Conhecida popularmente como lótus, a espécie aquática Nelumbo nucifera apresenta uma particularidade. Suas folhas são auto-limpantes, ou ultra-hidrofóbicas. Isso quer dizer que nenhuma partícula de sujeira ou água adere a ela, o que é especialmente útil no contexto úmido e lamacento em que a planta vive. Mas diferente do que se pode imaginar, isso não se dá por conta de uma superfície perfeitamente lisa ou uma camada resinosa sobre as folhas. A lótus é, na verdade, repleta de minúsculas dobras que reduzem a superfície de contato e repelem todas as partículas que ali tentam aderir. O efeito de lótus tem sido estudado por nanotecnólogos com o intuito de aplicar este mesmo efeito em produtos, como superfícies, tintas, tecidos e telhas que possam se auto limpar facilmente. Por mais trivial que isso possa parecer, ao pensarmos nos recursos aplicados à limpeza de vidros de arranha-céus ou mesmo a quantidade de energia fotovoltaica que deixa de ser gerada por conta da poeira sobre os painéis podemos ter uma noção das infinitas possibilidades que superfícies hidrofóbicas poderiam representar.
A natureza, ao longo de bilhões de anos, tem desenvolvido soluções adaptativas que começam a ser entendidas por nós com as tecnologias que temos à disposição e aplicadas às necessidades de áreas como a indústria da construção. Quando cientistas, biólogos, engenheiros, arquitetos e outros profissionais unem esforços e focam em entender aspectos da natureza, com uma visão empática e respeitosa, os resultados podem ser impressionantes.
Outro exemplo parecido vem dos oceanos. O Escritório de Pesquisa Naval dos EUA solicitou que um cientista buscasse estratégias para reduzir o uso de tintas anti-incrustantes tóxicas e caras aplicadas repetidamente nas suas docas, para evitar a proliferação de algas. A inspiração da solução veio da pele dos tubarões. Ao examinar os dentículos dérmicos, viu-se que eles são arranjados em um padrão de diamante, de uma forma que desencoraja os microorganismos a se estabelecerem. Os microorganismos não morrem, eles simplesmente não têm interesse em permanecer na superfície, por conta de sua geometria desconfortável. Sharklet foi a tecnologia desenvolvida a partir desse raciocínio. O padrão artificial desenvolvido é extremamente pequeno - cerca de 3 mícrons de altura e 2 mícrons de largura, e não pode ser visto a olho nu ou sentido pelo tato, mas está lá, protegendo a superfície contra bactérias e outros microorganismos. Estudos têm sugerido, inclusive, que tais superfícies podem prevenir o crescimento e a disseminação de bactérias causadoras de doenças, incluindo a temida superbactéria Staphylococcus aureus, que são resistentes aos antibióticos normalmente usados para tratar infecções por estafilococos e são conhecidas por causar graves infecções hospitalares.
Estes dois casos exemplificam um pouco do que é a biomimética, que nada mais é que a inovação inspirada na natureza. Mais do que buscar reproduzir uma forma natural, a biomimética busca compreender e imitar práticas e estratégias usadas pelas espécies para criar, projetar e processar produtos e processos que possam ajudar a resolver nossos desafios de design, buscando trazer sustentabilidade ao planeta. Materiais biomiméticos são materiais sintéticos (feitos pelo homem) que imitam os naturais ou que seguem um motivo de design derivado da natureza. Acima de tudo, trata-se de uma abordagem multidisciplinar. É mudar a perspectiva de aprender sobre a natureza para aprender com a natureza como uma forma de resolver os problemas humanos, como Janine Benyus aponta. O termo biomimética (biomicry), inclusive, foi popularizado após o lançamento de seu livro Biomimicry: Innovation Inspired by Nature.
É comum e natural nos restringirmos a áreas de conhecimento para buscar inspiração ao nosso trabalho. Mas isso também pode acabar criando barreiras entre disciplinas e profissões. Se esse é um legado das nossas pedagogias, do capitalismo ou é um comportamento inerente ao ser humano, este artigo não tem a pretensão de responder. Mas quando falamos em derrubar as barreiras da arquitetura, um nome que vem muito à mente é o de Buckminster Fuller (1895 -1983). Ele foi um defensor do que chamou de “ciência do design antecipatório abrangente” [Comprehensive Anticipatory Design Science] e cunhou o termo “revolução da ciência do design”. Sua premissa principal era que a ordem onipotente e existente da natureza deveria guiar todos os projetos humanos, se quisermos sobreviver e prosperar como espécie. Muitas das preocupações de Fuller com o mundo têm se concretizado, enquanto diversas de suas ideias têm sido possibilitadas e testadas pela tecnologia mais avançada, quase 40 anos após sua morte.
