Uma vez que a urbanização acontece, seja legal ou ilegalmente, e os terrenos são subdivididos e povoados, é extremamente difícil reorganizar a posteriori seus limites, sobretudo de propriedade, e garantir terrenos para necessidades públicas básicas.
Tal dificuldade acontece devido a dois fatores principais. Em primeiro lugar, qualquer reorganização de terrenos requer o deslocamento dos usuários existentes, o que afeta suas redes sociais, culturais e econômicas — ou seja, o chamado “capital social” — e também afeta o senso de igualdade e de distribuição justa de direitos. Em segundo lugar, o valor do solo urbano aumenta com seu uso intensivo, especialmente quando a oferta é escassa em uma situação de grande demanda.
Nos últimos anos, o valor do solo urbano nos países em desenvolvimento tem aumentado em níveis acima da inflação ou do produto interno bruto. Esse aumento acontece pelo resultado das distorções causadas pela desigualdade entre os melhores e os piores terrenos atendidos com infraestrutura, somado a outras externalidades. Deste modo, parece certo afirmar que áreas urbanizadas no passado sofrerão pressões para a modernização de seu uso e ocupação do solo, e o antigo padrão de terrenos rurais, sistemas viários e divisões de propriedade inadequados serão um grande obstáculo à demanda emergente para o reparcelamento urbano.
Dois instrumentos são conhecidos por lidar com a reorganização de terrenos urbanizados. O primeiro deles é a desapropriação. A desapropriação é delegada pelo poder público, que exerce a função de compra obrigatória de bens privados para uso público, ou sua delegação a terceiros para que os destinem ao uso público ou cívico.
No entanto, atos expropriatórios não consideram a “eficiência de Pareto” — que define um estado de alocação de recursos na qual se mensura a melhora da situação de um indivíduo (ou agente econômico) sem piorar a situação de outro indivíduo (ou agente econômico) —, principalmente ao não esclarecer se os governos quando exercem desapropriações estão aumentando o bem-estar social ou simplesmente exercendo influência sobre um processo político orquestrado para transferir recursos de um grupo para outro.
O segundo instrumento é o land readjustment, praticado em muitos países há mais de cem anos — entre eles, Alemanha e Japão — e ainda pouco conhecido no Brasil. Projetos de land readjustment contribuíram nesses países para — em grande medida — consertar falhas do laissez-faire do denominado “mercado” ao reorganizar lotes irregulares; alterar o zoneamento para atendar a demanda de uso; retirar possíveis vantagens injustas de proprietários adjacentes a um novo sistema viário ampliado por meio de desapropriações; melhorar o escoamento da produção; e atualizar a titularidade da terra em casos aonde o registro não condiz com a realidade.
Land readjustment — em japonês, kukaku-seiri e em português, reajuste de terras ou reparcelamento do solo — é um instrumento de parceria público-privado na qual pretende-se a distribuição justa dos custos e benefícios nos processos de urbanização.
De que maneira? Por um lado, os proprietários de terrenos contribuem com uma parcela de sua propriedade para o aumento dos espaços públicos, buscando, em princípio, a manutenção ou atualização dos títulos de propriedade após a conclusão do projeto. Ou seja, eles continuam na área de projeto após a sua execução usufruindo dos benefícios do projeto. E, por outro lado, o governo é responsável por reorganizar as propriedades existentes e instalar novas infraestruturas nas áreas que se tornaram públicas, durante e após a execução do projeto.
Portanto, trata-se da contribuição de uma porcentagem da propriedade privada como captura de mais-valia em troca do fornecimento de infraestrutura e titularidade da terra. Além disso, em projetos de land readjustment, essa contribuição em porcentagem da propriedade privada também é utilizada para constituir os chamados terrenos-reserva, lotes que serão colocados à venda no mercado para ressarcir a agência de implementação do projeto — que, na grande maioria das vezes, trata-se do governo — e os custos da implementação dos projetos. Tudo isso ocorre sem o artifício da desapropriação e com a anuência dos proprietários envolvidos no projeto.
