O 27º Congresso Mundial de Arquitetos deu início esta semana à sua programação online, que precede as atividades presenciais marcadas para acontecer entre 18 e 22 de julho. Inclusão social, periferia e intervenções arquitetônicas em favelas foram os temas dos debates que contaram com a participação de Fabienne Hoelzel, Maria Alice Rezende de Carvalho, Alfredo Brillembourg, Jorge Mário Jáuregui, Alejandro Echeverri e Adriana Levisky.
O tema escolhido para abrir o UIA2021RIO é aquele que mais aflige e preocupa o mundo atualmente: as fragilidades e desigualdades sociais. As gravações dos debates de abertura permanecem disponíveis ao público até este domingo, 28 de março; depois disso, só terão acesso os inscritos no Congresso.
A Arquitetura da Inclusão Social
A Etiópia pode ser mais desenvolvida que a Alemanha? Como uma provocação, a arquiteta suíça Fabienne Hoelzel faz a pergunta e responde afirmativamente: “em termos de mobilidade, se pensarmos nas cidades subsaarianas sem carros, podemos dizer que elas estão mais próximas do futuro que desejamos do que as cidades europeias. Na Etiópia, 80% da população se locomove a pé. Não estou fazendo uma glorificação da pobreza, apenas questionando o modelo de desenvolvimento”, comentou a arquiteta no debate Arquitetura da Inclusão Social, o primeiro do 27º Congresso Mundial de Arquitetos.
Fabienne apresentou o conceito de Afrotopia, que, em sua interpretação, é o que se pode ter como utopia não especificamente para a África, mas para outras regiões do mundo: “o que se pode aprender ‘na’ e ‘com a’ África”, disse a arquiteta, que, atualmente, divide seu tempo entre Zurique, na Suíça, e Lagos, na Nigéria – as duas cidades onde seu escritório – o Fabulous Urban – está sediado.
Afrotopia é o nome do livro lançado pelo escritor e economista senegalês Felwine Sarr, com uma abordagem crítica sobre passado, presente e futuro do continente africano. Sarr aponta que a receita para o desenvolvimento da África ainda é definida no Ocidente e, agora, na China. E defende que sejam questionados os padrões e parâmetros externos pois “o futuro não deve ser transformar as cidades africanas em cópias de metrópoles do mundo inteiro”. No livro, ele escreve que “o continente não precisa mais correr nos caminhos que lhe indicam, mas caminhar na trilha que escolher para si”.
É com esse conceito em mente que Fabienne percorre o Makoko, maior favela flutuante do mundo, em Lagos, ouvindo seus moradores e trocando experiências e conhecimentos com eles. “Temos que entender que aquela comunidade tem um modo de vida, autossustentável. Não se pode pensar em uma intervenção de cima para baixo, que não considere o que já existe e funciona naquele local”.
Esse foi o ponto de interseção entre as apresentações de Fabienne e da historiadora e socióloga Maria Alice Rezende de Carvalho, que relaciona o desenvolvimento das cidades ao contexto político. Ela contou como boa parte das cidades brasileiras cresceu e se urbanizou desordenadamente durante os governos militares e o que representou a Constituição de 1988, marco da restituição da democracia no país, com um capítulo em que foram destacadas as funções sociais da cidade. “Ficou definido que a cidade deve servir ao bem estar dos seus habitantes. A partir de então, na década de 1990, tiveram início as primeiras intervenções urbanas em áreas de assentamento informal. O Favela-Bairro, que eu acompanhei, no Rio de Janeiro, tinha o intuito de manter o que a população havia feito com seus esforços, as suas casas, e levar a elas a cidade, ou seja, dotar aquelas áreas de serviços básicos e espaços públicos de lazer”.
Maria Alice ressaltou também a importância da escuta e da troca de experiências e conhecimentos com as comunidades. Ela foi quem elaborou, para o Programa Morar Carioca, um manual para ajudar os arquitetos nesse diálogo com os moradores das favelas. Para a socióloga, as falhas nas cidadesrefletem as insatisfações do cidadão com a configuração social e “denunciam que não há uma participação democrática na construção dos espaços de vida”.
O debate terminou com uma proposição: que sejam estudadas e elaboradas formas de participação ativa dos cidadãos no planejamento urbano; “governos híbridos”, como sugeriu Fabienne. Ela conta que muitas comunidades na África se autossustentam, se resolvem, e que os governos não são muito eficazes em prover o que essas comunidades precisam. E questiona, então, qual seria uma forma de implementar métodos de planejamento urbano pontuais, mas que se conectem – e sem liberar o governo da responsabilidade de prover condições de vida às comunidades. “Como poderíamos ter novas formas de governança, além do ‘de cima para baixo’ ou ‘de baixo para cima’?”.
A pergunta é pauta para muitas das próximas discussões do UIA2021RIO. Para Maria Alice, uma mostra da capacidade de auto-organização das comunidades se deu durante a pandemia, quando, na ausência do Estado, moradores de favelas brasileiras criaram suas próprias redes de assistência. “As comunidades têm muito a ensinar e contribuir no planejamento urbano”, destacou.
