Kenneth Frampton, importante crítico arquitetônico, caracteriza um conjunto de obras do século XIX como sendo da “Nova Tradição”: com sua origem situada entre 1900 e 1914, como “um estilo historicista conscientemente modernizado” (1997, p. 255). Propõe esses edifícios como resposta a dois significativos eventos históricos: por um lado, o incipiente modernismo Europeu, tendendo à estética da máquina, ao funcionalismo, à abstração formal; por outro, a consolidação de Estados nacionais que ocorria neste mesmo continente.
É o caso de diversos países nesse período: a Alemanha com a ascensão do Nazismo, a Itália com o Fascismo, a União Soviética, o governo inglês na Índia, etc. São regimes que estão se estabelecendo, e, assim como a história mostra repetidas vezes, a arquitetura serve como meio de representação de poder e ideologia do Estado. Mas, a “tendência modernista a reduzir a forma à abstração fez disso uma maneira insatisfatória de representar o poder” (Frampton 1997, p. 255). Essas nações nascentes buscaram então uma linguagem adequada a expressar seu poder de Estado moderno sem a imprecisão interpretativa da abstração formal, o que em parte explica a sobrevida de “abordagens historicistas na construção” (Frampton 1997, p. 255).
A arquitetura, por sua vez, mostra-se linguagem particularmente adequada a isto: enquanto herança do passado, é documento-monumento; simultaneamente, por seu caráter de construção simbólica do presente, propõe novas construções para o imaginário coletivo (Mello 2020, p. 600-601). Ou seja, a “Nova-Tradição” busca no passado a forma adequada de projetar um presente e um futuro para o Estado e aqueles que o compõe. A Finlândia é uma dessas nações nascentes.
No final do século XIX e começo do século XX, a Finlândia está imersa na criação de uma identidade nacional para esse novo Estado autônomo. A despeito de permanecer um Grão Ducado russo até a independência oficial com a Revolução Bolchevique de 1917, o sentimento nacionalista no período está em ascensão. Como sintetizou A. J. Lagus, professor de Filosofia da Universidade de Turku: “suecos não somos, russos nunca seremos, então sejamos finlandeses” (Lavery 2006, p. 56). Não mais parte do reino Sueco, e com certa independência, na prática, do czarismo russo, o sentimento nacionalista finlandês começa a se moldar.
Isso envolveu diversas medidas, como o direito a um parlamento independente, a consolidação do finlandês como língua oficial ensinado nas escolas, a criação de uma moeda nacional etc. A Kalevala, um poema épico de tradição oral, foi o “foco do revivalismo nacionalista cultural finlandês na literatura, artes visuais e música” (Davies 2017, p. 37). Todavia, este poema influenciou a arquitetura Nacional Romântica apenas indiretamente. A nova arquitetura finlandesa se embasou na “tradição de construção vernacular baseada em edifícios simples em madeira”, mas estava “extraordinariamente aberta a influências do exterior” (Davies 2017, p. 37), com a pequena e unida comunidade de arquitetos finlandeses certamente familiarizados com o Art Nouveau/Jugendstil, e os desenvolvimentos do aço e concreto.
Observa-se esse grande esforço da criação de uma nova arquitetura sintetizado em vários edifícios do período, tais quais: A catedral de São João em Tampere (1899), o pavilhão finlandês para a exposição universal de Paris de 1900, o Museu Nacional Finlandês em Helsinque (1916) etc. Mais relevante para o trabalho, em 1904, Eliel Saarinen projeta a Estação Central de Helsinque.
Obra e cidade - Estação Central de Helsinque, Helsinque, Finlândia
No século XIX, a estação ferroviária era uma novidade no mundo. Pevsner afirma que a primeira estação ferroviária de função moderna – ou seja, com motor a vapor puxando vagões sobre trilhos – é inaugurada em setembro de 1830, conectando Liverpool a Manchester, no Reino Unido (1979, p. 225). É ilustrativa a reação de Fanny Kemble – atriz, parte de uma famosa família de atores ingleses - ao experienciar a novidade: “‘Conto de fadas algum chegou a ser metade da maravilha’ e ‘quando fechava meus olhos, a sensação de estar voando era... estranha além de descrição’” (Pevsner 1979, p. 225); a estação ferroviária era uma maravilha tecnológica do mundo moderno, e havia de ser desenvolvida como tal. Inclusive, por não o fazer inicialmente, o primeiro projeto de Saarinen para a estação (1904) foi alvo de críticas.
Esse se “conformava à norma do gótico pitoresco, incluindo uma torre e pináculo” (Davies 2016, p. 37). Com esse projeto, Saarinen foi acusado - como sintetizou seu rival Sigurd Frosterus - de “recusar ‘nosso estilo finlandês moderno’ por um ‘romantismo acéfalo’” (Davies 2017, p. 38). Saarinen reelabora o projeto, chegando a um produto final que, segundo Ringbom, é de um estilo mais “‘racional’ ou ‘contido’ que aquele do Nacional Romanticismo” (Selonen et al. 2016, p. 8), mas sem abrir mão de um resgate de elementos da cultura finlandesa e da influência Art Nouveau. Pevsner, na mesma linha, afirma que o edifício se insere dentre os exemplos do “estilo moderno”, enfatizando seu plano “ousado”, com a torre posicionado fora do eixo de simetria, e suas formas “ainda mais ousadas”, enfatizando ser um projeto de clara influência da Secessão de Viena (1979, p. 232) - esse último movimento sendo em geral agrupado sob os art-nouveaus europeus, ou como descendente do arts and crafts britânico (Conroy 1979); ou seja, a estação constitui uma arquitetura reativa ao academicismo beaux-art, eclética e de aspirações modernas. Essa inaugura em 1919, e segue sendo um dos grandes feitos dessa busca, ou diálogo, formal entre a tradição e a vontade de ser moderno.
