Translucidez e materiais aparentes: breve análise das soluções de Lacaton & Vassal

Paulo Mendes da Rocha fala, frequentemente, que a função da arquitetura nada mais é do que “amparar a imprevisibilidade da vida”. Assim como uma moldura, que destaca e, principalmente, direciona o olhar do observador ao objeto principal, espaços dão suporte à vida cotidiana, aos encontros, à paisagem. A frase do arquiteto brasileiro combina bem com a forma que o escritório Lacaton & Vassal trabalha. A premiação do casal francês levanta algumas questões sobre como suas escolhas são precisas para o momento atual que vivemos no mundo. Isso abrange a filosofia do seu trabalho, as soluções projetuais adotadas e a paleta de materiais.

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Latapie House / Lacaton & Vassal. Image © Philippe Ruault

Um projeto que marcou o início da carreira da dupla francesa foi o da Place Léon Aucoc, em Bordeaux, em 1996, parte de uma iniciativa da cidade de “embelezamento” dos seus espaços públicos. Ao visitar a praça, observaram que ela funcionava bem, supria as demandas dos habitantes locais e era charmosa como estava. Trocar um piso por outro ou instalar um banco moderno não faria uma real diferença à vida dos seus usuários. A proposta foi utilizar o recurso que seria gasto para pequenas melhorias e a manutenção da praça no decorrer do tempo. O gesto projetual de fazer quase nada e repensar a função da arquitetura é simbólico e poderoso. E isso permanece em toda sua trajetória.

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23 Semi-collective Housing Units / Lacaton & Vassal. Image Cortesia de Lacaton & Vassal

Por mais clichê que seja falar isso, a empresa parece materializar os chamados 4 Rs da sustentabilidade. Ainda que sejam conceitos de senso comum, observamos muitas práticas se afastando deles, ao contrário de Lacaton & Vassal que parece inclui-los naturalmente. Antes de tudo, a postura de repensar sobre a real necessidade de criar novas arquiteturas, construir ou demolir perpassa sua obra. Geralmente trabalhando em renovações ou em contextos urbanos consolidados, os arquitetos costumam iniciar os projetos pensando do interior para o exterior. Ou seja, com a empatia de se colocar no lugar dos futuros habitantes do espaço, não considerando os projetos como tabulas rasas, mas entendendo suas características e potencialidades, destruindo o mínimo e aproveitando o máximo. A ideia de adicionar e não demolir para construir algo muito parecido é algo que, no fim das contas, reduz significativamente o impacto das suas construções, em uma indústria que gera quantidades enormes de resíduos. Reutilizar estruturas explorando suas potencialidades e reciclando os materiais sempre que possível são pontos chave na sua obra.

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Palais de Tokyo / Lacaton & Vassal. Image © Philippe Ruault

Quando constroem novos edifícios ou ampliações, a postura do escritório permanece a mesma. Utilizando sistemas tradicionais de pilares e vigas, sem grandes balanços ou arrojos estruturais, os arquitetos estabelecem ritmos e perspectivas aos espaços, por meio de quadros estruturais bem marcados. O concreto – geralmente pré-moldado – e o aço, são evidenciados crus, tal qual a maior parte das instalações. A estrutura racionaliza e modula os espaços. É evidente, mas não protagonista. Emoldura vistas e a vida. 

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53 Semi-Collective Housing Units / Lacaton & Vassal . Image © Philippe Ruault
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Transformation of 530 dwellings / Lacaton & Vassal. Image Cortesia de Lacaton & Vassal

