Este artigo foi publicado originalmente em Common Edge.
Dezenas de bairros da cidade de Nova Iorque foram recentemente reurbanizados com base em hipóteses inventadas e dados manipulados grosseiramente pelas autoridades municipais com a promessa de promover diversidade, acesso à moradia digna e inclusão social. Entretanto, nenhuma destas expectativas chegou a de fato a se concretizar, e o que é pior, na prática, o resultado foi exatamente o oposto disso: menos diversidade, menos moradias acessíveis e consequentemente, mais segregação e um processo de gentrificação generalizado. Ainda assim, muito pouco se fala disso. Mas o dano já está feito, e os incorporadores seguem aproveitando-se das regras do jogo para seu próprio benefício. E assim a cidade vai sendo transformada para a alegria de alguns poucos e a tristeza de muitos. Esta é a situação que Roberta Brandes Gratz explora em seu mais recente artigo entitulado “New Tork City”, analisando como as leis de zoneamento foram manipuladas para gerar um resultado oposto daquilo que se espera.
A versão oficial divulgada pelo município se parece muito com uma “cortina de fumaça”, uma tentativa desesperada de construir uma narrativa convincente sobre algo que não é. E agora a mesma história se repete com o novo projeto de reurbanização do SoHo/NoHo—mais um exemplo clássico da imoralidade administrativa na cidade de Nova Iorque.
A intenção da cidade em dissimular as suas verdadeiras intenções é evidente. As autoridades não mencionam o fato de que o novo zoneamento do SoHo/NoHo inclui parte considerável de Chinatown—e onde os impactos serão ainda maiores. Quando eles afirmam que o novo zoneamento promoverá uma maior diversidade nestes bairros, eles omitem o fato de que 40% dos atuais moradores não são brancos, sendo que 28,4% são asiáticos. Neste contexto, embora a cidade afirme que não há nenhum risco de gentrificação, os inquilinos de mais de 600 unidades residenciais de aluguel subsidiado espalhadas por mais de 100 edifícios do distrito foram identificados como potencialmente ameaçados de despejo. Isso sem dizer que a maioria destas unidades são ocupadas por residentes chineses e sino-americanos. Nos comunicados oficiais emitidos pelas autoridades locais também não há nenhuma informação sobre as controvérsias envolvendo a família Chu, uma construtora gerida por imigrantes profundamente conectados com a história do bairro. Eles também não divulgaram que um considerável numero de famílias de baixa renda que atualmente vivem em Chinatown já encontram-se ameaçadas com a inflação nos preços dos aluguéis—e a situação só tende a piorar.
A proposta de rezoneamento do SoHo/NoHo é um exemplo clássico da imoralidade administrativa na cidade de Nova Iorque. A proposta segue a mesma linha do que foi feito em outros bairros: hipóteses inventadas e manipulação de dados.
Na verdade, um estudo encomendado pela Sociedade para a Preservação do Patrimônio do Greenwich Village contradiz de forma evidente as estatísticas e alegações oficiais que acompanham o projeto de rezoneamento do SoHo/NoHo. Muito mais confiável que as hipóteses apresentadas pelo município, o relatório deste estudo foi apropriadamente intitulado de Rezoneamento do SoHo e NoHo: uma ameaça à diversidade socioeconômica e as moradias acessíveis. Outro estudo menos divulgado, encomendado pela Sociedade Municipal para as Artes (MAS) e chamado de Os dois lado de uma mesma moeda / Esmiuçando a Revisão da Qualidade Ambiental da Cidade de Nova Iorque (CEQR), chega ao mesmo resultado ao analisar o resultado objetivo do projeto de reurbanização de dois bairros da cidade.
