuliano. Arquitetura Contemporânea Chilena: Cronologia de Sucessos. Produção do curso de pós-graduação Geografia, Cidade e Arquitetura. Coordenação da Escola da Cidade Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. São Paulo, 2017.
TORRENT, Horácio. Arquitectura Reciente en Chile: las lógicas del proyecto. Revista ARQ, Santiago, 2000.