Tudo aquilo que é construído, pela força e trabalho físico e intelectual do homem, tem significado. É na matéria que encontramos resquícios de antigas civilizações, e a partir desses registros entendemos suas características, as tecnologias envolvidas e sua organização social. As cidades e os grandes centros urbanos têm camadas e camadas de acontecimentos que ficam registrados em suas ruas, edifícios, praças e parques. Muitas vezes, a depender do desenvolvimento do lugar, essas evidências vão sendo apagadas, desconsideradas e alteradas.
A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história, uma representação do passado. [...]. A memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto. A história só se liga às continuidades temporais, às evoluções e às relações das coisas. A memória é o absoluto e a história só conhece o relativo. – NORA, 1984. apud BALDISSERA, BRINO, KNIES, 2014
Dessa forma, há um esforço das comunidades de buscar ao máximo resguardar suas narrativas para não perder sua memória. Um exemplo recente disso foi a descoberta de um conjunto de nove ossadas no bairro da Liberdade, em São Paulo, trazendo à luz evidências materiais da existência da primeira necrópole pública da cidade, o Cemitério dos Aflitos, também conhecido como Cemitério dos Enforcados. Esta descoberta colocou em foco toda uma discussão do apagamento da história negra e indígena, não só no bairro, como na cidade, e incentivou uma série de pesquisas acadêmicas e iniciativas populares, com o objetivo de manter essa memória viva.
Um outro caso que também estampa não só um apagamento de memória, mas também um apagamento de evidências históricas, foram as obras da região portuária do Rio de Janeiro. Anos atrás também foram descobertas ossadas de escravos em uma região que hoje sabe-se ter sido um cemitério secular de negros vindos da África e onde cerca de 30 mil pessoas foram enterradas. Na mesma região, descobriu-se também, em 2012, o maior porto de compra e venda de escravos do Brasil, com estimativas que chegam a 700 mil pessoas negociadas no local.
Para além disso, a região do porto, antes das olimpíadas, também era um lugar onde estampava-se a desigualdade social que assola nossa sociedade. Para a implementação do Porto Maravilha, um dos símbolos das Olimpíadas do Rio de Janeiro em 2016, e do Museu do Amanhã, o local passou por inúmeras obras que tinham como objetivo “revitalizar” a região, apagando assim muitas camadas históricas, e consigo, muitas memórias.
Episódios como o Cemitério dos Aflitos em São Paulo, ou o passado da região portuária do Rio de Janeiro, demonstram como é importante estar atento às memórias locais. Reparar no espaço construído a sua volta é estar atento às marcas da história no espaço. No caso do Porto Maravilha, um grupo de mulheres criou o Museu do Ontem, um aplicativo lançado pela Agência Pública que pretende resgatar essas histórias e promover uma outra relação com esse importante território da cidade. O aplicativo convida os usuários a explorarem a pé a região portuária, de maneira que descubram as histórias ali implícitas.
O aplicativo é uma maneira de fazer a história ser contada, a partir também de uma experiência local. Há outras manifestações físicas, ainda que efêmeras, que aproveitam da cidade e do contexto urbano para se fazer presente, como é o caso dessa instalação organizada em um cerca construída pelo governo mexicano após a repercussão das manifestações de 2021 contra a violência contra a mulher no México. Com a repressão do governo, essa instalação se propõe a ser um memorial às vítimas de feminicídio.
O memorial consistia em escrever os nomes de aproximadamente 1.254 mulheres, refletido nos 140 painéis que cobriam o Palácio Nacional onde também foram colocados cartazes, flores, fotografias, mesinhas de cabeceira e objetos que buscaram dar visibilidade à violência e injustiça em um país onde 11 feminicídios são registrados diariamente. Além disso, havia uma projeção no prédio do Palácio Nacional que exibia as frases "MÉXICO FEMINICÍDIO", "UM VIOLADOR NÃO SERÁ GOVERNADOR" e "ABORTO LEGAL JÁ".
Intervir em espaços públicos e coletivos é uma importante forma de evidenciar as causas e narrativas que precisam ser lembradas, ainda mais considerando o contexto atual em que vivemos. Há, porém, um caminho para quando essas lutas são reconhecidas pelas instituições, sejam elas públicas ou privadas, que é a construção de espaços de memória. Memoriais, museus, e até centros de documentações, essas construções têm um objetivo primário que é resguardar a memória de um determinado assunto, expandindo assim o conhecimento sobre o tema.
