Qual o papel dos escritórios corporativos nos dias de hoje? A pandemia do Coronavírus evidenciou necessidades e transformações profundas nas vidas de todos nós: nas relações, no trabalho, nos hábitos de consumo, no aumento da desigualdade. Certamente o tema dos espaços de trabalho veio à tona em uma fase histórica quando, pela primeira vez na era pós-moderna, as pessoas viram suas próprias liberdades limitadas.
Grande parte das pessoas foi obrigada a trabalhar de casa e desde o começo da quarentena a reflexão sobre o futuro dos espaços de trabalho se fez inevitável. Alguns dados interessantes mostram que o Coronavírus apenas impulsionou uma prática que vinha se consolidando há anos em alguns países. Segundo estudos realizados em parceria pela Global Workplace Analytics e FlexJobs, entre 2005 e 2015, o número de profissionais nos Estados Unidos que fazem pelo menos 50% de seus trabalhos a partir de casa ou de outro lugar fora de seus escritórios cresceu 115% e hoje esse número chega a 4.7 milhões, 3.4% da força do trabalho.
Uma das mais amplas pesquisas globais sobre trabalho pós pandemia, a Global Work-from-Home Experience Survey, mostra que, dos quase 3.000 funcionários que responderam à pesquisa entre 30 de março e 24 de abril 2020, 77% quer continuar a trabalhar de casa depois da COVID-19. A pesquisa indica que as pessoas estão mais produtivas e felizes em casa.
Apesar dos dados positivos sobre a resposta ao smart working, nosso entendimento é de que o espaço do escritório vai continuar existindo, porém será profundamente modificado. Hoje o escritório existe para incorporar os valores e a cultura da empresa, vivenciar o coletivo, impulsionar e capacitar a comunidade. O ser humano é por natureza um ser social e precisa dos espaços de encontro.
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Pensar na experiência humana nos espaços de trabalho será uma mudança fundamental que veremos nas próximas décadas. Os temas chaves serão Inteligência Artificial, Automação, Demografia e Sustentabilidade. Os nossos edifícios, portanto, deverão ser inteligentes e saudáveis pois cada vez mais os funcionários serão exigentes em relação a própria saúde e bem-estar.
Neurodiversidade
O termo se refere às variações naturais no cérebro humano de cada indivíduo em relação à sociabilidade, aprendizagem, atenção, humor e outras funções cognitivas. De forma ampla, o conceito inclui diversidade entre pessoas consideradas neuro típicas e pessoas com condições neuro divergentes, como autismo, dislexia, déficit de atenção entre outros. Ou seja, pessoas com variações de percepção e espectros neurodiversos.
De acordo com Key Sargent, diretora do WorkPlace no escritório internacional HOK, as novas gerações estão cada vez mais cientes de seus diagnósticos e preparadas para requisitar espaços mais inclusivos. Ainda segundo Sargent, pesquisas recentes mostram que pessoas que tiveram o coronavírus são considerados “long-haulers” ou indivíduos que tem algum resquício distante do vírus, sendo uma parcela, neurológica. Além disso, os sintomas de depressão e ansiedade aumentaram 4 vezes em junho de 2020 em relação a 2019, aumentando a atenção sobre o assunto. Portanto, entender esses espectros e discutir soluções de design inclusivas são premissas básicas para se desenhar ambientes de trabalho pós-pandêmicos.
Seguindo no espectro mais amplo do termo, estudos demográficos apresentam dados interessantes sobre a neurodiversidade humana e suas implicações no ambiente de trabalho. Somente 50% das pessoas sente que seus escritórios lhes dão suporte, e preocupantes 78% apontam que gostariam de ter mais flexibilidade nas opções de trabalho, impulsionados pelo desejo de aumentar a produtividade e adquirir um balanço melhor entre vida e trabalho.
A metodologia de trabalho Agile, que impulsiona processos de trabalho colaborativos, dinâmicos e participativos encontra a sua transposição física nos assim chamados Agile Spaces, caracterizados pela organização de espaços de maneira a oferecer ambientes propícios para determinados tipos de trabalho: individual, em grupo, de criação, de concentração, de agregação, de troca. É clara a necessidade de fornecer um contexto que empodere os funcionários a partir de sua diversidade. É possível criar uma experiência mais personalizada nos espaços de trabalho?
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Pensar o espaço de trabalho como um grande ecossistema nos permite perceber o valor de cada indivíduo, otimizando seu tempo, melhorando seu ambiente de trabalho e apoiando seu estilo de vida. Ampliar a perspectiva sobre o ambiente corporativo gera benefícios a todos os envolvidos: funcionários, clientes e empregadores. A aplicação desses novos valores apoia a flexibilidade dos negócios, melhora o bem-estar dos funcionários e sua sensação de pertencimento, aumentando o acesso e a retenção de talentos e potencializando o valor da própria empresa.
Mais do que nunca, é necessário ter uma visão mais holística sobre espaços e pessoas para que avancemos nas discussões sobre a retomada dos espaços de trabalho após a superação da pandemia.
