O ano de 2020 provavelmente será difícil de esquecer, um ano onde tudo parece ter virado de cabeça para baixo, transformando nossas rotinas e a maneira como nos relacionamos com as outras pessoas e com os espaços construídos. A atual crise sanitária mundial trouxe à tona uma série de especulações sobre como será a nossa vida no futuro. Neste momento de encerramento e recomeço, percebemos cada vez mais que a pandemia foi responsável por acelerar algumas das tendências que já se desenhavam no campo da arquitetura e mais do que isso, questionando muitas ideias já bem estabelecidas.
O cabalístico ano de 2020 será lembrado como um importante marco para a arquitetura, provocando repercussões significativas na forma como abordamos os nossos projetos de edifícios e espaços no futuro. Durante os longos meses de lockdown e as consequentes restrições impostas nos raros momentos de “abertura”, os empreendimentos de uso misto foram aqueles que melhor se adaptaram a esta nova situação. Por outro lado, as críticas sobre edifícios de escritórios em planta livre foram intensificadas com muitos arquitetos e arquitetas questionando se a pandemia será responsável pelo fim da demanda por micro-apartamentos nos centros urbanos das grandes cidades. Conviver com uma crise sanitária mundial também nos fez perceber novas possibilidades para o futuro da arquitetura nos próximos anos.
Adaptabilidade na Vanguarda da Arquitetura
Ao longo das últimas décadas, a adaptabilidade tem se firmado como uma forte tendência na arquitetura, uma vez que os profissionais da construção civil perceberam que a durabilidade da arquitetura no século XXI está diretamente conectada a continuidade de seu uso e função. O ano de 2020 apenas reforçou a importância da flexibilidade espacial para a perseverança de um edifício, estruturas capazes de acomodar uma ampla variedade de cenários imprevistos e imprevisíveis tendem a subsistir com mais facilidade. Como Elizabeth Diller, arquiteta fundadora do escritório Diller Scofidio + Renfro, disse em uma recente entrevista publicada pelo Washington Post que “o conceito de flexibilidade representa o caminho que nosso escritório de arquitetura pretende seguir. Não se trata apenas de uma resposta ao vírus; e sim de nos adaptarmos a uma mudança de velocidade em nossa sociedade”, enfatizando ainda que “a adaptabilidade às mudanças econômicas, ambientais e políticas é fundamental para que a nossa disciplina mantenha-se relevante, vibrante e conectada com tudo aquilo que está acontecendo à nossa volta”.
A Proliferação de Empreendimentos de Uso Misto
Muitos empreendedores já estavam priorizando projetos de uso misto antes mesmo do início da pandemia, estruturas autônomas e praticamente auto-suficientes dentro da malha urbana de uma cidade. Ainda assim, a atual cenário pandêmico parece ter encorajado ainda mais esta ideia. “De fato, estamos observando que as nossas intenções de planejamento, que foram tomadas ainda antes do início da pandemia, parecem perfeitamente alinhadas com o atual cenário mundial e, agora mais do que nunca, nossos estudos de caso estão provando seu valor”, disse Stephen Coulston, diretor da Perkins and Will, que está prevendo um significativo aumento na construção de edifícios de uso misto no futuro próximo. A proposta de Vicente Guallart para uma comunidade autossuficiente na China não apenas vem ao encontro dessa tendência, mas a leva um passo adiante. O proposta de Guallart procura definir uma nova tipologia urbana, a qual se alimenta da experiência vivida ao longo da pandemia, criando um programa altamente diversificado, composto por sistemas de produção de energia e alimentos, fazendo com que a sua proposta se pareça mais com uma espécie de ecossistema autossuficiente. “Não podemos continuar projetando cidades e edifícios como se nada tivesse acontecido”, disse Vicente Guallart, autor da proposta vencedora do concurso internacional de arquitetura para a comunidade autossuficiente na China, para ele, o lockdown foi uma espécie de motivação extra para trabalhar e “desenvolver projetos que possam melhorar nossas vidas no futuro próximo”.
Relações de Vizinhança
Este conceito se encontra no âmago do planejamento urbano sustentável e significa ter todas as comodidades necessárias ao alcance de uma caminhada rápida, um passeio de bicicleta ou através do transporte público. Estratégias de relações de vizinhança procuram descentralizar a economia local, fazendo com que cada bairro seja mais diverso e autossuficiente, disponibilizando postos trabalho, edifícios de escritórios, espaços públicos, áreas verdes e obviamente, moradia e habitação social. O conceito, que surgiu ainda no início do século XX, voltou com tudo em 2019, quando a prefeita de Paris, Anne Hidalgo, levantou a bandeira das relações de vizinhança da chamada “cidade de 15 minutos” ou la ville du quart d'heure. Seguindo este exemplo, várias cidades ao redor do mundo passaram a incluir a ideia em suas estratégias de recuperação pós-pandemia.
