O que é a loucura e o sujeito que a configura, o louco? Quais os limites da normalidade e como ela é construída dialeticamente com a ideia da sanidade ao longo da história? Qual lugar o sujeito-louco ocupa na sociedade? Para se pensar sobre a loucura e sua relação com o espaço, seja físico ou social, é importante reconhecer conceitos éticos e epistêmicos que a caracterizam.
A “biopolítica”, conceito definido por Foucault como gestão estatal da vida, percebe a população como seres com características biológicas específicas que coexistem e devem ser regulados para atingir uma eficiência produtiva. A biopolítica instrumentaliza a vida humana, cuidando dos indivíduos úteis e abandonando os inúteis, um princípio da política moderna que se consolidou com a hegemonia do neoliberalismo (FOUCAULT, 2004).
O controle é a base do espaço biopolítico, principalmente em relação à circulação de pessoas e mercadorias, o que condiciona a liberdade ao poder econômico, sujeitando-a ao controle e intervenção que regula sua proporção. O mecanismo da biopolítica de proteger a sociedade dos sujeitos que considera inúteis e perigosos, se dá pela destruição deles com o objetivo de manter a prosperidade do único viver considerado legítimo (RITTER, 2014).
A sociedade disciplinar, resultante dos processos da biopolítica, emprega técnicas para atingir sua eficiência, dentre as quais está a exclusão não apenas do louco, mas também do pobre, do doente e do criminoso, dos que estão à margem dos sistemas econômicos. Os critérios de normalização dos sujeitos são definidos segundo interesses de estruturas socioeconômicas que, por meio de delimitação de padrões oficiais de instituições, determinam a polarização entre inclusão normalizadora e exclusão social.
O enquadramento, outra técnica disciplinar da biopolítica, trata-se de um conjunto de punições por métodos de vigilância, controle e olhares para prever e coibir comportamentos não desejáveis dos indivíduos. A punição institui a culpa, além de moralizar e corrigir as práticas, por meio da fragmentação do espaço para disciplinar os corpos individualmente.
Nas sociedades disciplinares, o poder sobre a vida busca preservá-la até o momento que for economicamente valorosa. Mas essa preservação é estabelecida por meio de um modelo a ser seguido, uma organização e uma vigilância para que o sujeito se enquadre na sociedade projetada em resposta a um sistema econômico. O domínio no espaço das dinâmicas do biopoder e as práticas de disciplina da circulação fazem com que o espaço seja histórico e político.
Essa sociedade disciplinar exerce seu poder pelo controle que as instituições possuem sobre os indivíduos. O modelo de gestão de vida é estabelecido pela negatividade, pela proibição e obediência dos sujeitos. Byung-Chul Han, filósofo teuto-coreano, diz que a sociedade disciplinar aponta para um paradigma imunológico, em que o objeto de defesa é o estranho. Uma guerra declarada à diferença, na qual este outro, mesmo que não tenha qualquer intenção hostil, é eliminado devido sua alteridade:
A sociedade disciplinar é uma sociedade da negatividade. É determinada pela negatividade. É determinada pela negatividade da proibição. O verbo modal negativo que a domina é o não-ter-o-direito. Também ao dever inere uma negatividade, a negatividade da coerção. – HAN, 2010, p.24.
As instituições, como ferramentas das práticas de biopoder, estabelecem os métodos de coerção dos sujeitos para regulá-los, com objetivo de torná-los mais produtivos. Caso contrário, são internados, presos, excluídos e atacados em uma lógica social militarizada.A arquitetura pode ser definida como a encarnação simbólica da ordem social, com a intenção de organizar de modo coerente a imagem da sociedade por meio de conjuntos urbanos e edifícios. São também dispositivos de imposições aos sujeitos e os principais alvos em tempos de revolução, como a Bastilha, cuja queda é um marco da Revolução Francesa. A arquitetura e seus monumentos camuflam o ser social e as práticas de poder que fundam e regem a sociedade (WISNIK, 2018).
BARBACENA
Um exemplo de práticas disciplinares sobre a loucura foi o Hospital-Colônia de Barbacena, caso relatado pela jornalista Daniela Arbex, que conta sobre pelo menos 60 mil mortes, de 1903 até o final dos anos 1980, quando a instituição foi fechada por conta das inúmeras denúncias. Os indivíduos, em sua maioria, eram internados à força, levados de trem sem passagem de volta. Eles perdiam seus nomes, tinham suas cabeças raspadas e roupas arrancadas, ou seja, uma redução máxima do que caracterizava o indivíduo e sua subjetividade.
Cerca de 70% não tinham diagnóstico de doença mental. Eram epiléticos, alcoolistas, homossexuais, prostitutas, gente que se rebelava, gente que se tornara incômoda para alguém com mais poder. Eram meninas grávidas, violentadas por seus patrões, eram esposas confinadas para que o marido pudesse morar com a amante, eram filhas de fazendeiros as quais perderam a virgindade antes do casamento. Eram homens e mulheres que haviam extraviado seus documentos. Alguns eram apenas tímidos. Pelo menos trinta e três eram crianças. – ARBEX, 2013, p.14.
