Madeira engenheirada na arquitetura indígena da América do Norte: adaptação e resiliência

A popularidade crescente dos produtos de madeira em massa, no Canadá e nos Estados Unidos, levou a uma redescoberta dos seus fundamentos entre os arquitetos. Não menos importante para os arquitetos indígenas, para quem a madeira engenheirada oferece um caminho para recuperar e desenvolver as tradições de construção de seus ancestrais. Como a madeira é um recurso natural renovável e uma fonte de empregos florestais, ela se alinha aos valores indígenas de administração e comunidade, obscurecidos pelas práticas de construção dominantes do século XX.

Para Brian Porter, diretor da Two Row Architect em Ohsweken, Ontário, a madeira em massa obriga os arquitetos a reaprender a arte de aproveitar ao máximo os materiais naturais. “De onde eu venho, Seis Nações do Grande Rio, todos éramos habitantes da casa comunitária - longhouses”, disse Porter, “a maioria das casas deste modelo são feitas de pilares de madeira de dez ou quinze centímetros de diâmetro, que foram moldados para configurar arcos estruturais.” Após tensionar os troncos de madeira, os antigos construtores modificavam o material para tirar o máximo proveito de sua resistência inerente. Segundo Porter, a madeira laminada cruzada (CLT), a madeira Laminada Colada (glulam ou MLC) e demais produtos relacionados, atualizam essa abordagem, já que utilizam "espécies de madeira macia não tão preciosas, que crescem rapidamente, agrupando-as em colunas e planos bidimensionais". A estrutura radial em glulam da Câmara do Conselho, no Edifício Administrativo Allegany de Seneca Nation, em Salamanca, Nova York, exemplifica a fusão do escritório Two Row, com formas culturalmente respeitadas e novas interpretações de materiais antigos. O projeto foi concluído em 2010 por Kideney Architects, de Buffalo.

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O Centro de Descobertas Anishinabek, em Sault Ste. Marie, Ontário. O local possui um impressionante telhado de madeira em abóbada de berço. Imagem © Matthew Hickey. Cortesia Two Row Architect

A madeira já havia alcançado um status de “massiva” na Áustria e na Alemanha, no início dos anos 1990, mas ainda não tinha se enraizado na América do Norte, local onde o material também não estava sendo implantado conforme os princípios dos povos indígenas, que pertencem às nações Inuit ou Métis, ou as tribos da Primeira Nação. De acordo com Porter, o primeiro edifício a aplicar a técnica construtiva, foi uma pequena escola para os Stó: lō (Lower Fraser River Salish ou Séliš) pessoas que viviam na tribo de Seabird Island, a algumas horas de carro a leste de Vancouver. Projetado por Patkau Architects e inaugurado em 1990, o projeto utilizou vigas Weyerhaeuser Parallam paralelas, tábuas de madeira OSB e telhas de cedro, técnica conhecida por Porter como "uma interpretação moderna não apenas da casa de madeira, mas também da paisagem circundante."

Conceitualmente sensível e espacialmente generosa, a Escola de Seabird Island, no entanto, continua a ser uma exceção ao modelo de construção utilizada pelos povos indígenas do Canadá, caracterizada por um projeto genérico, com redução de custos e desatenção cultural. Douglas Cardinal, um dos estadistas mais velhos, entre os arquitetos indígenas, viu ao longo de sua carreira lampejos de promessas superados repetidamente pelas forças da convenção. Ele lamenta o desmatamento das florestas e reprova o modelo empobrecido da construção do século XX, que se aplica às comunidades indígenas. “Você tem subúrbios cheios de casas de madeira e paredes de gesso, que estão, na verdade, direcionando a energia para fora de suas paredes e janelas”, disse Cardinal. “Os verdadeiros arquitetos de nossas casas, não são arquitetos, e sim construtores, que estão tentando fazer as coisas da maneira mais barata e desagradável possível.”

