Pier Luigi Nervi é um caso curioso na história da arquitetura. Apresenta grandes edifícios de concreto armado – sendo inclusive responsável por desenvolvimentos técnicos ligados a esse material –, que se definem por seus ousados, expressivos e heroicos partidos estruturais. Projetava de forma semelhante a Corbusier na sua chamada ‘fase brutalista’, que “(...) abordava o programa de arquitetura partindo de princípios de ordem geral, adaptando-os em seguida à situação real. O projeto era definido pelo partido que se organizava do geral para o partícular” (Acayaba, 1985); observar-se isto nos edifícios do italiano que, em grande parte, são obras pavilhonares, nos quais uma grande cobertura estrutural recobre o programa em suas particularidades.
Estas são algumas das características que alçam o suíço – principalmente com a Únite d’Habitation (1952) – ao patamar de antecessor do Novo Brutalismo, e que, mesmo antevistos em Nervi, não o legaram a mesma alcunha. Quando se lê a obra que consagra o este movimento, New Brutalism: Ethics or Aesthethics? (1966), de Reyner Banham, não há menção do italiano; já o suíço é instaurado como antecedente. Talvez o historiador não o elencou à posição pois enquanto o casal Smithson –responsáveis pelo manifesto e as primeiras obras do Novo Brutalismo –, e em especial Corbusier à época, “demonstra[vam] um voluntario passo atrás ao progressismo técnico(...)” (Wisnik 2019, p.36), Nervi usa o concreto armado quando este ainda é a ponta tecnológica da construção civil. Ou então, Nervi tenha sido propositadamente omitido tanto por Banham quando pelo casal Smithson por conta daquela divisão que se dá no mundo pós Segunda Guerra mundial, na qual “o panorama se revela mais maniqueísta, tensionado por polaridades esquerda-direita, dependência-independencia” (Bastos, Zein 2015, p.77).
E, como já prenuncia o título de Banham, o movimento Brutalista se diz intrinsecamente conectado à questões éticas, sociais; Nervi, italiano em uma Italia fascista, que completou obras – inclusive grandes obras públicas, e.g. Estádio Giovanni Berta (1929-33) – durante o regime de Mussolini, torna-se então inadmissível ao cânone. Talvez, se quisermos o ver, encontremos um aceno certamente velado no manifesto dos Smithsons quando dizem que o Novo Brutalismo vem de uma “(...) reavaliação daqueles edifícios avançados dos anos 20 e 30 cujas lições (graças a algumas rachaduras no gesso) foram esquecidas” (1955 apud Banham 1966, p. 46-47). Poderiam eles estarem falando também desses mestres que não eram bem vistos, mas que certamente possuem valor arquitetônico? Com certeza, há de se querer ver o aceno – especialmente, pensando em ‘rachaduras no gesso’ em edifícios de concreto exposto.
Mas o fato é que já a partir do fim da década de 1910, início da de 20, Pier Luigi faz importantes contribuições à tecnologia do concreto armado, sua estética brut – aquela que expõe francamente os materiais –, e às ousadas formas estruturais esculturais que, décadas depois, voltam a pulsar mundo afora. Assim, fascista ou não, progenitor consagrado ou não, nos é de interesse observar a obra de Nervi; senão por – tantos anos depois – finalmente podermos admitir a beleza de suas geometrias, por esse caráter antecipatório que ela veio por exibir. Assim, comecemos esta jornada pelos primórdios: os primeiros anos profissionais do italiano.
Após se graduar em engenharia civil em Bologna, Pier Luigi Nervi é contratado por Attilio Muggia, outrora seu orientador de tese. A firma de Muggia, Socicta Anonima per Costruzioni Cementizie, possuía a patente do sistema Hennebiquepara as regiões de Emilia-Romagna, Toscana e Marche. Desse momento, Nervi adquire experiência na construção com concreto, e também, uma inquietação que o levaria a desenvolver sua própria patente de material construtivo.