De acordo com o estudo encomendado pelo MAS, os dois bairros analisados, Long Island e Downtown Brooklyn, estão agora “mais brancos, mais ricos e mais ocupados do que antes”. O relatório observa ainda que “o tão apregoado boom comercial no bairro nunca aconteceu. Muito pelo contrário, esses bairros foram transformados por uma explosão de empreendimentos residenciais de alto padrão.” Paralelamente, e o que é ainda mais grave, as escolas públicas existentes foram varridas do mapa.
Infelizmente, as autoridades locais não parecem nem um pouco preocupadas com as consequências deste modelo de reurbanização que já se provou ineficaz mais de uma vez.
Na prática, a cidade de Nova Iorque continua com o mesmo discurso de sempre—o qual é perpetuado pela imprensa como a solução para todos os problemas. Acontece que, os fazedores das políticas públicas dissimulam suas perversas intenções em um discurso carregado de falsas promessas, como os apartamentos de luxo que se escondem atrás das antigas fachadas restauradas com esmero. Neste contexto, as autoridades municipais tem sim uma imensa parcela de culpa. Estudos similares nos mostram claramente que, o discurso não condiz em nada com aquilo que se vê na prática.
Um exemplo disso pode ser visto no relatório publicado pela Sociedade para a Preservação do Patrimônio do Greenwich Village, o qual aponta para uma série de falhas grosseiras na interpretação dos estudos de impacto ambiental, assim como chama a atenção para a enorme discrepâncias entre a proposta no papel e a realidade na prática: “Os empreendimentos construídos segundo as novas leis de zoneamento da cidade de Nova Iorque abrigam uma porcentagem muito maior de famílias de renda média-alta se comparados com as estruturas existentes nestes mesmos bairros.” E este é um fenômeno que não se limita a um único bairro ou distrito da cidade. Na maioria dos bairros onde foi aprovada uma nova lei de zoneamento, a escala dos novos edifícios é tão grande e a quantidade de apartamentos de luxo tão abundante que as novas moradias “acessíveis” nunca chegam a ser acessíveis de fato.
De acordo com o mesmo relatório, 47,3% dos atuais moradores do bairro recebem até 100 mil dólares por ano e de acordo com o Plano Municipal, apenas 25% das novas moradias serão direcionadas a famílias com rendas entre 32 e 98 mil dólares/ano. Por outro lado, mais de 25% dos atuais moradores recebem mais de 200 mil dólares por ano; e de acordo com as expectativas do governo local, até um 75% dos novos residentes receberão 1 milhão de dólares anuais ou mais.
É por isso que eu digo que é um completo disparate afirmar que a nova lei de zoneamento é a solução para a crise imobiliária desta cidade—é uma mentira tão descarada que chega a ser ofensiva.
“As autoridades dizem que nenhuma estrutura de moradia e de aluguel social será derrubada e que nenhum morador será forçado a se mudar para outra região da cidade”, como consta no relatório que acompanha a nova lei de zoneamento do SoHo/NoHo. “Mas isso não é o que se vê na prática,” eu escrevo no meu comentário. No papel, está proibido demolir e/ou reconstruir edifícios existentes de habitação e aluguel social, templos religiosos, escolas ou outras instituições—embora na prática isso venha acontecendo repetidamente. Das dezenas de promessas e propostas contidas nestes planos, praticamente nenhuma chegou a ser concretizada de fato. Como resultado disso, milhares de unidades de habitação social foram perdidas e até agora, nenhuma medida foi tomada. É por isso que eu digo que é um completo disparate afirmar que a nova lei de zoneamento é a solução para a crise imobiliária desta cidade—é uma mentira tão descarada que chega a ser ofensiva. À medida que os apartamentos de aluguel social estão desaparecendo da noite para o dia, as imobiliárias vão ganhando terreno e reafirmando seu papel como as únicas responsáveis por fixar os preços dos aluguéis.
Neste contexto, os proprietários de imóveis tem pista livra para operar bem e como quiserem. A determinação em explorar os inquilinos para seu próprio e exclusivo benefício é tanta que, até mesmo os vereadores, os quais deveriam defender os interesses dos moradores, têm se mostrado completamente incapazes de assumir qualquer responsabilidade.