Novos critérios espaciais para habitação
E experiência do ano de 2020 provavelmente trará mudanças significativas em relação à habitação, especialmente em cidades densamente povoadas, onde o isolamento e o distanciamento social somados à necessidade de trabalhar desde casa por um longo período de tempo trouxeram à luz uma série de deficiências dos nossos espaços domésticos. A concentração demográfica e a escassez de moradias nas grandes cidades não desaparecerão do dia para a noite, nem mesmo a pandemia será capaz de “resolver este problema”. No entanto, a experiência deste ano, sem dúvida, fez com que muitos dos moradores das grandes cidades repensassem suas prioridades, provocando uma mudança de direção naquilo que os usuários esperam de um edifício de moradia ideal. Tentando prever as consequências disso para o futuro, é muito provável que os novos edifícios habitacionais sejam estruturas mais flexíveis, incluindo a possibilidade de ajustes e rearranjos segundo diferentes funções. Muitos dos projetos em desenvolvimento hoje já procuram oferecer áreas externas variadas e espaços de trabalho mais adequados.
Escritórios de Planta Livre em Crise
A lógica dos espaços de trabalho já estavam mudando antes mesmo do início da pandemia, com estudos mostrando que escritórios e plano aberto ou planta livre provocavam possíveis efeitos negativos na saúde mental e na produtividade dos seu usuários. Ao longo do ano de 2020, o futuro dos edifícios de escritório foi muito debatido e seriamente especulado. Neste sentido, acredita-se que a flexibilidade e adaptabilidade dos espaços de trabalho seja algo inevitável além de amplamente aceito. Pesquisas desenvolvidas logo após o fim do primeiro lockdown revelam que até um 40% dos trabalhadores prefeririam trabalhar de casa pelo menos por 40% do tempo. Consequentemente, isso afetará a maneira como a maioria das grandes e médias empresas operam, resultando em uma conseguinte mudança em seus espaços de trabalho. Compartilhamento de espaço e rotatividade parecem surgir como medidas unânimes, transformando os escritórios em áreas de trabalho colaborativo sendo que a maioria das tarefas passará a ser realizada remotamente, abrindo as portas para uma flexibilização do ambiente de trabalho em uma escala nunca antes vista. Seguindo esta linha de pensamento, a Carlo Ratti Associati desenvolveu recentemente um projeto piloto para o Open Innovation Center do Grupo Sella, enfatizando o compartilhamento de atividades e espaços no ambiente de trabalho do futuro.
Uma Nova Era Para os Museus
Infelizmente, o ano de 2020 representou um enorme desafio para a grande maioria das instituições culturais ao redor do mundo sendo que muitos museus tiveram que adiar sua programação e repensar a maneira como lidam com seus espaços existentes. A pandemia levou arquitetos e administradores a repensar a forma como concebemos e operamos os espaços museais, envolvendo desde rotas de acesso e circulação para reduzir filas e tempos de espera assim como a própria organização dos espaços expositivos. Entretanto, enquanto o turismo permanece em um semi-estado de espera, muitos museus e instituições culturais similares precisarão ajustar seus programas, horários e atividades. Desde drásticas reduções no número de visitantes, rearranjo dos sistemas de circulação e número máximo de visitantes por sala, a pandemia terá efeitos duradouros e decisivos sobre esta tipologia.
Esta lista não é de forma alguma exaustiva e nem pretende abranger todas as frentes na qual a pandemia está provocando profundas transformações, seja de projeto ou operação. A crise sanitária de 2020 pode ter marcado o início de uma nova era, transformando a pandemia em uma espécie de catalisador da inovação na disciplina e na prática da arquitetura para o futuro próximo.
Este artigo faz parte do Tópico do ArchDaily: Resumo do Ano de 2020. Todos os meses exploramos um tópico em profundidade por meio de artigos, entrevistas, notícias e projetos. Saiba mais sobre nossos tópicos mensais. Como sempre, no ArchDaily agradecemos as contribuições de nossos leitores; se você deseja enviar um artigo ou projeto, entre em contato conosco.