Em 1917, o engenheiro registra a patente do composto “sidero-cemento”. Com esse, Nervi sonhava em criar um material que “(...) possuísse todas as qualidades necessárias para construir grandes edifícios, mesmo sem barras” [de reforço no concreto]" (Gargiani; Bologna, p.10). Constituia-se então de uma mistura de concreto com pedaços metálicos, como fios de ferro. Eventualmente, essa pesquisa levou o a desenvolver o ferro-cemento, usado na construção de membranas dobradas e onduladas. Apesar de nunca ter superado a necessidade do reforço, seu sistema pode ser utilizado em conjunção com o sistema Hennebique, ou semelhantes.
O que esse brevíssimo sumário de Nervi demonstra é seu conhecimento tanto do aspecto estrutural das construções em concreto, quanto de seu domínio do material em sí. Desse modo, é de se esperar que ao longo de sua carreira o engenheiro tenha continuado a pesquisar e desenvolver sistemas construtivos, “(...) detalhes e estruturas guiadas pelo princípio da economia e examinando maneiras de otimizar a manufatura e disseminar os resultados" (Gargiani; Bologna, p.11), o o próprio engenheiro confirma: “Essa experiencia de mais de quinze anos [na Societa Anonima] (...) formou em mim o habito de procurar soluções intrínseca e construtivamente o mais econômicas possível (...) certamente, virou segunda natureza” (Nervi, p.24). Entre 1919 e 1921, Nervi projeta sua “(...) primeira estrutura significante em concreto reforçado para o teto abobadado do edifício que sediava a quadra Gioco dela Pelota” (Gargiani; Bologna, p.11).
Nessa estrutura observa-se o ponto de partida das complexas geometrias que o engenheiro vai desenvolver ao longo de sua carreira, sendo “(...) testemunha das aspirações experimentais e coragem inventiva do criador” (Gargiani; Bologna, p.12). Observamos então, uma sequência de arcos de concreto, com treliças espaciais ao longo de seus perfis em elipse, sobre o teto do edifício, como um imenso e expressivo exoesqueleto. É como se fosse questionado o aspecto tecnicista do engenheiro, elevando a obra a um plano mais simbólico que encapsula o potencial criativo do concreto (Gargiani; Bologna, p.12). Relevante também é notar o descolamento entre a membrana e o exoesqueleto, que Nervi explorará diversas vezes em sua obra. Por fim, a obra serve a que o engenheiro note que as diferentes expansões entre o concreto já curado dos pilares e a madeira das treliças, e a repetição padronizada do arco-treliça de sustentação. Dessa forma, ao final dos anos 1930, ele se empenha em desenvolver sistemas de pré-fabricação, “(...) parcialmente com o objetivo de superar esse tipo de defeito” (Gargiani; Bologna, p.12). Assim, as obras de Nervi demonstram uma beleza quase que literalmente platônica.
Para Platão, “(...) o valor de uma criação artística determina-se (...) como valor de uma investigação científica, ou seja, em função da inteligência teorética e sobretudo matemática que nela se acha investida” (Panofsky 2013, p.10). Podemos ver as experiencias no desenvolvimento de pré-fabricação, e ainda mais, no desenvolvimento do material como componente estrutural, possivelmente o maior nível de abstração atingível com algo do mundo sensível; isto é, não se dedicando as indagações filosóficas acerca da natureza da forma, considerando-a puramente como Ideia, como imaterialidade. Nervi indaga sobre a natureza do concreto, e desta extrai abstrações matemáticas e formas padronizadas, otimizadas a uma situação particular: procura-se achar a forma ideal, ou seja, aquela mais próxima da Ideia. E através da padronização, minimiza-se a armadilha que Platão dispõe ao Belo na arte, segundo a qual, a criação artística poderia macular as proporções, criando ilusões que nos distanciam ainda mais de seu mundo das Ideias. Do material extrai o imaterial, o retorna ao material.
