Nesses 113 anos de comemorações da imigração japonesa, discursos sobre a cultura japonesa ganharam uma atenção considerável. Com o Brasil sendo um dos maiores detentores da comunidade japonesa fora do arquipélago, é nítida a proximidade do país com expressões culturais japonesas. Grande parte das cidades colonizadas pelos japoneses preservam até hoje história e cultura nipônicas, com isso, o campo arquitetônico passou a ser consolidado principalmente por meio de construções que representassem os aspectos políticos e sociais da imigração japonesa atrelados a novas tecnologias e formas de construção.
Frabrizio Rosatti atribue a esse intercâmbio de culturas elaborado pelos imigrantes o estilo Wayou Settyu Youshiki (estilo eclético oriental-ocidental), desenvolvido na segunda metade do século XIX, época marcada pela influência social e política da Restauração Meiji. Este termo surge inicialmente através do livro “A filosofia da simbiose”, do arquiteto Kisho Kurokawa, que afirmava que o estilo trazia o dinamismo e a beleza por meio da simbiose, isto é, procurava reconhecer o caráter e cultura um do outro, mas que ainda buscava, por meio da competição, confronto e crítica.
“Mais do que o peso isolado da tradição, a arquitetura da imigração foi resultado de processo continuado de competição e confrontação da tradição e reinvenção.” – YAMAKI, 2008, p.14 apud ALVES, 2017
O Vale do Ribeira, situado no estado de São Paulo, se destaca como sendo o berço da colonização japonesa no Brasil. A região teve um caráter diferenciado no que se refere às demais iniciativas de fixação dos imigrantes em território paulista, uma vez que a sua fixação foi planejada e gerenciada pela K.K.K.K (Kaigai Kogyo Kabushiki Kaisha), uma empresa de desenvolvimento industrial e rural que forneceu todo o amparo necessário para que os imigrantes se adaptassem ao local. Com isso, foi instalada a primeira colônia de japoneses no Vale: a Colônia Katsura (1914), seguidos da Colônia de Registro (1917) e Sete Barras (1920).
Apesar de Katsura carregar consigo a importância de se tratar do primeiro núcleo de imigração japonesa no Brasil, foi em Registro que a colonização atingiu uma dimensão mais expressiva, constituindo-se na maior e mais próspera das três colônias, além disso, é a única que ainda testemunha a história da colonização japonesa em suas terras através de vestígios de edificações funcionais (fabris e administrativas), residenciais e religiosas e o cultivo de campos de chá.
A espacialidade na cultura japonesa recebeu forte influência de caráter religioso e espiritual, fazendo com que as construções tradicionais japonesas apresentassem diversos elementos simbólicos vinculados ao seu sistema construtivo e formas de ocupação e distribuição dos espaços. Rogério Gonçalves (2008) declara que em diversas edificações pertencentes aos imigrantes de Registro são identificados diversos aspectos simbólicos, a maioria das construções, por exemplo, foram construídas com estrutura em madeira utilizando a técnica japonesa de encaixe (sambladura) e, em alguns casos, essa estrutura foi empregada com as formas naturais dos troncos das árvores abatidas, uma possível influência do budismo ao abandonar questões de simetria em busca de uma relação mais orgânica com a paisagem, além de possuir certa conexão com a estética do wabi-sabi, conceito que, de grosso modo, representa um ideal estético referente a apreciação da beleza do imperfeito, da impermanência e da incompletude.
Mogi das Cruzes é evidenciada por ser a segunda maior colônia japonesa do estado de São Paulo deste 1970. Guiados pelo anseio de explorar novas terras, gradativamente a comunidade japonesa foi se fixando no município como um todo, consolidando-se como um grupo sólido e expressivo desde então. Fortemente influenciada pela região do Vale do Ribeira, a arquitetura japonesa consolidada em Mogi das Cruzes segue as mesmas condições de conhecimentos construtivos que englobam a cultura japonesa atreladas a técnicas locais.
O Casarão do Chá consiste em um dos principais elementos arquitetônicos representantes da cultura japonesa em Mogi das Cruzes. A construção se fez necessária devido ao sucesso da produção de chá naquela área, com isso, foi encomendado o projeto de uma fábrica para processamento e venda do chá, que foi então construída em 1942 por Kazuo Hanaoka – mestre carpinteiro japonês. No projeto foram submetidas diversas adaptações principalmente em sua materialidade, como exemplo, o uso da taipa de mão, técnica comum ao Brasil e Japão e a construção da cobertura com características formais japonesas e materiais comuns a arquitetura brasileira. Existe também um sincretismo à própria arquitetura japonesa, visível, por exemplo, na presença de elementos arquitetônicos característicos de castelos e templos em uma edificação fabril, solução incomum, mesmo no Japão.