Pode-se observar isso nas imagens ao lado: A planta ameaça simetria axial a partir da entrada principal, todavia, a ala leste introduz uma tensão com sua assimetria, se estendendo mais que a oeste, e se ramificando; a posição da torre enfatiza essa assimetria. Os guardiões da entrada também evidenciam o diálogo: grandes estátuas de figuras míticas, em eterna vigília, iluminado a praça, oriundas da mitologia nacional, mas representadas não ao realismo classista, mas “otimizadas”, limpas da maioria dos detalhes de modo a configurarem hermas. Na foto interna também vê-se o embate: observamos pilastras e arcos sem adornos, mas ao mesmo tempo trabalhados de forma escultural, como os sucessivos recuos; o mesmo vale para as concavidades esféricas no teto: assim como as pilastras e arcos, servem função estrutural (diminuir o peso do telhado, no caso das concavidades), mas, sua expressividade não se dá plenamente pela exposição clara, didática, da estrutura, mas sim através do tratamento escultural dessa.
Por fim, a influência da Secessão de Viena parece evidente, especialmente justapondo a Karlsplatz de Otto Wagner à estação de Saarinen: a primeira parece um recorte feito em ferro da segunda, e exibe todas as tensões antes mencionadas – apesar de poder se tratar de uma coincidência formal: a luneta e o galpão constituem um arquétipo, um símbolo da estação de trem, muito repetido na história (Pevsner 1979, p. 228- 232). Feita essa breve exposição, podemos afirmar que como objeto arquitetônico, a estação de Saarinen reflete seu contexto histórico. Por se tratar de arquitetura estatal (construída pela à época pelas Ferrovias Estatais Finlandesas, hoje grupo VR – ainda do Estado), que sua implantação também seja simbólica. É o que se verá a seguir.
O edifício de Saarinen tem uma implantação não só pragmática - o melhor local para uma ferrovia - mas também representativa. Conforma uma praça delimitada por sua fachada leste, junto do Teatro Nacional Finlandês, e um dos edifícios da Galeria Nacional Finlandesa (Ateneum); e, em sua fachada oeste, com o Prédio dos Correios e outro edifício da Galeria Nacional Finlandesa (Kiasma). Algumas quadras ao sudeste, observa-se a Universidade de Helsinque, a prefeitura, a Catedral de Helsinque – também delimitando uma praça. A noroeste, o Parlamento também se encontra a curta distância. Todos estão conectados através de vias arteriais. Chegando, saindo ou atravessando Helsinque, de carro ou trem, esses locais tornam-se ponto de convergência de tráfego, e assim, local privilegiado para o ver, e consequentemente, à representação do Estado.
Figura-se então um eixo monumental em Helsinque, onde a estação, quer pela importância da função ou pelo tamanho oceânico, é figura central. Ou seja, em sua interação com a metrópole, a obra de Saarinen, junto do resto dos edifícios oficiais, criam espaços, praças, oficiais, civis: São, por excelência, o espaço do público e da democracia. Circunscritos por programas desse tipo, tornam-se espaço da cultura finlandesa, do que é ser Finlandês. Temos nesses espaços vazios metropolitanos destituídos de qualquer obstáculo: ponto privilegiado para se ver, literalmente, a grandeza econômica, política e cultural desse Estado.
A Estação Ferroviária Central de Helsinque de Saarinen – como objeto arquitetônico e como implantação urbana - cristaliza uma Finlândia e o que se esperava que fosse um finlandês.
Referências bibliográficas
CONROY, Sarah Booth. Secession. Washington Post, 1979. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/archive/lifestyle/1979/01/14/secession/f2846362-5dd6-4d4f-b183-0dce330171a9/. Acesso em 31/10/2020 às 15:05.
DAVIES, Colin. National Romanticism, the new tradition and the beaux-arts 1893 -1923. In_____. A New History of Modern Architecture. London: Laurence King Publishing Ltd, 2017. p. 36-49
FRAMPTON, Kenneth. Arquitetura e Estado: ideologia e representação 1914-43. In____. História Crítica da Arquitetura Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 255- 270.
LAVERY, Jason. The Creation of Autonomous Finland (1809 - 1890). In_____. The History of Finland. London: Green Wood Press, 2006. p. 51-70.
MELLO, Joana. A construção do nacional: Ricardo Severo e a Campanha de Arte Tradicional. Varia Historia, Belo Horizonte, v. 35, ed. 68, p. 527-629, mai/ago. 2020.
PEVSNER, Nikolaus. Railway Stations. in____. A History of Building Types. Princeton: Princeton University Press, 1979. p. 225-234.