Em suma, duas vantagens prevalecem em projetos de land readjustment. Primeiro, lotes irregulares são reestruturados por meio do reparcelamento — ou a mudança da localização, formato, e área de vários terrenos — em lotes bem organizados, produtivos e de formatos regulares, aumentando áreas públicas e aliviando vários problemas urbanos e ambientais sofridos pelos proprietários em áreas de projeto.
Segundo, os proprietários arcam com os custos da urbanização por meio da contribuição de um percentual de sua área de terreno, e eles têm incentivos para fazê-lo porque, entre outras razões, o preço por metro quadrado aumentará após o processo de (re)urbanização.
Em outras palavras, por meio de projetos de land readjustment, a principal contribuição é na forma de terrenos que vão melhorar os espaços públicos — sistema viário, parques, calçadas e outros equipamentos públicos — e, consequentemente, valorizar o preço das propriedades privadas.
Como a desapropriação ou a incorporação de terrenos para instalações públicas pode ser proibitivamente cara, por meio do land readjustment e da venda dos terrenos-reserva para a recuperação dos custos do projeto é possível financiar projetos urbanísticos que não seriam viáveis por outros meios.
Do lado negativo, na prática, o land readjustment não é fácil de se adaptar em outros países, enfrentando numerosos desafios, incluindo as atualizações institucionais nas práticas de planejamento e a correção de falhas de coordenação entre o público e o privado para a execução de políticas públicas. Como muitas ações coletivas são necessárias, projetos de land readjustment podem se tornar demorados, complexos e complicados.
Do lado positivo, o land readjustment tem um enorme potencial para alcançar princípios democráticos fundamentais, como a implementação de projetos urbanísticos com base no consentimento dos governados, a igualdade por meio da distribuição justa dos custos e benefícios do desenvolvimento urbano, e processos de tomada de decisão mais transparentes, incluindo eleições justas dos representantes responsáveis pela implementação do projeto.
Em âmbito internacional, a escala e a qualidade das conquistas relacionadas ao land readjustment diferem consideravelmente de um país para o outro e de uma cidade para a outra, especialmente quando levamos em consideração as condições iniciais de seus sistemas e legislações de planejamento urbano.
Por fim, faz-se importante refletir sobre o land readjustment ser uma alternativa viável para a reorganização fundiária em cidades brasileiras. O Brasil possui um déficit muito grande em termos de infraestrutura e carece de recursos públicos para desapropriar tudo aquilo de terra que é necessário para a implementação dessas infraestruturas.
Além de ser um instrumento bastante flexível e abrangente em termos de escopo e operacionalidade, o land readjustment parece ser favorável ao contexto brasileiro por que, teoricamente, une a possibilidade de ser autofinanciável — capaz de financiar as mais diversas infraestruturas — pela venda de terrenos-reserva, junto com processos participativos nos quais é preciso convencer uma maioria de proprietários que o projeto vai efetivamente trazer benefícios para a comunidade local.
Porém, parece difícil que a classe política brasileira faça esforços para aprovar e implementar um instrumento urbanístico focado em contribuição em forma de terreno considerando o passado escravagista e latifundiário do Brasil.
O contexto brasileiro não parece favorável dado que há alta relação entre quem está no poder e detentores de terra; o cidadão não confia em seus governantes devido os altos índices — não apenas de corrupção — de projetos que são iniciados e paralisados na gestão político-partidária seguinte; e a defesa de uma ação mínima pelo Estado parece ser uma pauta cada vez mais forte na política brasileira.
Num contexto de Estado mínimo, projetos de land readjustment parecem inviáveis, dado que além de estabilidade institucional — capaz de tranquilizar os proprietários de terra que o projeto vai ter começo, meio e fim — esse tipo de projeto também requer uma capacidade de articulação muito robusta entre várias áreas. Isso inclui desde a engenharia — agrimensores, avaliadores, projetistas —, passando pela sociologia, para lidar com toda a parte de participação dos proprietários, até chegar na construção civil, que também é parte importante. Principalmente, caso o poder público pretenda implementar projetos atrelados a outros equipamentos de maior porte, como estações de trem ou metrô.
Algumas prefeituras no Brasil já possuem a descrição desse instrumento em seus planos diretores — entre eles Belo Horizonte e Curitiba — porém, infelizmente, sem qualquer implementação iniciada ou bem-sucedida até o momento.
Via Caos Planejado.