Há 12 mil anos, nossos ancestrais perceberam que onde caía uma semente ou um fruto, nascia uma planta. A partir daí, eles analisaram que poderiam plantar as sementes e um tempo depois colher os seus frutos. Por isso, pararam de se mudar de um lugar para outro em busca de alimentos e começaram a morar somente no lugar onde podiam plantar. E assim começaram a se estabelecer nas primeiras cidades do mundo e criar o que hoje chamamos de agricultura.
No ano de 2050, estima-se que 80% da população da terra residirá em centros urbanos. Estima-se que essa população vai aumentar em 3 bilhões de pessoas, passando para quase 10 bilhões de seres humanos. Para alimentar essas pessoas com práticas tradicionais de cultivo, seria necessário que um território 20% maior que o Brasil fosse preparado para agricultura. Hoje, cerca de 80% das terras cultiváveis já estão sendo usadas no mundo todo. Como fechar essa conta?
Além disso, a agricultura tradicional está esgotando a camada superior do solo, rica em nutrientes, necessária para o cultivo da maioria dos alimentos. A agricultura ao ar livre é responsável por 70% de todo o uso de água limpa do mundo na forma de irrigação e requer uma quantidade impressionante de recursos para removê-la dos aquíferos, purificá-la e distribuí-la. A agricultura tradicional também requer fertilizantes, herbicidas e pesticidas, que escapam das terras agrícolas e poluem os ecossistemas rio abaixo.
Outro grave problema da agricultura tradicional hoje é o transporte de alimentos para consumo nas cidades. Já pensou que a maçã que você come pode ter vindo de milhares de quilômetros de distância ou até mesmo de outro país? Um custo gigante de gasolina, empacotamento, distribuição por conta de uma fruta?
Recentemente, o líder indígena Ailton Krenak fez a seguinte observação: ”Tudo o que você consome na cidade, você não produz na cidade. Foi ali que nasceu aquela ideia da criança de que o leite vem de uma caixinha, porque ela não vê a vaca. E que a água vem da torneira, ou da garrafa, porque ela não vê a fonte.”
Não é incomum encontrar crianças que não sabem que a batata nasce embaixo da terra e que castanhas vêm da semente do caju. Quando não sabemos de onde veio o que comemos não damos valor ao que temos no prato.
Segundo Caroline Steel, autora de Hungry City, o habitante urbano não possui nenhuma consciência de onde e como se produz comida. Tornamo-nos dependentes de grandes e poderosas corporações que operam com a máxima rentabilidade econômica para prover quantidades de comida em grande escala a partir de processos industriais até nossos supermercados. Tudo o que acontece antes disso é invisível para o consumidor e também insustentável.
É preciso pensar nas consequências do modelo de agronegócio e da produção em larga escala para o meio ambiente e para a cultura alimentar. A valorização dos alimentos, produzidos por grandes corporações, também tem colocado em segundo lugar os alimentos in natura e orgânicos. A conscientização da sociedade sobre a importância de se mobilizar por políticas voltadas para a produção agroecológica seria essencial neste sentido.
Fazendas Urbanas Planas e Verticais
Segundo Dikson Despommier, Professor de Saúde Pública e Microbiologia de Columbia, se cada cidade no mundo produzisse 10% da sua alimentação indoor, permitiria que 34.000 m2de terra fossem retornados às florestas todos os anos.
Projetos de agricultura urbana têm por objetivo trazer mais áreas verdes para as cidades ao utilizar os telhados dos edifícios e terrenos ociosos de estacionamento para o plantio de vegetais e legumes.
Algumas cidades já estão de olho nas estratégias de cultivo dentro de território urbanos há algum tempo. A atual prefeita de Paris, Ana Hidalgo, acaba de inaugurar na capital francesa a maior das fazendas urbanas em telhado do mundo. O projeto vem reforçar a tese de que grandes quantidades de alimentos saudáveis podem ser cultivadas em uma fazenda 100% urbana e de forma comunitária.
A fazenda urbana de Paris tem aproximadamente 14.000 m2 e conta com mais de 30 espécies diferentes de plantas que utilizarão métodos de cultivo orgânicos. Os parisienses têm a oportunidade de locar áreas para terem suas próprias hortas. Existem 135 lotes de um metro quadrado disponíveis para aluguel. O preço do aluguel anual é 320 euros, aproximadamente R$ 1.920, mas vamos lá, quanto você gasta de feira por ano?
Caso você não queira alugar um lote também pode comprar através de algum ponto de coleta certificado, reduzindo o transporte para áreas distantes da cidade.
Em Bangkok, a Thammasat University criou a maior fazenda urbana de telhado da Ásia, numa área de 22.000 m². A forma do edifício desenvolve-se a partir da planta em H, tornando a elevação que se assemelha a uma grande montanha com um enorme espaço verde de jardim cobrindo a parte superior.
Ao imitar os tradicionais terraços de arroz, o Thammasat University Urban Farming Green Roof tornou-se uma solução como um espaço verde público, fonte de alimento orgânico urbano, sistema de gerenciamento de água, casa de energia e sala de aula ao ar livre – que serve como um modelo de adaptação para impactos climáticos previstos que podem ser implementados e desenvolvidos na Tailândia e no sudeste da Ásia.
Inspirado pela engenhosidade local e práticas agrícolas tradicionais, a fazenda urbana de Thammasat forma um gramado de detenção que desacelera, absorve e armazena água da chuva enquanto a usa para cultivar alimentos. Qualquer escoamento é filtrado através de cada camada de solo e posteriormente salvo em quatro lagoas de retenção, que podem coletar a água até 11.718 metros cúbicos para irrigação do telhado e uso futuro.
