Em artigo recentemente publicado aqui no ArchDaily sob o título “Por que o Do-It-Together pode ser a solução para muitos problemas da arquitetura?”, chamamos a atenção para o fato de que uma nova geração de arquitetos está questionando a “velha maneira de se fazer arquitetura” e trazendo consigo mudanças consideráveis para a industria da construção civil, especialmente no que se refere às camadas mais pobres da população.
Entretanto, como uma prática fundamentalmente baseada no estabelecimento de processos colaborativos envolvendo profissionais e pessoas de diferentes origens, disciplinas e classes sociais, a arquitetura Do-It-Together ainda precisa superar uma série de desafios para firmar-se como uma alternativa que possa fazer frente as formas mais tradicionais de se fazer arquitetura. Isso porque, na industria da construção civil atuam uma série de diferentes profissionais e, como é de se esperar, a diversidade de opiniões sobre um mesmo tema costuma variar enormemente. E isso não necessariamente é algo ruim. Quando se trata de arquitetura e espaço urbano, a multiplicidade de ideias, soluções e abordagens para se lidar com um determinado problema pode ser algo muito vantajoso.
Neste segundo artigo, procuramos abordamos o fenômeno da “Arquitetura Do-It-Together” como um instrumento capaz de transformar a realidade de muitas pessoas através do estabelecimento de processos colaborativos inter-culturais e interdisciplinares. Quando profissionais e não profissionais se unem em prol de um objetivo comum, seus diferentes interesses, experiências de vida e conhecimentos técnicos somados e sobrepostos podem gerar novas soluções e abordagens, que de outra forma, jamais existiriam—como bem ilustram os dois estudos de casos que apresentaremos a seguir:
Estudo de Caso I, ModSkool, Nova Delhi, Índia
Tudo começou quando as autoridades locais da cidade de Nova Dehli, Índia, decidiram remover uma série de casas e uma escola construída junto à favela Chilla Khadar. Depois de testemunhar a demolição, o assistente social Abdul Shakeel entrou com um processo contra a prefeitura, solicitando a emissão de uma permissão para reconstruir a escola no mesmo local. A permissão foi finalmente concedida e Abdul Shakeel decidiu chamar duas arquitetas locais, Swati Janu e Nidhi Sohane, as quais concordaram em desenvolver o projeto da nova escola de forma voluntária.
Foi assim que nasceu o projeto da Escola Modskool, uma estrutura temporária e desmontável concebida em parceira entre os ativistas, as arquitetas e alguns membros da comunidade local. Procurando arrecadar fundos para financiar a construção da Escola, Swati e Nidhi inscreveram o projeto em nosso Global Challenge de 2016, no qual ele foi escolhido como um dos finalistas—alavancando o processo que culminaria com a construção e inauguração da Escola um ano mais tarde.
Para o financiamento do projeto e construção da nova Escola de Chilla Khadar, as arquitetas criaram uma campanha nas redes sociais engajando toda a comunidade local. O comprometimento de todas as partes envolvidas no projeto chamou a atenção de uma empresa de construção, a qual além de contribuir financeiramente para com o projeto atuou ativamente como consultora nos processos de projeto e construção. Com o início das obras, mais de 60 voluntários da comunidade local assim como de outros lugares do país e do mundo se uniram para transformar o projeto da Escola Modskool em realidade. Neste contexto, muitas das decisões de projetos foram tomadas ao longo do processo de construção, engajando a comunidade e usufruindo do conhecimento técnico específico dos diversos profissionais envolvidos com a obra.
Construída em menos de três semanas e inaugurada em 2017, um ano mais tarde a ModSkool teve de ser desmontada em razão das disputas sobre a propriedade da terra na favela de Chilla Khadar. Em 2019, a escola foi finalmente realocada e reconstruída com sucesso com a colaboração da Child Trust. Com pequenos ajustes e melhorias, a segunda versão do projeto da Escola ModSkool se mostrou ainda melhor e mais eficiente.
Como resultado desse processo de luta e engajamento de profissionais e membros da comunidade local, o qual culminou com a construção e reconstrução da Escola ModSkool em Nova Delhi, Swati e Nidhi fundaram a Social Design Collaborative, um escritório de arquitetura voltado ao desenvolvimento de projetos colaborativos similares. No ano passado, a ModSkool não foi apenas nomeada para o Concurso Beazley Design, ela foi a grande vencedora na categoria de melhores projetos de arquitetura.
Dito isso, a ModSkool definitivamente se provou um exemplo inovador de arquitetura Do-It-Together. Concebido como uma resposta urgente a um problema real e impulsionado pelo forte engajamento das lideranças locais, contando ainda com o apoio de uma série de diferentes profissionais, o projeto da Escola ModSkool estimulou o diálogo entre as autoridades locais, os líderes comunitários e os profissionais da industria da construção civil.
