A promoção da casa própria como uma estratégia de investimento é uma proposta arriscada. Nenhum consultor financeiro recomendaria contrair dívidas para aplicar uma parte tão grande de suas economias em um único ativo financeiro, qualquer que seja, por ser uma grande concentração de risco.
Pior ainda, esse risco não é aleatório: ele recai mais pesadamente sobre os compradores de baixa renda, que recebem condições de financiamento piores e cujos bairros são sistematicamente mais propensos a ter valores residenciais mais baixos ou mesmo em queda, causando resultados devastadores sobre a diferença de riqueza entre grupos raciais.
Mas vamos deixar tudo isso de lado por um momento. E se a habitação fosse uma aposta imperdível de baixo risco para aumentar riqueza pessoal? Como seria esse mundo?
Bem, para que sua casa ofereça lucro real, seu preço precisa aumentar mais rápido do que a taxa de inflação. Vamos escolher algo decente, mas não muito louco — digamos, aumentos anuais de 2,5%, levando em consideração a inflação. Portanto, se você comprou uma casa por US $200.000 e a vendeu dez anos depois, terá um lucro considerável de pouco mais de US $56.000.
Parece bom? Bem, e se eu lhe dissesse que essa cidade existe? E se eu te dissesse que fica em um belo cenário natural, com colinas e vista para o oceano? E com uma economia em expansão? E muitos produtos orgânicos?
Talvez você já tenha adivinhado: o país das maravilhas dos preços cada vez maiores de moradias é São Francisco. Quando o pesquisador Eric Fischer montou um banco de dados dos preços de aluguel da cidade, ele descobriu que os aluguéis vinham crescendo cerca de 2,5%, líquido de inflação ao ano, por cerca de 60 anos. E esses dados da Zillow sugerem que os preços das casas ocupadas pelo proprietário em São Francisco também aumentaram pouco mais de 2,5% ao ano desde 1980.
Como eu disse, em dez anos, isso dá um lucro de pouco mais de 25%. Mas os juros compostos são uma coisa incrível, e quanto mais tempo durar essa construção consistente de riqueza, mais fora de controle ficam os preços das moradias. Em 1980, o índice de preços de residências da Zillow em comparação aos preços de residências em São Francisco era de cerca de US $310.000 (em dólares de 2015). Em 2015, após 35 anos de crescimento médio de 2,5%, os preços das residências estavam acima de US $750.000.
Agora, se você só se importasse com a construção de riqueza, esta seria uma notícia fantástica. O sistema funciona! (Embora, na verdade, até mesmo este cenário cor de rosa tenha problemas: os preços dos imóveis em São Francisco sofreram enormemente, embora brevemente, durante a crise do final dos anos 2000, e se você comprasse em meados dos anos 2000 e tivesse que vender, digamos, em 2010, você teria sofrido uma perda enorme.)
Mas esse tipo de construção de riqueza baseia-se em um fluxo interminável de novas pessoas que estão dispostas e são capazes de pagar aos proprietários atuais quantias cada vez mais absurdas de dinheiro por suas casas. Em outras palavras, é uma transferência inicial massiva de riqueza de pessoas mais jovens para pessoas mais velhas, com a promessa implícita de que quando esses jovens envelhecerem, haverá novos jovens dispostos a lhes dar ainda mais dinheiro. E, claro, conforme os preços sobem, os únicos jovens capazes de comprar esse esquema de pirâmide são também bastante abastados. E porque não estamos falando de ações, mas de casas, “comprar neste esquema de pirâmide” significa “poder viver em São Francisco”.
Em outras palavras, possivelmente a única coisa pior do que um mundo em que a casa própria não funciona como uma ferramenta de construção de riqueza é um mundo em que ela funciona como uma ferramenta de construção de riqueza.
Isso também significa que os dois pilares declarados da política habitacional norte-americana — propriedade como construção de riqueza e acessibilidade habitacional — estão fundamentalmente em desacordo. A política habitacional americana basicamente resolve essa contradição silenciosamente, afinal de contas, ela realmente não se importa muito com a acessibilidade. Enquanto os fundos para moradias subsidiadas de baixa renda definham, grandes quantidades de dinheiro são reservadas para promover a propriedade por meio de subsídios como dedução de juros de hipotecas e isenção de ganhos de capital, a maioria dos quais vai para famílias de classe média alta ou alta.
Mas mesmo os mercados com grandes quantidades de moradias populares demonstram a contradição. Desde pelo menos a segunda metade do século 20, a grande maioria das moradias realmente acessíveis foram criadas por meio de “filtragem”: isto é, a queda dos preços relativos das moradias a preços de mercado à medida que envelhecem ou sua vizinhança perde status social, muitas vezes como resultado de mudanças raciais. A acessibilidade econômica à baixa renda, onde existe, baseia-se em grandes parcelas do mercado imobiliário que performaram como investimentos terríveis.
E mesmo se pessoas de baixa renda encontrarem uma unidade habitacional subsidiada ou com preço controlado, isso significa que não construirão nenhuma riqueza, mesmo enquanto seus vizinhos mais ricos tem suas unidades de mercado sendo valorizadas, aumentando a desigualdade de riqueza.
Até mesmo o Community Land Trust (CLT), ou fundos fundiários comunitários, que parece ser uma forma de fechar o círculo entre construção de riqueza e promoção da acessibilidade, acaba falhando. Os fundos comunitários normalmente oferecem oportunidades de propriedade com preços subsidiados ou reduzidos para os compradores iniciais e garantem acessibilidade de longo prazo ao limitar o preço de revenda da casa. Em outras palavras, as casas financiadas por CLT permanecem acessíveis apenas porque restringem quanta riqueza para construção os proprietários iniciais têm permissão para captar. O resultado é que as casas financiadas por CLT atraem apenas aqueles que não poderiam comprar uma casa de outra forma — o que significa que as pessoas de baixa renda nos CLTs estarão construindo riqueza mais lentamente do que as pessoas de renda mais alta em moradias de preço de mercado, uma desigualdade fundamental agravando a situação.
Dizemos que queremos que a habitação seja barata e que a aquisição de uma casa própria seja um excelente investimento financeiro. Até que percebamos que esses dois objetivos são mutuamente exclusivos, continuaremos a ser frustrados por políticas habitacionais falidas e muitas vezes contraproducentes.
Artigo publicado originalmente em City Observatory em 30 de outubro de 2018. Traduzido por Marcella Cutrim Fernandes de Souza. Via Caos Planejado.