As condições eram as piores possíveis, o excedente de internos fazia com que espaços projetados para duzentas pessoas abrigassem cerca de cinco mil. Os recursos eram escassos, os prisioneiros desse campo de concentração por vezes comiam ratos, bebiam esgoto e urina, dormiam em amontoados de capim. Eram mantidos sem roupas mesmo com temperaturas abaixo de 8ºC e, para se aquecer, dormiam em rodas e alternando entre o lado de fora e de dentro, mas muitos não chegavam vivos ao dia seguinte (ARBEX, 2013).
Os registros do fotógrafo Luiz Alfredo, realizados durante uma visita ao hospital em 1961, foram fundamentais para documentação e denúncia dos maus tratos que os internos de Barbacena sofriam. As fotos revelam a condição de abandono de seus corpos e a precariedade de saneamento e infraestrutura em uma instituição que, ironicamente, zelava pela saúde e bem-estar (apesar do pequeno impacto à época, as fotografias de Luiz Alfredo ilustram o livro e o documentário de Arbex, originados de suas matérias jornalísticas e que lhe renderam o Prêmio Esso de Jornalismo em 2012). Ambos os trabalhos mostram que o Hospital de Barbacena não buscava a cura ou a melhora de seus pacientes, mas era sim um espaço de dominação e aprisionamento, uma sentença de confinamento em que o juiz e algoz são uma moral opressora sob uma máscara de cientificismo médico.
Os tratamentos de choque eram aplicados como castigo físico ou por pessoas sem preparo, com uma intensidade e voltagem tão alta que levou muitos à morte, além de derrubar a rede de energia do município. Mas o hospital e os loucos eram fonte de renda para o município: além de atraírem verba pública, eram mão de obra escrava para infraestrutura em Barbacena, e até mesmo os cadáveres geravam lucro em vendas ilegais. Estima-se que 1.853 corpos foram vendidos para faculdades do país. Quando houve uma saturação do mercado de cadáveres, estes eram dissolvidos em ácido, nos pátios, na frente dos demais pacientes, para que os ossos pudessem ser negociados.
Essas ações de enquadramento, repressão e extermínio foram usadas para atender uma demanda econômica, mas também política. Como contrapartida por Barbacena ter perdido a disputa com Belo Horizonte para ser capital de Minas Gerais, o Hospital atendeu a interesses políticos, aqueceu a economia do município pelo aumento de demanda de consumo proporcional ao aumento da população. Novos postos de emprego no hospital eram trocados por votos pelos coronéis da política mineira, em uma política de curral eleitoral, e atraíam pessoas de fora para Barbacena.
Até a década de 1980, dezenove dos vinte e cinco hospitais psiquiátricos de Minas Gerais estavam no corredor de Barbacena, Juiz de Fora e Belo Horizonte. Os três municípios concentravam 80% dos leitos de saúde mental do Estado. A comercialização da saúde mental mantinha os números de internamento elevados. O parâmetro da Organização Mundial da Saúde (OMS) estabelece uma referência de três internamentos para cada mil, mas um levantamento de 1979, do setor de saúde psiquiátrica de Minas Gerais, revelou sete internamentos para cada mil. A cada duas consultas e meia, uma pessoa era hospitalizada no estado.
A confluência de interesses políticos e econômicos com a saúde pública, sobretudo na questão da saúde mental, que fora cooptada por setores moralistas e higienistas da sociedade, transforma a arquitetura em espaços biopolíticos para que se lucre, financeira ou politicamente, sobre esses indivíduos marginalizados. A aglomeração, o encarceramento e a exploração desses corpos, vivos ou mortos, retratam a capacidade de destruição do espaço construído.
O espaço arquitetônico está relacionado às práticas de poder e de saber da sociedade, que produzem subjetividades nos indivíduos inseridos na mesma. Como dito anteriormente, a arquitetura é a encarnação simbólica da ordem social que organiza a ética e estética da sociedade.
A análise de saberes diferentes perante as instituições mostra como as práticas do poder agem no espaço. O Hospital-Colônia de Barbacena revela as interferências políticas e econômicas a que as instituições estão sujeitas, sendo influenciadas e usadas como exclusão de indivíduos à margem da moral. Estes são coagidos a se inserir em uma subjetividade hegemônica, assim como atender a um sistema financeiro que se utiliza de corpos, vivos ou mortos, para atingir o lucro máximo.
Este ensaio é um excerto originalmente publicado na Revista Cadernos de Pesquisa #10 da Associação Escola da Cidade e disponível para consulta aqui. Trata-se de publicação proveniente de Trabalho de Conclusão de Curso entregue em 2019, intitulado “Espaço em desatino: poder, estética e transgressão” sob orientação do Prof. Dr. Celso Lomonte Minozzi (FAU-MACK).
Referências bibliográficas
ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro: vida, genocídio e 60 mil mortes no maior hospício do Brasil.São Paulo: Geração, 2013.
FOUCAULT, Michel. A História da loucura. 9. ed. São Paulo: Perspectiva, 1972.
______. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2010.
RITTER, Vivian Fetzner. O Espaço e a biopolítica. Poliética, Revista de Ética e Filosofia Política, São Paulo, v.1, n.2, p.112-137, jan. 2014.
WISNIK, Guilherme. Dentro do nevoeiro. São Paulo: Ubu, 2018.