Viver na cidade e viver a cidade é estar disposto a todo e qualquer acontecimento. Em um mesmo dia passamos por lugares e espacialidades diferentes, com composições e tempos distintos. Nenhum dia é igual ao outro, já que estamos em constante movimento, diante de uma combinação aleatória de eventos que geram efeitos sobre objetos e sujeitos; e que geram os espaços pelos quais transitamos e as percepções que vivenciamos. Diante dessa reflexão, surge a discussão dos efeitos da arquitetura e urbanismo para além de um campo visual, atrelada ao pertencimento do ser com o espaço e baseada na forma e na dinâmica urbana. Como podemos apreender os efeitos do objeto sobre o sujeito e vice-versa? Qual é a leitura materializada que temos da cidade como reflexo das ações da sociedade?
Este ensaio é um recorte e desdobramento de um Trabalho de Conclusão de Curso e busca explorar a composição do espaço urbano por meio de representações e leituras espaciais que construam uma base para a apropriação do espaço a ser reconhecido. Entende-se esse momento como uma exploração cartográfica que potencializa as nossas intervenções na cidade revelada em camadas.
Um caminho
Viver em uma metrópole como São Paulo hoje, nos indica que não é reproduzindo modelos que nossos problemas atuais e reais serão resolvidos. A dinâmica em que os grandes planejamentos urbanos acontecem não é a mesma em que a sociedade se movimenta. É preciso se aproximar da nossa realidade e entender quais são as possíveis ações que podem nos ajudar a produzir uma cidade mais atemporal, que absorva as mudanças de forma mais harmônica e correspondente a seus habitantes. Primeiramente, que cidade desejamos perpetuar?
Formação das cidades
A formação das cidades se deu com o processo de sedentarização do indivíduo, que estabeleceu uma nova relação com a natureza. Para a materialização da cidade é preciso o domínio sobre o território que se pretende habitar. Segundo Rolnik (1995), esse habitar sugere um suprimento da necessidade de moradia e de trabalho. Desta forma, podemos descrever o nascimento e estabelecimento das cidades.
As cidades passaram a crescer uma vez que seus habitantes não eram mais só produtores agrícolas, mas também consumidores. Assim, para a administração dessas trocas, a escrita tornou-se essencial para o registro da acumulação de riquezas materiais e não materiais.
Com a cidade sendo escrita, ela passa a construir memória, modificando a sua materialidade. A cidade passa a ter registros, marcando uma forma de viver.
Materialização
Traçados, desenhos de rua e edificações são evidências de formas de vida, uma vez que essas formas traduzem as necessidades daqueles que habitaram as cidades em outro tempo. Assim, ao ler as cidades hoje temos a clareza de que essas já não são como folhas em branco que podem ser escritas livremente, mas são como textos em constante transcrição. É como se a todo tempo tivéssemos que apresentá-las em uma nova língua, perdendo e transformando significados, que numa tentativa de voltar a uma ideia original de cidade, já não seria possível, pelas tamanhas adaptações e pela sociedade de hoje, que já não corresponde às necessidades das vidas anteriores. A cidade é revelada pelas suas formas, as quais sofrem contínuas transformações no tempo.
O catálogo de formas é interminável: enquanto cada forma não encontra a sua cidade, novas cidades continuarão a surgir. Nos lugares em que as formas exaurem as suas variedades e se desfazem, começa o fim das cidades. — CALVINO, 1990, p.126.
No momento que entendemos que as formas das cidades dizem respeito a sociedade que nela habita ou habitou, podemos considerar que sempre existe alguma forma saindo e outra chegando das nossas cidades, ou então concordar com Perulli (2012), quando afirma que não existe forma, uma vez que essa é imóvel e o que está em movimento é a realidade, que é a mudança contínua da forma.
Com esta leitura, entendemos que a cidade possui uma forma materializada por suas ruas, calçadas, edifícios, entre outras coisas, e está em constante transformação, já que o indivíduo que a habita recebe estímulos a todo momento e se transforma, sendo simultaneamente reflexo do ambiente e refletindo no ambiente. Portanto, é preciso assumir a contínua fluidez dos nossos espaços, e em contrapartida, entender que a nossa cidade já está repleta de sobreposições de formas e espacialidades.
Espaços vão se alterar com o tempo, formas vão receber novas influências. Porém, como fazer isso de forma harmônica? Reconhecendo a história do lugar, mas também as transformações presentes?
Se a cidade é construída por formas sólidas e sua dinâmica solicita transformações, sugerindo maior fluidez nas formas durante o tempo, é possível prever a cidade de maneira que ela absorva a liquidez? É possível que ela se (re)organize e não perca sua identidade?
É possível pensar em uma arquitetura de tempo em vez de espaço? Uma arquitetura cujo objetivo não é ordenar a dimensão extensa, mas o movimento e a duração? — SÓLA-MORALES, 2002 apud BOGÉA, 2009, p.14.
