Em vidas passadas eu fiz um mestrado em semiótica e aprendi a prestar atenção nas palavras que escolhemos. Por exemplo, abra qualquer livro de arquitetura brasileira e você lerá alguns subtítulos que ajudam a organizar cronologicamente nosso espaço construído: Arquitetura Indígena, Arquitetura do Brasil Colônia, Arquitetura do Brasil Imperial, Arquitetura Moderna Brasileira, Arquitetura Contemporânea no Brasil. Notaram a sutil diferença, a palavra Brasil que dá nome a esta terra aparece em todos os períodos pós colonização mas não naquele que é justamente o modo de construir original deste lugar.
Não sei se faz sentido falar de uma Arquitetura Indígena Brasileira. Suspeito que ao juntar estas palavras caímos em contradição pois Brasil é o nome dado a uma empresa colonial construída para negar tudo que havia aqui antes. Além do mais, os habitantes originais desta terra são muitos: Tupi, Guarani, Tupinambá, Caeté, Potiguara, Xavante, Yanomami, Xukuru.
O correto seria falarmos de arquitetura de matriz Yanomami da mesma maneira em que falamos de arquitetura de matriz alemã em Blumenau ou de matriz açoriana em Florianópolis. Agrupadas estas seriam as Arquiteturas Originais Brasileiras, se me permitem aplicar o termo Brasil, hoje universalmente utilizado para se referir a este pedaço do mundo, aos povos que aqui viviam antes da invasão europeia.
Começo por estes conceitos para apresentar o trabalho de vários arquitetos que escolheram trabalhar, de forma absolutamente participativa, da reconstrução da aldeia Xukuru, na Serra do Ororubá, em Pernambuco. Resistindo a ocupação de suas terras desde o século XVI, os Xukuru guardaram cerca de 800 palavras de sua língua original enquanto viam sua população declinar continuamente. Em 1989 inicia-se o processo de demarcação de suas terras, e acentuam-se os conflitos com os fazendeiros ali assentados. Em 1998 o cacique Xicão Xukuru e mais 6 pessoas foram assassinadas, e em 2016 outro líder, João Natalício foi morto. Deve-se a Xicão a organização atual do povo Xukuru e a retomada de seus costumes ancestrais como o Toré.
No virada do milênio Lula Marcondes, arquiteto d’O Norte - Oficina de Criação começou a trabalhar com os Xukuru projetando pequenas residências e outras obras de pequena escala. Veio a oportunidade de projetar um Ponto de Cultura com verba do ministério da cultura sob a batuta de Gilberto Gil. Os Xukuru tinham um estábulo e resolveram questionar a hegemonia da pecuária que os escravizava economicamente, transformando o telheiro em um ponto de cultura. Não há metáfora melhor para o que foi o ministério de Gil, fazer muito com pouco orçamento, desafiar a lógica econômica com a lógica do resgate cultural. Muito embora o edifício fora desenhado para ser feito com técnicas tradicionais e aberturas de ventilação, a dificuldade de seguir de perto a obra e a importância da participação da comunidade fez com que fossem compradas janelas e portas de metalon, as mais baratas na cidade de Pesqueira e algo que os Xukuru associavam com a “modernidade”. Nem os arquitetos nem os Xukuru estavam satisfeitos.
Passaram-se 10 anos e muitas conversas. As lideranças Xukuru foram contando suas histórias para os arquitetos. Histórias de Toré, uma cerimônia ancestral que era proibida pelas autoridades policiais até bem pouco tempo. Chegaram Daniel Guima e Pedro Paes, ensinando e aprendendo com oficinas de construção em terra e madeira. Antes de qualquer construção resolveram testar as técnicas vernaculares aprendidas no Recife e mesclar este conhecimento com a sabedoria local.
Pouco tempo depois projetaram e construíram o espaço da assembleia e o apoio para o Toré. Uma cobertura de 35 por 15 metros toda estruturada em madeira da mata ao lado, cortada na lua minguante de forma a preservar a seiva na raiz e não ofender os espíritos. Tudo é sagrado. O sitio da construção foi escolhido pelo espírito da Jurema Branca que desceu ali. Tudo é sagrado. Os pórticos triangulares da estrutura principal em tesoura articulada são repetidos nas 12 portas. Um caminhão munk foi usado para levantar as peças principais, um toque de modernidade e segurança no processo. Todo o resto é feito à mão: da amarração das peças à estrutura de pau roliço da cobertura e o revestimento de palha amarrada.
A comunidade entendeu que esta forma de construir resgata suas tradições e os empodera. Ninguém quer mais fazer casa de favela como veem na televisão. Querem construir eles mesmos, com ajuda dos espíritos, de forma a louvar o sagrado da natureza em cada pau cortado, cada pedra talhada, cada tufo de palha amarrada.
Para o Peji, paredes de taipa com madeira, barro e pedra. Todos participam, homens, mulheres e crianças. Amassam o barro e amarram a palha. O Peji é um pequeno altar, serviu de teste para técnicas de amarração da palha do catolé depois utilizadas na casa dos ancestrais.
A casa dos ancestrais, Xeker Jeti, é um espaço circular, com troncos enterrados no solo apoiando terças dispostas radialmente em volta de um pilar central. Uma parede circular de taipa separa o interior do exterior. A cobertura, de palha de catolé trançada, ventila e protege do sol e da chuva ao mesmo tempo.
Mais recentemente, Wanny Melo, aluna da Universidade Católica de Pernambuco, desenvolveu e construiu seu TCC na aldeia dos Xukuru do Ororubá. Uma estrutura chamada Barraca do Bem Viver, bem diferente dos modelos 3D projetados pela autora mas riquíssimo em experiência, suor e sublimação. Cada poste fincado no chão tem um significado, cada caibro e cada folha de catolé trançado. Como nos ensina Viveiros de Castro em sua teoria do perspectivismo ameríndio, os materiais trabalhados ganham humanidade e nós ganhamos madeiridade, pedridade e palhidade.
A técnica resgatada por este encontro entre arquitetos e comunidade agora se dissemina sem ajuda dos profissionais do Recife. O cacique Marcos me conta que os Xukuru estão muito orgulhosos de resgatar sua arquitetura original e agora querem construir tudo assim. Simples, barato, participativo e sagrado. Aos poucos os Xukuru vão retomando sua história e sua soberania sobre o território. Em 2020 Marcos Xukuru foi eleito prefeito de Pesqueira, PE, mas ainda não pôde assumir o cargo por conta de disputas judiciais. Uma luta que já dura 521 anos e não tem prazo para acabar.
Voltando a questões acadêmicas de teoria e história da arquitetura, o estudo destas Arquiteturas Originais Brasileiras nos permite fazer um deslocamento epistemológico de forma a tencionar a narrativa eurocêntrica vigente e abrir brechas para uma crítica decolonial. Eu mesmo passei duas décadas adjetivando nossa modernidade de incompleta ou desigual até me deparar com os textos de Arturo Escobar em que este autor demonstra não existir modernização sem colonização. A destruição do conhecimento dos povos originais é parte integrante de nosso processo de modernização, não um efeito colateral deste.
Urge resgatar Viveiros de Castro e seu perspectivismo ameríndio para desafiar a lógica cartesiana que, ao continuar em posição hegemônica, vai inevitavelmente continuar destruindo a memória do que for periférico ou resistente a ela, com fogo, com bala ou vício.
Celebremos as arquiteturas originais brasileiras!
Publicado originalmente em 4 de fevereiro de 2021, atualizado em 19 de abril de 2021.