Ele descobriu que a madeira em massa é aplicável em vários projetos, particularmente para a aldeia da Nação Cree Oujé-Bougoumou, a sudeste de James Bay, no norte de Quebec. A aldeia ganhou o prêmio “We the Peoples” das Nações Unidas, o Habitat II: Best Practices Award e o Canada Mortgage and Housing Award. Como um retorno aos materiais naturais, afirma ele, a madeira auxilia na durabilidade, na resistência ao mofo e ao fogo, na estética e na eficiência energética. Esse aspecto performativo do know-how de construção indígena merece o mesmo nível de valorização dado aos seus aspectos culturais, argumenta Harriet Burdett-Moulton. Burdett-Moulton, uma ex-arquiteta sênior da Stantec, que vem de uma formação Labrador Métis, fundou a primeira empresa de arquitetura do Ártico oriental e projetou mais de 200 edifícios em Nunavut, o território mais ao norte do Canadá. Ela lembra como as regiões árticas são complicadas para aplicação de materiais, que precisam ser "enviados de fontes distantes, muitas vezes apenas uma vez por ano". Se algo quebra ou deforma durante o trajeto, não é substituído e os materiais mais resistentes a danos - principalmente o aço e o concreto - são pesados, portanto, caros de transportar. Além disso, as baixas temperaturas tornam o concreto difícil de trabalhar, acrescentou Burdett-Moulton.

A madeira, por outro lado, é renovável, fácil de trabalhar e adaptável, assim como a CLT, que, ela observou, lida com condições de baixa umidade melhor do que a madeira não tratada. Burdett-Moulton afirma, “o teor de umidade da madeira aceitável no sul do Canadá se deforma e racha após chegar ao local, em lugares como Igloolik, Pangnirtung ou Qikiqtarjuaq”.

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O projeto do Patkau Architects para uma escola na Seabird Island Band, a leste de Vancouver, foi uma indicação inicial de que a madeira maciça poderia ser usada de acordo com os princípios indígenas. Imagem © James Dow. Cortesia Patkau Architects

Mas os benefícios materiais da madeira em massa não são suficientes para corrigir os padrões das construções genéricas, que sofrem muitas vezes quando os construtores externos não têm comprometimento com os habitantes locais. De acordo com Burdett-Moulton, fornecedores a centenas de quilômetros de distância geralmente enganam comunidades remotas, enviando produtos de qualidade mais baixa, sabendo que a devolução é cara. Mesmo os esforços bem-intencionados do governo canadense, exigindo que os projetos de construção em aldeias ou tribos recebam sugestões de consultores indígenas, não causaram impacto, disse ela. “As pessoas selecionadas como consultores, muitas vezes não entendem o que está sendo exigido. Pouca atenção foi dada ao treinamento ou explicação para a população local sobre o que é um projeto específico, ou o tipo de informação que seria útil para os arquitetos.”

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O exterior do Piqqusilirivvik. Imagem © Dave Brosha. Cortesia Stantec

Burdett-Moulton afirma que as comunidades indígenas têm escassez de moradias, e o uso expandido da madeira poderia evitar tais situações, não fosse por obstáculos processuais. Porter reforça sua queixa e aponta para códigos de construção e apólices de seguro, que efetivamente impedem o uso de materiais não certificados - ou seja, madeira cortada e fresada localmente - mesmo em casos em que seja fiscal e ambientalmente benéfico. Em particular, nas tribos das Primeiras Nações, Porter afirma, "estão cercadas por florestas de madeira, mas, os seus acordos de financiamento os restringem ao uso de madeira graduada, eles estão cercados por esses recursos que não podem usar. Eles são impedidos pela burocracia de incorporar madeira colhida localmente em suas soluções habitacionais".