O que é mesmo Periferia?
Alfredo Brillembourg foi muito enfático em sua apresentação, nesta terça- feira, 23 de março, na Semana Aberta UIA2021RIO: para ele, “a Arquitetura com A maiúsculo é a arquitetura social”. Tudo mais é moda. “Eu vejo nas revistas diferentes formas e fachadas com distintos materiais e cores; lindas caixinhas bem desenhadas. Não me interessam. A ninguém devem interessar se não houver impacto social”.
Questionado, pelo também arquiteto Fernando Serapião, editor da revista Monolito, sobre o que o levou a ter uma visão social da profissão, Brillembourg contou de sua infância: “eu nasci em uma posição privilegiada e, quando criança, na Venezuela, era levado de carro para a escola. No caminho, parávamos em Chacao, para deixar a moça que cuidava de mim. Então eu via aquele bairro carente e, na escola, ficava pensando que os pobres conheciam a cidade toda, enquanto os ricos não conheciam a vida dos pobres. Quando fui para os Estados Unidos, estudar arquitetura, tentaram me ensinar com Frank Gehry, com formas, com o pós-modernismo, mas eu não achei interessante. Então comecei a ler autores como Aldo Rossi que dizia que o único lugar em que se pode ser arquiteto de verdade é na resistência às modas”.
De volta à Venezuela, Brillembourg se inspirou em Carlos Raúl Villanueva. Depois, em passagem pelo Brasil, conheceu o Programa Favela-Bairro e uma pessoa que definiu o rumo de sua carreira: o arquiteto argentino Jorge Mário Jáuregui. “Foi o Jorge que me mostrou que era possível fazer arquitetura na favela”, disse Brillembourg.
Em Caracas, fundou o Urban-Thik Tank (U-TT) e começou a pesquisar e trabalhar para comunidades. Um dos projetos foi o de um ginásio vertical em Chacao. Brillembourg lembrou como começou a idealizar o projeto, promovendo torneios esportivos para a comunidade. “Eu queria criar um espaço onde aquelas pessoas pudessem continuar jogando mesmo no período de chuvas”, disse. Num terreno de 800 metros quadrados, ergueu uma estrutura leve com um total de 4 mil metros quadrados de área construída. “Eu sou caracterizado como um arquiteto que desenha equipamentos que podem ser feitos por partes, com peças que podem ser colocadas de maneiras distintas”, comentou.
De novo em visita ao Brasil, Brillembourg conheceu o líder comunitário Gilson Rodrigues, que o apresentou à Favela de Paraisópolis, em São Paulo, para
onde o U-TT desenhou o Grotão – Fábrica de Música. O projeto previa a instalação de um edifício público multifuncional no meio da favela – em uma área de desabamentos – com componentes de agricultura urbana, sistema de gestão de águas, anfiteatro público, escola de música, sala de concertos, instalações desportivas, espaços públicos e infraestruturas de transportes. Não chegou a ser executado e o local foi novamente ocupado de forma irregular sofrendo inundações, incêndios e outros problemas, situação que, para Brillembourg, reforça a importância da ação social das novas gerações de arquitetos.
Em uma mensagem para os jovens estudantes e profissionais, ele insiste: “não prestem atenção à moda, porque a arquitetura se converteu em um ‘fashion statement’. E não fazemos nada se não atendemos aos 80% da população que passam necessidades”.
Arquitetura da Favela
Quando dois grandes mestres se juntam não se pode esperar que não resulte em uma aula. E foi magna a conversa desta quarta-feira, 24 de março, entre os ilustres arquitetos Jorge Mário Jáuregui e Alejandro Echeverri, com a moderação da editora da revista Projeto, Evelise Grunow. O argentino Jáuregui deu a largada lançando mão de um termo, um verbo, um conceito, que tem usado bastante para se referir ao trabalho do arquiteto urbanista: urdimbrizar. “Fazer urdimbre (urdidura), conectar, permitir continuidade, fazer cidade, tecido urbano”, definiu em tom filosófico e quase poético.
A tarefa não é simples. Exige saber ler a realidade e criar relação entre o que existe e o novo, o que se propõe – explica Jáuregui. Uma das estratégias, segundo o mestre, é a reconfiguração das centralidades: “partindo das que já existem, potencializá-las e introduzir novas, que ressignificarãocompletamente os lugares”.
Para exemplificar, Jáuregui apresentou parte de sua farta coleção de projetos de urbanização de favelas, dos mais diferentes portes, entre elas as famosas Rio da Pedras, Rocinha, Vidigal, Manguinhos e Complexo do Alemão, todas no Rio de Janeiro. Sobre essa última, que reúne mais de 80 mil habitantes, ele destaca um dos impactos da instalação do teleférico: “o tráfico de drogas perdeu o seu bunker, que ficava justamente no topo do morro, num lugar antes inacessível e, depois, mais visitado que o Cristo Redentor”.