Também há uma outra vertente quando falamos de agricultura urbana, a de agricultura interna vertical que usa edifícios de vários andares empilhados com contêineres de cultivo e luzes de LED ao invés de sol e terra ao ar livre.
Enquanto as plantas ao ar livre devem ser cultivadas para resistir aos elementos e ao transporte de longa distância, as plantas cultivadas dentro dos prédios podem ser cultivadas quase exclusivamente para nutrição e sabor.
Em contraste, muitas fazendas verticais não usam solo, em vez disso, dependem de hidroponia ou aeroponia, que suspendem as raízes em água carregada de nutrientes ou névoa, respectivamente, e usam 70-90% menos água e nutrientes do que a agricultura tradicional. Ao controlar o acesso às suas áreas de cultivo, as fazendas internas mantêm suas salas de cultivo limpas, reduzindo ou eliminando a necessidade de todos os pesticidas e herbicidas.
O empilhamento de muitos aparelhos e matrizes de LED em vários andares de um edifício permite que essas fazendas existam em pequenos terrenos em áreas urbanas. Ainda é uma estratégia cara, mas que vem se popularizando a cada dia com investimentos maciços em pesquisa e tecnologia.
Uma rede de fazendas urbanas internas poderia reforçar nosso suprimento de alimentos contra choques futuros, sejam biológicos, econômicos, climáticos ou políticos: a mudança na demanda da COVID-19 não teria sido tão catastrófica no abastecimento de alimentos.
Numa entrevista recente ao The Guardian, o arquiteto britânico ganhador do prêmio Pritzker (o Oscar da Arquitetura) Norman Foster afirmou que essa mesma pandemia vai acelerar a evolução das cidades. Nesse contexto, ele enxerga as fazendas urbanas como uma excelente maneira de tornar os centros urbanos mais verdes e respiráveis, usando terrenos de estacionamento de veículos e rooftops de edifícios para criar solos plantáveis.
Com o advento dos carros autônomos, os estacionamentos ficariam ociosos e liberados para que estratégias desse tipo fossem cada vez mais bem vistas aos olhos de líderes públicos.
Cultivo Individual e Colaborativo
O futuro da alimentação não inclui só grandes fazendas urbanas controladas por prefeituras ou empresas privadas em parceria com governos. Nós também podemos cultivar nosso próprio alimento.
A Food Studio, um braço da Ideo, empresa especializada em soluções de design, busca repensar a relação das pessoas com a comida e seu impacto nas cidades e no meio ambiente.
Numa entrevista recente ao CityLab, as designers chefes do projeto enxergam o futuro da alimentação como colaborativo: comunidades comprarão e cultivarão alimentos juntas e distribuirão esse alimento pronto entre elas. Uma parte fará o plantio e outra cozinhará para os que precisam trabalhar ou estudar. Muito parecido com o que nossos ancestrais faziam no período neolítico.
Isso também garantiria a alimentação de uma grande parcela da população que não tem acesso a supermercados e grandes distribuidoras de alimentos através de programas governamentais de doação de sementes a serem plantas em telhados e rooftops, uma estratégia já defendida pelo MST (Movimento Sem-Terra) em sua prática de cultivo e distribuição alimentar no Brasil.
As hortas comunitárias públicas, que vem se espalhando pelo Brasil em praças e terrenos abandonados, são exemplos de práticas inovadoras que buscam democratizar o uso do espaço de maneira a diminuir a segregação social e do individualismo. Hortas em casa também vem fazendo sucesso como uma estratégia de lazer e autocuidado; e despertado a curiosidade de diversas pessoas ávidas em aprender a cultivar seus próprios temperos.
Por outro lado, existem diversas empresas trabalhando com estratégias de plantio caseiro refrigerado, ou seja, cultivar o seu alimento em “geladeiras”, dentro de casas e apartamentos.
Startups como a Willo já vem pensando em como cultivar alimentos indoor com as fazendas verticais individuais, que posteriormente podem funcionar em condomínios ou prédios, abastecendo uma comunidade local.
Outra empresa do setor é a Infarm (que construiu junto com a IDEO) uma fazenda vertical caseira através do conceito de “farming as a service” (fazenda como serviço). Através de um plano de inscrição mensal, é possível ter sua fazendinha monitorada e receber em casa sementes e adubo em pacotes para cuidar das plantas de acordo com sua necessidade nutricional.
A IDEO tem inclusive repensado como os interiores das cozinhas poderão mudar se essas iniciativas realmente começarem a fazer sucesso. Cozinhas compactas e extremamente funcionais adaptadas para o reaproveitamento e tratamento de produtos recém-colhidos podem se tonar uma moda, além de um espaço devidamente reservado para que as pessoas possuam suas hortas ou geladeiras pessoais. Layouts de cozinhas diferentes dos habituais poderiam mudar a forma como arquitetos e designers projetam residências e restaurantes.
É fato que a agricultura urbana não resolverá completamente as deficiências do sistema alimentar consolidado de hoje, mas tem o potencial de fornecer a flexibilidade de que precisaremos para nos adaptar à medida que o mundo ao nosso redor continua mudando.
Com os caminhos para um futuro sustentável sendo repensados, as inovações na agricultura apresentam uma oportunidade para um progresso poderoso junto à nutrição humana e ao gerenciamento da cadeia de suprimentos. Além disso, estar em contato com a natureza através de fazendas que nascem e se desenvolvem nas cidades e ver o próprio alimento sendo cultivado de perto é acreditar que há outra maneira de se relacionar com os espaços públicos, com todas as pessoas que moram na cidade e com a alimentação de seus milhões de habitantes.
Texto originalmente publicado em O Futuro das Coisas.