Mas materializar o simples é sempre mais complicado do que parece. “Construir espaços generosos com o menor custo possível, com um senso de economia que não renuncie ao conforto e à beleza. Gaste o mínimo para obter o máximo”, comenta Anne Lacaton em palestra na Harvard Graduate School of Design. O compromisso onipresente com a economia leva a uma gama concisa de materiais em suas obras: além dos já citados aço e concreto aparentes, as fachadas geralmente não fogem do mero fechamento da estrutura com painéis de vidro ou chapas translúcidas. Estas merecem uma menção especial. Muitas das suas edificações remetem às estufas, que os arquitetos sempre buscam referenciar em suas apresentações. Como eles mesmo apontam, se as estufas são tão boas para as plantas, elas também podem ser para nós. De fato, trata-se de uma solução interessante para o clima francês, onde a maioria de suas obras está construída. Os painéis, ora de policarbonato, chapas transparentes, vidro e ETFE, permitem ao mesmo tempo que o espaço seja inundado de luz natural, tenham um conforto térmico adequado, mas proporcionem privacidade, borrando o exterior do interior, e vice-versa. A luz natural entra como ator nos seus projetos, sobretudo os residenciais. Isso é tão flagrante que a maioria deles é fotografado de dia. A sisudez de um espaço arquitetônico completamente austero dá lugar às imperfeições e belezas da vida cotidiana.

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Transformation of 530 dwellings / Lacaton & Vassal. Image © Philippe Ruault
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Transformation of 530 dwellings / Lacaton & Vassal. Image © Philippe Ruault

Mesmo com quadros estruturais marcados, as estruturas de Lacaton & Vassal aparentam uma leveza singular. Até os limites parecem pouco precisos de longe. A mescla de transparência e translucidez de suas fachadas descortina a vida interior, conformando edifícios com fachadas quase mutáveis, relacionando-se com seu contexto. Guilherme Wisnik traz uma interessante análise sobre a translucidez das fachadas contemporâneas em seu livro Dentro do Nevoeiro [1]. Enquanto a arquitetura moderna buscava a transparência, simbólica e literal, por meio de panos de vidro e estruturas evidenciadas, nas palavras dele, “os atuais edifícios com fachadas translúcidas, ou semiopacas, nos quais a ossatura estrutural se esfuma, parecem dialogar com o sistema de busca de informações na internet. Sistema baseado em novos padrões epistemológicos construídos por algoritmos, em que tudo pode coexistir lado a lado e concomitantemente, por acúmulo, sem hierarquias claras, e através de elos associativos que nos levam, muitas vezes, à dispersão.” 

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Multipurpose Theater / Lacaton & Vassal. Image © Philippe Ruault
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FRAC Dunkerque / Lacaton & Vassal. Image Cortesia de Lacaton & Vassal

“Usar o que há no local, permanecer simples, abraçar o ar livre e honrar luz, liberdade e graça.” O reconhecimento do Prêmio Pritzker nos faz refletir qual a função da arquitetura nos dias atuais. Segundo Anne Lacaton, “qualquer arquitetura também é política. Como arquitetos, não devemos diferenciar entre projetos para os ricos e projetos para os pobres. Isso é inaceitável.” A eficiência no uso dos recursos, em face a um meio ambiente já sobrecarregado, sua franqueza projetual e a utilização de materiais simples, comuns, na sua melhor maneira, junto à noção de que o edifício pode ser, antes de tudo uma moldura, a chamar menos atenção do que seu conteúdo, são interessantes contrapontos aos cada vez mais apagados e criticados “starchitects”. Simbolicamente, seus planos translúcidos também nos fazem pensar. Se neste último ano de 2020 o mundo foi acometido por um inimigo invisível aos olhos, isso também nos mostrou que as nossas certezas quanto ao futuro não são mais tão claras, mas turvas.

Nota
[1] Wisnik, Guilherme. Dentro do nevoeiro: arquitetura, arte e tecnologia contemporânea. São Paulo: Ubu Editora, 2018 / 352 pp.

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Sobre este autor
Cita: Eduardo Souza. "Translucidez e materiais aparentes: breve análise das soluções de Lacaton & Vassal" 26 Abr 2021. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/958644/translucidez-e-materiais-aparentes-breve-analise-das-solucoes-de-lacaton-and-vassal> ISSN 0719-8906

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