Uma pausa
Façamos uma pausa na questão para entender a cidade como a sociedade que a habita. O espaço urbano é o lugar que suporta as ações do cotidiano, é o lugar de encontros, que oferece potencialidades de interação social para a possibilidade do reconhecimento do outro. Se nós não pensarmos primeiro o papel do espaço para a sociedade, como poderemos nos apropriar de forma devida dele?
Neste ponto nos aproximamos da maior questão desta pesquisa. Se nós, (futuros e atuais) arquitetos e urbanistas, somos produtores de espaços, como podemos/devemos nos apropriar da cidade? Qual a nossa capacidade de interpretar as necessidades locais e transcrevê-las em projeto, sem que se perca a sua leitura e reconhecimento? Como podemos assegurar alguma leitura espacial entretempos que assegure uma transformação harmônica? Até que esses projetos já não façam sentido, e a cidade peça por outra condição de espacialidades e urbanidades.
O espaço urbano materializa as dinâmicas da sociedade. Podemos discutir a segregação espacial, a apropriação, a alteridade, entre tantos outros aspectos dos quais precisamos estar conscientes e que estão contidos na nossa cidade e sociedade. Que jeito melhor de se apropriar da cidade que reconhecer que esse espaço também é o espaço do outro?
Nas palavras de Solano Benítez: “A sociedade é uma extensão de mim para o outro. A ideia de sociedade acontece quando percebo que estou no outro, que o outro é a minha extensão e eu sou a extensão do outro.” (informação verbal - anotações da palestra do arquiteto paraguaio Solano Benitez realizada no Centro de Formação do Sesc, em São Paulo, em 16 abr. 2019). Assim, entendemos que a capacidade de projetar está além do desejo de um único indivíduo, mas sim na busca constante da produção de espaços integradores e socializadores que gerem impactos na sociedade, de forma a perdurar a boa convivência e ultrapassar as barreiras visíveis e invisíveis que nos cercam.
Os espaços são carregados de possibilidades de experiência, como ideologicamente sugerido por Constant Nieuwenhuys, ao propor a New Babylon – uma nova cidade para uma nova sociedade homo ludens – que nos mostra como a cidade está totalmente atrelada à sociedade que a habita, já que New Babylon só faz sentido pela existência dos homo ludens que se sentem pertencentes a esse modelo de cidade. Diante disso, concluímos que é preciso interferir na cidade de acordo com as necessidades próximas de seus habitantes, em contrapartida, instigar a população para que perceba sua própria dinâmica e não se ausente da cidade, gerando estímulos que a desperte a cada dia para novas interpretações de um mesmo espaço, que já é de seu reconhecimento. Um espaço da cidade que sugere interações, que instigue os sentidos, que provoque o homem a perceber o território em que está inscrito.
Afinal, o que faz uma praça ser muito utilizada e outra não? O que nos faz buscar um tipo de lugar? Qual a linha tênue que distancia um espaço do outro, uma realidade da outra, pessoas de outras? Somos tão intolerantes à presença do outro? Ou existe algo mais subjetivo?
Qual é a realidade dessa parte da sociedade na qual busco intervir? Além do que seu espaço mostra, quais são seus costumes e carências? O que aconteceu para que a cidade já não atenda a essas pessoas? Ou o que falta para melhorar a utilização do espaço público?
Já não escrevemos uma nova forma, intervimos na existente, explorando seus potenciais e suas fragilidades – revertendo-as –, saciando carências sociais e espaciais. A cidade está criada, e cabe a nós, reconhecer os pontos urbanos que propaguem a vida pelas malhas que tecem nossos espaços já consolidados.
Referências bibliográficas
ARNET, Virginia. Memórias invisibles: nuevas oportunidades del patrimonio industrial para la regeneración urbana. Revista Arquitectura y Cultura, Escuela de Arquitectura Universidad de Santiago de Chile, Santiago, n.5, p.28-44, 2014.
BOGÉA, Marta. Cidade errante: arquitetura em movimento. São Paulo: Senac São Paulo, 2009.
CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
CHOAY, Françoise. O urbanismo: utopias e realidades, uma antologia. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2013.
GUATELLI, Igor. Arquitetura dos entre-lugares: sobre a importância do trabalho conceitual. São Paulo: Senac São Paulo, 2012.
HOLL, Steven. Entrelazamientos. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli, 1997.
NETTO, Vinícius M. Cidade e sociedade: as tramas da prática e seus espaços. Porto Alegre: Sulina, 2014.
PEREC, Georges. Lo infraordinario. Madri: Impedimenta, 2008.
PERULLI, Paolo. Visões da cidade: as formas do mundo espacial. São Paulo: Senac São Paulo, 2012.
ROLNIK, Raquel. O que é cidade? São Paulo: Brasiliense, 1995.
Este artigo é um excerto originalmente publicado na Revista Cadernos de Pesquisa #10 da Associação Escola da Cidade e disponível para consulta aqui. Trata-se de publicação proveniente de Trabalho de Conclusão de Curso entregue em 2019 no Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC – SP) sob orientação da Profa. Ms. Rita Canutti (SENAC-SP).