Os projetos fizeram parte de programas de governo implementados ao longo dos últimos trinta anos. Mais recentemente, o arquiteto desenvolveu um projeto para Domingo Sávio, bairro em Santo Domingo, capital da República Dominicana: a reurbanização de uma área degradada – à margem do rio Ozama – onde cerca de 1,4 mil famílias moravam em condições insalubres, sob risco de inundação e contaminação.
São muitas as experiências, muitas histórias envolvidas em cada projeto. “A arquitetura diz respeito a isso: ajudar a construir histórias”, refletiu Echeverri após a apresentação do colega. Foi, então, a vez do colombiano contar suas intensas histórias, sobre iniciativas que transformaram Medellín, cidade em que nasceu.
Echeverri mostrou um mapa com a linha amarela que separa (ainda hoje) a Comuna 13 – no passado, uma das maiores e mais violentas favelas do país – do bairro de San Javier. “Essas fronteiras, físicas e também imaginárias, são desafios em diversas cidades latino-americanas. A questão é como diluí-
las e, com processos sociais, cívicos, com políticas públicas, fazer uma integração”.
Echeverri discorre sobre pontos centrais em seus projetos: transporte, espaços públicos, educação – “elementos que conectam”, diz. Conta também que estuda o itinerário dos cidadãos e que o desenho urbano pode ser capaz de mudar comportamentos e, assim, desencadear múltiplos impactos. E destaca a importância das alianças entre setor privado, setor público, comunidade e academia: “depois de 15, 20 anos, é possível perceber que os projetos que resistem são os que contaram com maior número de aliados, de atores, aqueles que se fizeram com as comunidades, com múltiplas vozes”.
Um exemplo está no novo Paseo Carabobo, eixo estruturante que conecta o Parque Explora – obra de Echeverri – com o Jardim Botânico, o Parque Norte, o Centro Cultural Moravia e o Parque de los Deseos. “Hoje é palco de eventos, de interação social, do que se deseja para Medellín”, diz o arquiteto.
“É uma convergência que eleva a potencialidade”, na síntese de Jáuregui. Seguindo o raciocínio, o argentino defendeu que o urbanismo deve andar junto com a economia e, indo além, discorreu sobre a “Ágora do Século 21”, que reunirá trabalho, cultura, educação e convivência das diferenças – devidamente “articuladas”. Para Jáuregui, o arquiteto tem o papel de “articulador de diferenças”.
Echeverri apontou, no entanto, os limites e desafios dos profissionais da área: “estamos trabalhando em um momento de transição e é preciso abrir espaço para se construir uma profissão distinta; não vamos construir imagens finais, estáticas, e sim processos, que são dinâmicos”. Ele acredita que a formação do arquiteto deve evoluir cada vez mais para processos colaborativos e flexíveis e que as novas tecnologias favorecem esse movimento. “Mas resta ainda o desafio de gerar o diálogo intergeracional, que conecte o valor dos jovens com o dos profissionais de maior experiência”.
Fragilidades e Desigualdades
Uma live com afirmações e posicionamentos contundentes finalizou a Semana Aberta UIA2021RIO. O tema das Fragilidades e Desigualdades foi abordado sob diversos aspectos pelos arquitetos Adriana Levisky (Brasil), Alfredo Brillembourg (Venezuela/EUA) e Fabienne Hoelzel (Suíça), com a moderação do Vice-Presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) para relações UIA2021RIO, Nivaldo Andrade.
Ele levou para discussão as principais questões abordadas nos três debates da semana e perguntas dos espectadores destes debates. Como fazer uma gestão participativa nas cidades; qual o papel do arquiteto na promoção da inclusão social e no combate às desigualdades; e quais os limites e barreiras enfrentados pelos profissionais de arquitetura nessa missão, foram algumas das indagações em pauta.
Fabienne Hoelzel foi a primeira a responder e de forma objetiva falou que as questões são políticas e que o que se têm em muitos lugares são governos disfuncionais. “Não podemos esperar as iniciativas destes governos; então, como arquitetos, podemos dar alguns passos para apoiar as pessoas”.
Fabienne, que tem dado passos significativos para populações muito carentes na África – especificamente em Lagos, na Nigéria – reforçou também que “é preciso produzir conhecimento global localmente” e recomendou a todos que têm interesse pela questão urbana que visitem a África subsaariana, “pois lá é que estarão as grandes cidades”.
Alfredo Brillembourg pontuou que os arquitetos não criam as cidades; “são as pessoas que criam” e disse que a arquitetura pode funcionar como uma acupuntura, inserindo equipamentos, mas que o planejamento e a gestão urbana dependem do Estado. Ele mencionou que, por diversas vezes, projetos feitos por arquitetos não são implementados pelos governos.
Adriana Levisky mencionou que, há, decorrência disso, uma demanda por metodologias participativas e instrumentos jurídicos que garantam a participação de diferentes atores na gestão e no planejamento urbano. E apontou que, para exercer esse papel de mediador e ter a “ação Política, com P maiúsculo”, o arquiteto precisa ter uma formação diferente, interdisciplinar e uma visão plural, intercultural, intergeracional.
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