Análises apontam que as reações das pessoas são múltiplas. Alguns querem continuar a trabalhar de casa, reconhecendo a habilidade de concentração sem distrações, a liberdade de gerenciar os próprios horários, a possibilidade de evitar longos deslocamentos e de assistir um episódio da série favorita a qualquer hora.
Outros conseguiram se adaptar ao trabalho em casa, mas sentem falta do encontro, da troca e de um trabalho mais dinâmico e colaborativo. Sofrem com as dificuldades de uma escolha feita por imposição e não por vontade própria.
Desta análise de reações podemos identificar três possíveis atitudes pós-pandêmicas:
- a escolha convencional de voltar à rotina fixa de trabalho;
- a obrigação de continuar a trabalhar a distância;
- o empoderamento pela possibilidade de escolha.
Para as empresas que decidirem retomar a presença nos espaços físicos será necessário passar por ajustes radicais na maneira de operar e nos serviços oferecidos. Uma pesquisa recente da GP PRO, empresa fornecedora de sistemas higiênicos, mostra que três a cada quatro pessoas nos Estados Unidos afirmam estarem preocupadas com a volta.
Uma das mudanças mais significativas será na concentração do número de pessoas por pavimento. A tendência é de que o staff combine o trabalho no escritório com o trabalho em outros lugares. A Pesquisa do Global Workplace Analytics prevê que até 30% das pessoas continuará a trabalhar de casa e, portanto, a retomada dos espaços de trabalho terá de ser planejada a partir de uma dinâmica híbrida em que as ferramentas disponibilizadas pela tecnologia continuem a ganhar importância.
Será necessário, por exemplo, o desenvolvimento por parte das empresas de sistemas que ajudarão no mapeamento de onde as pessoas estão trabalhando, em qual horário e quando deverão estar juntas ou quando poderão estar separadas. A possibilidade de trabalhar em diversos contextos flexiona todas as relações entre o funcionário e o espaço de trabalho e talvez seja possível falar de verdade sobre espaços flexíveis e ágeis.
Tecnologia que aproxima
Mais do que nunca o uso da tecnologia se torna indispensável.
Vislumbrar uma arquitetura onde será necessário um baixo teor de contato físico, mas um alto teor de interações [Low touch but high interaction] só é possível com a incorporação de tecnologias já bastante em uso em outras áreas. Por exemplo, comandos de voz utilizados nas interfaces residenciais e domésticas.
Análises do Grupo Gartner anteriores à pandemia destacam que um quarto das interações funcionários/softwares será baseada em comando de voz em 2023. Um salto quando comparado a um começo tímido de apenas 3% em 2019.
Antigamente a tecnologia com o uso de sensores era usada para mapear a subutilização dos espaços. Hoje esta tecnologia pode ser utilizada para o fim oposto: temos o distanciamento oportuno? Temos áreas de congestionamento?
Em um modelo de trabalho “coreográfico”, onde as pessoas estarão espalhadas em diversos contextos de trabalho, será comum o uso de dispositivos de mapeamento, interfaces digitais, visualizações em tempo real e até holografias como soluções incorporadas à arquitetura que ajudarão as pessoas a se sentirem mais envolvidas e próximas nas interações.
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Algumas medidas físicas poderão ser tomadas rapidamente pelas empresas:
- intensificação da sinalização e comunicação visual esclarecendo as regras de distanciamento;
- aumento da largura das bancadas de trabalho;
- corredores e portas mais amplas;
- rodízios nos horários de trabalho.
Além disso, o uso de controles remotos com sensores de ativação poderá aumentar, reduzindo o número de superfícies em que é necessário tocar e permitindo, por exemplo, que os funcionários usem elevadores e portas sem tocá-los.
Biofilia para evitar a “Síndrome do edifício doente”
Conforme publicação do The New York Times, se os ataques do 11 de setembro de 2001 determinaram a criação de sistemas de controles mais rígidos e as inundações do furacão Sandy em 2012 provocaram a ascensão dos sistemas mecânicos, o coronavírus provavelmente focará a atenção na circulação de ar interno e sua filtragem.
A maioria das pessoas passa 90% do tempo em ambientes fechados e a exposição a qual está exposta é muito pouco analisada. Um estudo publicado ano passado no Nature mostra como a poluição atmosférica está diretamente ligada a um notável declínio das performances cognitivas, além de contribuir com doenças respiratórias e cardiovasculares.
Enquanto a poluição do ar externo está sempre nas manchetes, a poluição do ar interno é quatro ou cinco vezes maior, de acordo com a US Environmental Protection Agency. É o contributo central da chamada “sick building syndrome”. Análise de dados do German Institute of Global and Area Studies mostrou que trabalhar em um escritório com elevado nível de filtragem do ar pode aumentar a expectativa de vida de um funcionário. Estudo da Harvard School Health aponta que o aumento da circulação do ar interno incrementa as capacidades cognitivas em aproximadamente 61%.