De modo geral, pode-se afirmar que a arquitetura desenvolvida pelos imigrantes foi concebida através de uma técnica híbrida que nasceu a partir dos materiais encontrados em cada região e o ajuste às condições climáticas locais, todas essas questões adaptadas ao domínio técnico dos japoneses. O desafio de superar os limites de uma natureza desconhecida se concretizou na paisagem produzida pelo imigrante, foi uma tarefa árdua, mas necessária.
É evidente a construção identitária formada ao longo do tempo através dos elementos construtivos citados uma vez que adquirem significados próximos de memória cultural dos imigrantes japoneses. Em contrapartida, simultaneamente, a estética nipônica acabou sendo limitada a um mero componente decorativo ao estabelecer, por exemplo, um paralelo com o bairro da Liberdade – SP, conhecido como bairro oriental pelo fato de parte de sua formação histórico-social estar atrelada a intensa ocupação de imigrantes de origem asiática.
A Liberdade passou a ser vista como o ponto ideal para abrigar a Little Tokyo ou a Chinatown brasileiras através da reprodução de um Oriente que pouco tivesse a ver com aquele construído pelos imigrantes e descendentes. Sem o comprometimento com a tradição cultural local, mas desfrutando de sua autenticidade, a orientalização no bairro da Liberdade pelo processo de reprodução e replicação de um oriente fake se consolida cada vez mais.
Importante mencionar sobre a mudança no nome da estação de metrô do bairro, de Liberdade para Japão-Liberdade. A troca, formalizada em decorrência às comemorações dos 110 anos da imigração japonesa no Brasil, acaba reduzindo a complexidade identitária do local, que conta com pessoas de diversos lugares do mundo, sobretudo de outros países asiáticos como China e Coreia. Ademais, a alteração de nome enfraquece e afasta a população da história que deu origem ao nome da praça e da estação, narrativa de grande importância para a população negra de São Paulo, funcionando como uma camada de apagamento da história negra na cidade.
Resgatar os reflexos da arquitetura nipônica no país não apenas se mostra fundamental para a redescoberta da identidade do nikkei (denominação para descendentes de japoneses nascidos fora do Japão ou para japoneses que vivem regularmente no exterior), como também para tomada de consciência racial pela comunidade japonesa, não sob um ponto de vista nipocêntrico, mas sim contextualizada em um processo de discriminação de minorias étnico-raciais sob o qual se consolidou parte da narrativa do Brasil.
Referências bibliográficas
ALVES, Juliana Tie. O intercâmbio cultural e construtivo em Mogi das Cruzes. 2017. Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2017.
MARZ, Marília. Indivisível: quadrinho narra a história negra e oriental do bairro da Liberdade em São Paulo. Acesso em 10 ago. 2020.
GONÇALVES, Rogério Bessa. O sincretismo de culturas sob a ótica da arquitetura vernácula do imigrante japonês na cidade de Registro, São Paulo. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v.16, n.1, p. 11-46, 2008.
HANDA, Tomoo. O imigrante japonês: história de sua vida no Brasil. São Paulo: Centro de Estudos Nipo-Brasileiros, 1987.
ROSATTI, Fabrizio Lucas. Requalificação de um bem histórico: o cemitério japonês de Álvares Machado – SP. 2015. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, 2015.
NAKAGAWA, Fábio Sadao; OKANO, Michiko; NAKAGAWA, Regiane Miranda de Oliveira. Duas visões da Liberdade: a orientalização e a orientalidade. Estudos Japoneses, São Paulo, n. 31, p. 45-62, 2011.
PIRES, Walter; KUNIYOSHI, Celina. Casarão do Chá: Mogi das Cruzes. São Paulo: CONDEPHAAT, 1984.
Nota do editor: Este artigo foi originalmente publicado em março de 2021 e informava, no primeiro parágrafo, 112 anos da imigração japonesa. Hoje, 18 de junho, celebra-se o 113º aniversário da imigração japonesa no Brasil, que tem como marco inicial a chegada do navio Kasato Maru, em Santos (SP), e o número mostrado no parágrafo inicial foi ajustado de acordo com a data histórica.