Madri demolirá o elevado da autopista M30, localizado entre os bairros de Puente de Vallecas e Retiro. Esta foi a decisão unânime dos conselheiros do Pleno do Ayuntamiento de Madrid, parlamento municipal cujos membros são eleitos, reunidos no dia 30 de Março passado. Segundo o autor da proposta, o conselheiro e membro do partido Más Madrid, Francisco Pérez Ramos, a decisão é importante, pois o viaduto se transformou “em muro”.
Inaugurado em 1977 o elevado recebe diariamente 170 mil veículos, e integra o anel rodoviário M30. Contudo, ao contrário de outras cidades, em Madrid o anel atravessa áreas densamente habitadas. É este o caso do trecho no qual se localiza o viaduto, na transposição das avenidas Cidade de Barcelona e da Albufera. Deste modo, ele contribui para que Madrid possua a maior taxa de mortalidade por dióxido de nitrogênio de toda a Europa [1]. O tráfego intenso da M30 também provoca níveis de ruído excessivo. Para tentar mitigar esta situação foram instalados painéis acústicos ao longo de todo o elevado. Porém, além do tráfego intenso, a própria estrutura do viaduto degrada o ambiente de seu entorno. Com suas oito pistas de rolamento, ele projeta uma imensa sombra sobre a rua. Parte do seus baixos foi transformada em estacionamento, e junto à Avenida da Albufera está localizada a estação Puente de Vallecas do Metrô. Nenhum destes usos foi capaz de impedir a transformação do elevado em elemento de degradação ambiental e desarticulação urbana. Este quadro acaba por cristalizar as diferenças extremas entre os bairros vizinhos: enquanto Puente de Vallecas é o bairro de maior vulnerabilidade social de Madri, Retiro é o menos vulnerável da cidade.
Desde 2004, por conta da construção dos túneis que receberam parte do tráfego da M30, o debate político sobre a demolição do elevado ganhou força, pois houve uma redução de 42% na circulação de veículos no local. Estudos demonstram [2] que o sistema viário existente necessitaria pequenas melhorias para absorver o tráfego do elevado. Além disso, estima-se que a retirada do elevado permitiria uma valorização dos imóveis e um impulso às atividades comerciais do entorno. As associações de bairro de Puente de Vallecas-San Diego, Doña Carlota-Numancia, e Los Pinos Retiro Sur se organizaram em um movimento pela demolição de “uma das grandes barreiras físicas da cidade”. Elas também reivindicavam a construção de um parque que pudesse melhorar a qualidade ambiental e urbana da região. Apesar de várias vezes prometida, por diversos governos, foi necessário aguardar até 2021 para que a obra fosse confirmada.
A proposta aprovada pelo Pleno ainda se apresenta como um plano de massas. A prefeitura de Madri já anunciou a criação de um grupo de trabalho, cujo objetivo é formular o projeto de demolição, mobilidade, e referendar as propostas junto às associações de bairro envolvidas. A área de intervenção possui 133 mil metros quadrados, e estima-se um custo de 30 milhões de euros para a demolição do viaduto, e outros 45 milhões para as obras de urbanização do entorno. Na tentativa de mitigar o processo de gentrificação que a esperada valorização acarretará, será criado um plano de regeneração urbana do entorno, com foco na questão habitacional, através da construção de novas moradias e regras para a limitação dos preços dos aluguéis. Estas medidas se alinham ao Programa Acuerdos de la Villa, aprovado pelo Pleno del Ayuntamiento, em julho de 2020, e que prevê uma série de medidas para a reativação da cidade, impactada pela pandemia Covid-19, como reabilitações urbanas e fomento de mobilidade sustentável.
Com a demolição do elevado surgirá um imenso espaço a ser redesenhado. Nele serão implantadas áreas verdes que irão quitar o histórico déficit ambiental da região. O futuro parque deverá dar continuidade e fluidez ao tecido urbano existente. O pedestre será o protagonista do novo desenho urbano. O objetivo primordial será garantir a conexão entre os bairros da vizinhança. Para tanto, se prevê o incentivo aos usos mistos na área, que trazem diversos ciclos de ocupação e circulação dos espaços públicos, ao longo do dia e da noite, favorecendo a segurança pública. Também está prevista a criação de uma área intermodal, que permita o acesso direto das paradas do sistema de ônibus, às estações de Metrô. O cronograma prevê o início das obras em 2023, na próxima administração municipal ainda a ser eleita.
Diante desta realidade, é impossível não traçarmos paralelos em relação ao Minhocão, em São Paulo. Apesar de diferenças significativas, alguns aspectos podem ajudar os paulistanos a definirem o futuro do seu elevado, cuja remoção, ou transformação em parque, está prevista no atual Plano Diretor da cidade. O primeiro ponto é a constatação de que uma intervenção deste porte, em área tão densamente habitada, cria valor imobiliário que pode gerar processos de gentrificação. Antes de falarmos sobre o futuro do Minhocão, é preciso cuidar e proteger os moradores dos seus arredores. O cuidado com a habitação, os preços dos aluguéis, e os pequenos comerciantes, será fundamental para que a região não produza um processo injusto e excludente. Neste sentido, a participação das associações de bairro precisa ser valorizada pelo poder público e pelo setor privado. A presença destas instituições tornará o processo mais democrático e justo.
Evidente que a proposta de um parque que ocupe o solo, onde antes estavam fincadas as estruturas do elevado, também merece uma reflexão. A visão de que o elevado é uma barreira, que trava, ou pelo menos dificulta as dinâmicas e fluxos urbanos, por conta da degradação ambiental por ele produzida, pode ser aplicada ao Minhocão. Assim como em Madri, ele também separa bairros com características sócio-econômicas muito diferentes, como Higienópolis e Barra Funda. Nos baixos do viaduto paulistano estão alguns dos piores índices de poluição sonora e atmosférica da cidade, por conta do efeito tampão produzido por sua estrutura. Adicione-se a isto a eterna sombra projetada sobre o espaço público, e iremos entender os dramáticos impactos ambientais gerados pela imensa estrutura, que transporta cerca de 70 mil veículos por dia. Se o Minhocão fosse inteiramente demolido, o efeito tampão desapareceria. Os eixos da Rua Amaral Gurgel e da Avenida São João poderiam ser totalmente redesenhados, com a ampliação das calçadas (em alguns trechos, por conta de baias de estacionamento, elas não chegam a um metro de largura), plantio de árvores de grande porte, e instalação de equipamentos urbanos que garantiriam novos usos e dinâmicas ao local.
Outras experiências pelo mundo, com a da Times Square em Nova York, mostram que o alargamento e qualificação das calçadas resulta em aumento do faturamento dos estabelecimentos comerciais a elas ligados. Além disso, os Largos de Santa Cecília e do Padre Péricles, e a praça Marechal Deodoro poderiam recuperar suas antigas qualidades paisagísticas e urbanísticas, fortemente comprometidas pela agressiva passagem do viaduto de concreto. Por tudo isto, será importante acompanharmos a implementação da demolição do elevado madrilenho. Ele permitirá aos paulistanos ter uma visão mais ampla sobre os potenciais que a vizinhança do Minhocão possui, e muitas vezes são invisíveis.
Notas
1. MÁS MADRID. Desmontando el puente: Conecta Vallecas. Madrid: Más Madrid, 2021. Disponível em www.conectavallecas.org . Acesso em 01 de abril de 2021.
2. Ibid, pg. 24.