Em vez disso, casas baratas vulneráveis ao mofo têm sido aplicadas como soluções rápidas. Insatisfeito com o modelo atual, Douglas Cardinal desenvolveu um protótipo modular que é modulável e também durável, graças à sua estrutura de madeira maciça. Revelado em 2019 na Elsipogtog First Nation em New Brunswick, a Cardinal House usa painéis CLT pré-fabricados para acelerar a construção e melhorar a qualidade e os custos, após a fabricação externa dos painéis à prova de intempéries em um ambiente controlado, a montagem no local leva em torno de três dias. Em um projeto anterior ao da CLT, projetado no norte de Quebec para os Algonquins, Cardinal ajudou a aliviar a escassez de empregos sazonais locais. A construção da Long Point School, em Winneway, foi tão rápida e eficiente que os trabalhadores não precisaram parar durante o inverno, período no qual normalmente os projetos de construção são suspensos por alguns meses.

Paradoxalmente, no momento em que o interesse pelas práticas de construção indígenas está no auge, Cardinal olha para o norte da Europa em busca de estratégias para aumentar a aplicação da madeira massiva dentro e ao redor de tribos e aldeias indígenas. Seus estudos de métodos de construção e silvicultura alemães e noruegueses o convenceram de que o Canadá, com suas vastas florestas, deveria fazer o mesmo. “O centro de Bergen, na Noruega, é todo construído em madeira maciça, o local foi projetado na Idade Média e ainda está funcionando”, disse Cardinal. Na América do Norte, ele vê o noroeste do Pacífico adotando métodos de madeira massiva mais rapidamente, embora espere por uma prova de conceito influente em um centro cultural que fica nas terras de Lenape: "Acredito que um bom edifício de madeira em Nova York seria um atrativo para a indústria".

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Burdett-Moulton, uma ex-arquiteta sênior da Stantec e de origem Labrador Métis, utilizou a madeira massiva em uma instalação educacional para uma comunidade Inuit na Ilha de Baffin. Imagem © Dave Brosha. Cortesia Stantec

No entanto, existem muitos bloqueios de estradas que impediriam o aumento da utilização da madeira. Equívocos sobre resistência ao fogo, por exemplo, não são facilmente amenizados. As organizações comerciais são fundamentais para desalojar essas atitudes; entre eles, o Mass Timber Institute (MTI), com sede em Toronto, é o mais ativo, educando os profissionais de AEC sobre o impacto ambiental e econômico da madeira. Porter elogia essa divulgação, da mesma forma que aclama os esforços regionais, como a Whitefeather Forest Initiative, ao norte de Red Lake, em Ontário. A iniciativa listou a Primeira Nação Pikangikum, como parceiros de patrimônio em uma floresta sustentável e, como tal, oferece uma programação educacional para estudantes indígenas estudarem o manejo de ecossistemas.

No entanto, para Burdett-Moulton, a arquitetura indígena continua "um trabalho em andamento", para ela "existem arquitetos com raízes indígenas que estão mais próximos da terra e dos valores indígenas do que seus irmãos e irmãs arquitetos", ou seja, a experiência indígena nunca foi homogênea, nem é atualmente. Mesmo assim, Porter está otimista sobre o efeito cumulativo desse compartilhamento de conhecimento. Para ele, “a arquitetura convencional está se aproximando cada vez mais da visão de mundo indígena, que temos há 30.000 anos”.

Este artigo foi publicado originalmente no The Architect's Newspaper como "Indigenous traditions in North America emphasize resilience; engineered timber is helping realize those principles".

Sobre este autor
Cita: Millard, Bill. "Madeira engenheirada na arquitetura indígena da América do Norte: adaptação e resiliência" [Engineered Timber Helps Indigenous Architecture in North America to Emphasize Resilience] 07 Mai 2021. ArchDaily Brasil. (Trad. Bisineli, Rafaella) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/960985/madeira-engenheirada-na-arquitetura-indigena-da-america-do-nortea-adaptacao-e-resiliencia> ISSN 0719-8906

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