Todavia insuperável a famosa outra crítica do filósofo grego, que diz que a arte também pode redundar em replicar inutilmente o sensível, pois, como coisa material, sempre será imperfeita em relação à Ideia. Mas encontramos certa ironia ao posicionar esta em relação à arquitetura: A replicação inútil encontra grande utilidade – ao menos – em sua função estrutural. Esta última, especialmente quando em concreto armado exposto, tende a ser – até ao olho parcamente treinado – extremamente pedagógica: Através das geometrias se é possível observar os fluxos vetoriais (cargas, impulsos, pesos etc.) que a geram e aos quais resiste. Essa nos diz então duas coisas: tanto expõe evidencias do ciclo produtivo e as marcas do processo de suas construção – ou seja, nos expõe a materialidade da coisa, sua existência no mundo real -, quanto estes mencionados fluxos, que são nada menos que a Ideia, a abstração cientifica, o mundo Platônico, que encontra maneira de se expressar numa particularidade, numa obra existente no mundo real, que se expressa na matéria. Assim se observa no Giocco della Pelota, mas também ao longo da obra de Nervi, uma poética que ao mesmo tempo toma uma dimensão material, quando filosófica: expressa-se uma síntese do material e imaterial que demonstra uma possível escapatória da condenação de Platão à arte como inútil ou deceptiva. Com Pier Luigi, encontramos formas de uma poética profundamente crítica: tem consciência do mundo material, mas também possui traços de revisionismo não só arquitetônico como filosófico.
Assim, nos é nítida a razão de Nervi tornar difícil distinguir os limites entre o engenheiro civil e o arquiteto. Recobre-se de um verniz cartesiano, do qual destaca-se sua busca por otimização, economia e eficiência nas estruturas, na qual, relata, sempre seu primeiro instinto é procurar soluções estruturais nas quais as cargas dinâmicas e estáticas sejam levadas às fundações da forma mais direta e com o mínimo de material dispendido possível (Nervi, p.24). Dessa primeira preocupação sistemática, parece decorrer uma poética como se inadvertidamente, como se suas esbeltas e trançadas formas fossem resultado incidental, apesar de recorrente, do cálculo estrutual: “esse trabalho resultou de pequenos refinos de forma e conexões pois os guias estáticos davam sugestões que em si eram esteticamente expressivas quando traduzidas em desenho. Durante minha vida, nunca desviei desse método” (Nervi, p.24), sublima o arquiteto.
Porém, basta um breve relance nas obras de Nervi, das quais a Gioco della Pelota figura entre as mais simples, para constatar que se sugestões alçaram as formas, essas foram muito bem acatadas; as intricadas geometrias em concreto de Nervi transcendem a construção e o colocam no patamar da mais refinada tectônica. São inovações técnicas em engenharia estrutural traduzidas em poesia construída, que certamente continuarão inspirando gerações de engenheiros e engenheiras, arquitetas e arquitetos mundo a fora.
Referências bibliográficas
ACAYABA, Marlene. Brutalismo caboclo e as residências paulistas. São Paulo: Revista Projeto n.73, março de 1985. Disponível em: https://revistaprojeto.com.br/acervo/brutalismo-caboclo-e-as-residencias-paulistas-por-marlene-milan-acayaba/. Acesso em 17/1/2021, às 16h24.
BANHAM, Reyner. New Brutalism: Ethic or Aesthetic? Nova Iorque: Architectural Press, 1966
BASTOS, Maria Alice Junqueira e Ruth Verde ZEIN. Brasil: Arquiteturas após 1950. São Paulo, Perspectiva: 2015.
GARGIANI, Roberto; BOLOGNA, Alberto. The Rhetoric of Pier Luigi Nervi: Concrete and Ferrocement Forms. Lausanne: EPFL press, 2016.
NERVI, Pier Luigi. Aesthethics and Technology in Building. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1965.
PANOFSKY, Erwin. Ideia: a evolução do conceito de belo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.