É tudo balela! Tomemos como exemplo o discurso sobre a necessidade de se promover habitação social e apartamentos de aluguel subsidiado na cidade de Nova Iorque. Todo mundo sabe da importância dessas modalidades de acesso à moradia para a população de mais baixa renda e ninguém parece estar contra uma maior disponibilidade de unidades residenciais acessíveis. Ainda assim, a forma mais fácil de se viabilizar um grande número de unidades residenciais populares é a legalização de moradias irregulares além do financiamento público para a adequação de espaços existentes subutilizados. Desta forma, através da implantação de um plano de zoneamento e financiamento público, acredita-se que mais de 100.000 unidades (algumas estimativas falam em 200.000) poderiam ser criadas em um brevíssimo espaço de tempo. O problema é que isso não gera nenhum tipo de lucro ou mais-valia para os incorporadores, os quais estariam completamente excluídos do processo. No atual modo de se construir a cidade (e que é bastante desigual diga-se de passagem), incentivos fiscais só são concedidos em caso de construções novas, mesmo quando estas são erguidas as custas da destruição de parte importante do estoque imobiliário. Durante o boom da construção civil na cidade de Nova Iorque durante os sucessivos mandatos de Bloomberg, os moradores dos bairros residenciais mais abastados passaram a pressionar as autoridades para restringir ainda mais o potencial construtivo dos seus bairros, temerosos que os incorporadores avançassem sobre os seus belos e bem conservados quintais.
Por outro lado, sempre que se fala da reurbanização de um distrito histórico, ou em zonas onde existem dezenas de estruturas tombadas ou em processo de tombamento, os órgãos de proteção do patrimônio histórico são retratados como vilões que se opõem às urgências do progresso. Acontece que, o SoHo e o NoHo— apesar de serem bairros históricos—passaram por grandes mudanças ao longo dos últimos anos. Estes bairros estão repletos de edifícios novos, mais altos e mais modernos do que as estruturas mais antigas. Então, qual o sentido de preservar um bairro completamente descaracterizado? Enquanto fiz parte da Comissão de Preservação da cidade de Nova Iorque, ainda que eu tenha sido favorável a construção de alguns novos edifícios nestes bairros, eu votei apenas naqueles que considerei adequados ao caráter histórico do bairro. Dito isso, é importante ressaltar que esses edifícios foram construídos dentro do contexto de uma comunidade existente, algo que com esta nova proposta de zoneamento deixará de existir.
Neste tempo, provavelmente mais de 40 novos edifícios foram construídos nestes dois distritos históricos da cidade, mas nenhum deles vai contra o caráter histórico do bairro—eles contribuem para a preservação das demais estruturas existentes. É desta forma pontual e localizada que se insere novos elementos em um tecido urbano histórico sem descaracterizar o conjunto como um todo. O novo plano de zoneamento, por sua vez, transformará estes bairros em uma tábula rasa.
A empresa de sistemas de estacionamento para veículos automotores Edison Parking, uma das principais apoiadoras do atual prefeito da cidade de Nova Iorque Bill de Blasio, é a atual proprietária dos dois maiores terrenos vazios dentro da área delineada pelo novo zoneamento. Segundo a proposta de lei, um destes terrenos terá um substancial incremento no potencial construtivo, algo que poderia resultar na construção do primeiro super arranha-céu no bairro do SoHo. O outro lote de propriedade da Edison Park, em NoHo, perto do limite com Chinatown, permitiria um potencial construtivo de 9,7, o que somado à outorga onerosa possível, poderia ter um impacto significativo na estrutura histórica de ambos bairros. Ainda que exista um limite de altura definido na nova lei de zoneamento, ela parece bastante flexível, ao ponto que fica difícil prever o que isso pode significar para o futuro do SoHo, NoHo e Chinatown, e especialmente de seus moradores.