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A retomada da discussão sobre a qualidade do ar interno impulsionará estratégias para solucioná-lo e deve influenciar na escolha de materiais e mobiliários utilizados. Estofados, carpetes e cortinas sempre foram famosos por acumular pó. Móveis com materiais naturais tem um papel importante e cada vez mais promissor. Superfícies lisas e facilmente laváveis serão preferidas às porosas que podem reter micróbios. Materiais antimicrobianos usados em hospitais e laboratórios poderão encontrar novas aplicações no design de interiores, pois segundo a Sharklet Technologies, o interesse em novos materiais nos quais as bactérias não aderem aumentou significativamente.
Pensar espaços com janelas bem posicionadas que permitam ser abertas é uma solução low-tech que garante a reciclagem do ar e torna mais sutil as separações entre interior e exterior, construção e paisagem, permitindo melhorias ambientais significativas. Ao criar ambientes de trabalho a partir de composições com elementos naturais, ou seja, incorporando conceitos biofílicos, podemos desenvolver experiências emocionais positivas com impacto direto nas relações interpessoais e na produção.
Investir em biofilia tem muito sentido no contexto pós pandemia, pensando na simbiose entre a natureza e o espaço construído e no desenvolvimento de projetos que inserem os prédios e os usuários no mundo biológico. Pesquisa publicada pelo escritório polonês Workplace aponta que 58% dos espaços de trabalho no mundo não tem vegetação.
Análises cientificas levantam dados claros sobre os benefícios na saúde física e psicológica de se estar em espaços projetados com vegetação: pesquisa da Universidade de Exeter (EU) mostra que funcionários em contato com a natureza são 15% mais produtivos e motivados do que os que trabalham em um ambiente estéril; reportagem chamada The Global Impact of Biophilic Design in the Workplace registra um incremento de 15% em criatividade nas pessoas que trabalham em ambientes com plantas naturais; é estimando que em uma sala com um suficiente número de plantas, a quantidade de colônias de bactérias é reduzido em 60%; foi observado que dores de cabeça diminuem em 24% e irritação dos olhos em 52%.
Todo ser humano é acostumado a estar conectado com a natureza. Se a pessoa trabalhar o tempo todo em frente a uma tela, é recomendado que regularmente direcione a vista para uma área verde. Incorporar o uso de plantas a materiais naturais contribui visualmente para no ambiente e geram uma mudança positiva na percepção do espaço de trabalho.
Outros estudos vêm sendo desenvolvidos, dentre eles, um estudo do Harvard’s Centre for Health and the Global Environment demonstrou que o usuário de um prédio com alto desempenho em sustentabilidade tem funções cognitivas elevadas, menos sintomas de doenças e uma melhor qualidade de vida. Uma reportagem da American Psychological Society sugere que um escritório com um grande número de plantas aumenta o envolvimento, produtividade e bem-estar dos funcionários.
Uma experiência híbrida
Em uma era onde os habitantes nas cidades têm acesso limitado ás áreas externas, o melhor truque para que os funcionários ainda queiram frequentar os escritórios talvez seja criar situações de fuga dos espaços fechados.
Todos os estudos e as informações recolhidas apontam para a necessidade de se buscar alternativas aos grandes headquarters. As lajes amplas onde se juntam milhares de pessoas serão mais difíceis de existir. Os conceitos de co-criação e colaboração serão transformados.
Ainda assim, vamos continuar a precisar dos escritórios. Durante o período da quarentena ficou claro que precisamos do espaço físico como lugar do encontro, da vivência e da interação.
Se, por um lado, as interações através de interfaces digitais parecem não dar conta de um nível necessário de vivência, por outro, criaram uma nova proximidade estabelecida através da visualização de ambientes e cenas familiares que transformou o significado do “distanciamento social” no conceito de conexão social com distanciamento físico.
Pensar, então, em novos modelos organizacionais do trabalho onde as pessoas atuam remotamente mas necessitam de espaços de encontro abre a possibilidades para um novo formato de escritório, híbrido, que priorize a experiência do usuário, que estimule a troca, a criatividade, a convivência, a socialização, e que seja flexível e adaptável às necessidades.
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Se refletirmos na escala da cidade, decentralizar as grandes sedes em unidades menores, intercaladas na malha urbana e em diálogo com seu entorno, contribui na redução de grandes deslocamentos e possibilita a absorção de novos programas e usos do espaço. Um caminho possível e inovador para que nossas cidades comecem a ser verdadeiramente mais amigáveis.
Os processos de virtualização das corporações vivenciados em 2020 não só intensificaram as transformações nos ambientes de trabalho que já vinham sendo adotadas – como, por exemplo, a flexibilização dos espaços, o acesso a natureza e o trabalho remoto –, como nos fizeram questionar: qual será a real função de um espaço físico de uma sede corporativa?
Pesquisa: Ludovica Leone (Arquiteta e Diretora de Operações do Estudio Guto Requena)
Organização e Ilustrações: Thalissa Bechelli, Paulo Paiva, Tiago Toledo (Núcleo de Comunicação Estudio Guto Requena)
Nota do editor: Esta pesquisa está em andamento e vem sendo desenvolvida pelo Estudio Guto Requena. O conteúdo deste artigo foi originalmente publicado em cinco capítulos veiculados por email entre março e abril de 2021.