Estudo de Caso II, The Granby Four Streets, Liverpool, Reino Unido
Localizado no bairro de Toxteth, Liverpool, um conjunto de casas geminadas conhecido como The Granby Four Streets esteve ameaçado de desaparecer por muitos anos. Ao longo do tempo, este simpático bairro industrial de Liverpool foi sendo esquecido e negligenciado. Com seus anos de glória no passado, muitos negócios locais fecharam e seus antigos moradores se mudam para outros lugares da cidade em busca de melhores oportunidades. Entretanto, os moradores que ficaram—obstinados em proteger o seu tão amado bairro—, iniciaram uma campanha que incluía jardinagem de guerrilha, limpeza das ruas, pintura de casas abandonadas e organização de feiras de rua mensais para arrecadar fundos e chamar a atenção das autoridades locais. Neste contexto, a primeira grande vitória dos moradores do bairro foi o estabelecimento da chamada Community Land Trust (CLT), uma iniciativa comunitária criada em 2011 para defender os interesses dos moradores do bairro. A CLT conseguiu barrar o planos de demolição das casas e alavancar um financiamento público para a reforma das muitas estruturas abandonadas de Toxteth.
Outra importante conquista dos moradores, organizados através da Community Land Trust, foi a parceria firmada com o coletivo de arquitetura Assemble. Inspirados pela iniciativa dos moradores do bairro em defesa do patrimônio histórico construído de Toxtethm, os arquitetos se uniram com entusiasmo ao projeto. Até o momento, 10 casas abandonadas já foram reformadas, uma delas foi transformada em um ateliê de cerâmica e outra em um jardim público acessível a todos os moradores do bairro.
O The Granby Four Streets é uma iniciativa inovadora no campo da arquitetura Do-it-Together e que merece toda a nossa atenção. Como um projeto comunitário, criado pelos moradores em defesa ao seu bairro, o Granby Four Streets desafia muitos dos conceitos tradicionais de um projeto de renovação urbana. Ao longo do processo, desde a concepção da ideia até a execução do projeto, a ‘comunidade insatisfeita’ deixou de assumir uma postura passiva e partiu para a ação—os moradores tornaram-se agentes ativos de mudança e transformação. Firmando parcerias com diversos profissionais e engajando a comunidade local em processos participativos, os moradores ganharam poder de voz nas decisões a respeito do futuro de seu próprio bairro. Por outro lado, as autoridade locais, os investidores e os demais profissionais envolvidos aprenderam muito com o ativismo comunitário.
Projetos de regeneração ou reforma urbana em pequena escala, como é o caso do Granby Four Streets, costumam chamar pouca atenção e portanto, são menos atraentes do ponto de vista mediático, político e consequentemente, econômico. O projeto do Granby Four Streets, entretanto, deixou todo mundo de boca aberta quando foi nomeado vencedor do Turner Prize no ano de 2015, um dos mais importantes e prestigiosos prêmios de arte do Reino Unido. Ao invés de premiar os artistas que transformaram a cara do bairro, a comissão do Turner Prize dedicou o prêmio ao coletivo de arquitetos Assemble e a comunidade organizada através da Community Land Trust. Na ocasião da premiação, o júri elogiou o projeto e sua “abordagem responsiva e regenerativa, um planejamento urbano que contrasta fortemente com a gentrificação corporativa”. A Community Land Trust acredita que a força do projeto está no engajamento de toda a comunidade e que somente através de um grupo coeso e unido é possível se proteger da especulação sobre a terra e a propriedade.
Contrariando todas as expectativas e através do estabelecimento de processos colaborativos de projeto capazes de engajar toda uma comunidade, a ModSkool e o Granby Four Streets nos mostram que projetos de arquitetura e planejamento urbano feitos de baixo para cima também são possíveis e viáveis. É importante notar que, o comprometimento e o engajamento de diversos profissionais, principalmente arquitetos e urbanistas, foi fundamental para sucesso destas duas empreitadas.
Tanto a ModSkool quanto o Granby Four Streets são projetos que surgiram de uma necessidade real e palpável. Uma urgência que fez com que as pessoas esquecessem suas diferenças e se unissem para lutar por uma causa comum. Ambos projetos são exemplos a serem seguidos, um legado que fica tanto para as comunidades quanto para todos os profissionais envolvidos. Eles nos oferecem uma alternativa a “velha maneira” de se fazer arquitetura, estabelecendo um processo colaborativo baseado na confiança. É nisso que reside a força de um projeto colaborativo, na participação ativa e engajamento entre moradores, profissionais, autoridades, investidores e voluntários. Bem-vindo à nova era da arquitetura Do-It-Together (DIT).
Architecture-in-Development <https://architectureindevelopment.org/> é uma plataforma global da qual participam mais de 60.000 profissionais da industria da construção civil. Procurando explorar novas formas de colaboração entre arquitetos profissionais e comunidades locais, a Architecture-in-Development procura estabelecer processos participativos e colaborativos com o principal objetivo de construir estruturas inovadoras e capazes de transformar a vida das pessoas.