Essas construções podem ter programas variados, bem como explorarem temas dos mais diversos possíveis. Um assunto comum destes memoriais são aqueles que evidenciam momentos históricos, como é o caso do Memorial Nacional pela Paz e Justiça, projetado pelo MASS Design Group, nos Estados Unidos. Este memorial tem como objetivo criar um espaço para reflexão, significativo e sóbrio, sobre a desigualdade racial. Outro memorial que trata de um momento histórico bastante atual é o memorial aos mortos por Covid-19 em Wuhan, fruto de um concurso na China. O projeto premiado busca "homenagear aqueles que morreram e trazer consolo às famílias." A proposta consiste em uma série de cabines telefônicas instaladas nas comunidades da cidade.
Além desses, há uma série de outros monumentos que evidenciam assuntos como o holocausto, como é o caso do Centro de Documentação do Memorial Bergen-Belsen projetado por KSP Engel und Zimmermann Architekten, ou ainda colocam em questões guerras, como o Memorial dos Mártires no Níger ou o Memorial Rivesaltes por Rudy Ricciotti + Passelac & Roques, ou a violência civil como é o caso do Centro de Memória, Paz e Reconciliação de Juan Pablo Ortiz Arquitectos e do Museu da Memória e dos Direitos Humanos / Mario Figueroa, Lucas Fehr e Carlos Dias que retrata a ditadura militar no Chile. O interessante desses projetos é que eles não são somente memoriais, mas também apresentam programas que envolvem expandir o conhecimento sobre esses assuntos, funcionando como museus, arquivos, centros de ensino e de pesquisa, entre outros.
Um outro caminho que esses memoriais pode tomar é o de homenagear a memória de uma pessoa, ou um grupo de pessoas. Isso pode ter relação com momentos históricos específico e tragédias, mas pode também ser uma homenagem reconhecendo o trabalho e sua contribuição para aquele local, como é o caso do Memorial Wang Jing de DnA, na China. A aldeia onde o erudito Wang Jing (1337-1408) nasceu decidiu construir um novo memorial para homenagear o mestre que tornou-se um estudioso influente sob o primeiro imperador da Dinastia Ming. Localizado em frente a um templo ancestral, o memorial se dedica a lembrar a vida de seu famoso antepassado.
Esse é o caso também dos memoriais A Clareira - Memorial em Utøya por 3RW Arkitekter e Paisagem Quebrada - Memorial Gordan Lederer por NFO + Petar Barišić que celebram a vida de pessoas que tiveram suas vidas tiradas devido à violências como ataques terroristas e a guerra. Apesar de não ser o foco do memorial, esses pavilhões também atuam educando e instruindo sobre o momento histórico, resgatando a memória dos envolvidos como forma de ilustrar este momento.
Para além da memória dos momentos e passagens históricas, ou a evidência de questões estruturantes na nossa sociedade atual, há também a possibilidade dos memoriais homenagearem práticas culturais imateriais. Um exemplo interessante disso é o Museu do pão, projetado pelo Brasil Arquitetura e localizado em Ilópolis, que evidencia a história local a partir do processo de fabricação do pão, resgatando as origens migratórias locais. Um outro monumento que tem uma proposta interessante é o Memorial El Litre de Matías Leyton que pretende resgatar a história de um conector urbano de um pequeno vilarejo no Chile, a partir de uma modesta intervenção.
Muitos são os assuntos que despertam o interesse em se tornarem memoráveis, como as olimpíadas no Museu do Memorial Samaranch por Archiland, na China, ou ainda as espécies animais locais eternizadas no Museu Íbex de St. Leonhard por Atelier Köberl + Daniela Kröss Architektin + ARGE Architekten, na Áustria. Há também propostas contemporâneas como o arquivo de lembranças coletivas, chamado de Casa da Memória, em Milão. Ele se propõe a ser um espaço coletivo onde os cidadãos de Milão possam encontrar proteção para as memórias que querem preservar.
Para além de toda a história que fica registrada nas construções elementares da nossa sociedade, os memoriais ganham força ao apresentarem a resistência das ideias. O Museu Itinerante na Colômbia traduz essa ideia. O edifício foi concebido como um dispositivo itinerante para recuperar a palavra e a voz das comunidades com o objetivo de fazer da memória um caminho de reencontro, superando o medo e a dor. Este museu representa uma plataforma concreta de reparação simbólica diante dos vestígios deixados pelo conflito armado, buscando fortalecer a convivência, a organização e a mobilização social, através de diálogos e confluências de pensamento em sua itinerância através do território.
Junto de todo o restante do tecido urbano que está em volta, esses edifícios, intervenções e monumentos contam a história da nossa sociedade, nos educando e nos fazendo lembrar e guardar em memória o que vivemos, sejam eles concretos, sejam eles efêmeros, o importante é resgatar a história, inspirar e educar a sociedade.
Referência
BALDISSERA, Giulie Anna. BRINO, Alex C. KNIES, Carolina. Espaços da memória: a história não pode ser esquecida, 2014.