De fato, materiais responsivos, resilientes ou que se corrigem autonomamente já não são invenções de ficção científica. Um exemplo é o concreto auto regenerativo à base de bactérias, que se autorregenera quando trincas e rachaduras aparecem. Sabemos o quanto a infiltração de água danifica as estruturas de concreto armado, sobretudo através da oxidação das armaduras. Mas e se a água, ao entrar na peça, pudesse ser parte da solução? O raciocínio é interessante: junto à mistura tradicional da massa, são incluídos esporos bacterianos (Bacilus pseudofirmus) dentro de minúsculas cápsulas permeáveis à água. Elas permanecerão inertes e não afetarão a integridade da estrutura. Isso muda quando uma rachadura se forma e água se infiltra ao concreto. Assim que a água toca as cápsulas, os esporos são ativados e essas bactérias produzirão calcita, que atua como uma espécie de biocimento, preenchendo as rachaduras no concreto à medida que as bactérias se movem. O novo material utiliza conceitos de biologia e engenharia mirando ser uma solução que pode se auto regenerar. A utilização massiva desta solução ainda é limitada pelo alto custo, mas protótipos já foram construídos em estruturas subterrâneas e de difícil acesso. Para se ter ciência de como trabalhar com bactérias na construção, a colaboração com biólogos e cientistas é imprescindível. Evidentemente, não é como comprar uma embalagem de fermento no supermercado. As bactérias devem ser processadas adequadamente e isso demanda uma enorme quantidade de recursos humanos, tecnologias e conhecimentos. Ou seja, muitas disciplinas sentando à mesa para desenvolver o mesmo projeto.
No entanto, é difícil que nossa imaginação subverta o repertório que já temos para chegar a algo realmente criativo. Tanto que, até agora neste artigo, só foram citados exemplos de materiais conhecidos, que não chegam a redefinir a maneira como as construções sempre foram feitas, como um amontoado de partes e peças. Neri Oxman, professora no MIT e coordenadora do Mediate Matter Group diz que “desde a revolução industrial, o mundo do projeto tem sido dominado pelo rigor da fabricação e produção em massa. Linhas de montagem ditaram um mundo feito de partes, enquadrando a imaginação de projetistas e arquitetos, que foram treinados para pensar nos seus objetos como resultado de partes com funções distintas.” Isso não deixa de ser uma contraposição à natureza, onde células similares se transformam e se adaptam para exercer funções distintas, e as estruturas são otimizadas para uma multiplicidade de funções em várias escalas: carga estrutural, pressões ambientais, restrições espaciais e assim por diante. No lugar de uma montagem de peças, as estruturas naturais crescem. Nossos materiais poderiam ser assim também?
O conceito de Ecologia de Materiais é uma abordagem científica que explora, informa e expressa as inter-relações entre o construído, o crescido e o aumentado. O grupo dirigido pela arquiteta trabalha como a tecnologia de fabricação digital pode interagir com a biológica, na intersecção entre o material, o físico, o digital e o biológico. O grupo tem desenvolvido projetos que vão desde impressoras de vidro, pavilhões construídos por bichos da seda, peças de arte e materiais que poderiam substituir o plástico e evidenciam a infinidade das possibilidades ao unirmos natureza, tecnologia e arte.
Repensar o modo que estamos construindo nosso mundo é imprescindível para um futuro saudável. Apoiar-se na natureza parece ser um caminho lógico. O Earth Overshoot Day marca a data em que a demanda da humanidade por recursos e serviços ecológicos em um determinado ano excede o que a Terra pode regenerar naquele ano. Em 2020, caiu em 22 de agosto. Ou seja, a humanidade terá usado todos os recursos naturais que a Terra pode reabastecer por um ano completo – incluindo a capacidade de ecossistemas naturais absorverem emissões de carbono a partir da queima de combustível fóssil. A data é calculada comparando o consumo anual total da humanidade (pegada ecológica) com a capacidade da Terra de regenerar recursos naturais renováveis naquele ano (biocapacidade). E a cada ano essa data fica mais cedo, o que é muito preocupante. Poucos contestam que estamos indo no caminho errado em relação a como estamos tratando o planeta e, como diz a célebre frase: “Insanidade é querer resultados diferentes fazendo tudo exatamente igual”. Se os problemas são globais, adotar uma postura multidisciplinar é imprescindível para enfrentar as questões e buscar resultados efetivos.
Este artigo é parte do Tópico do ArchDaily: Arquitetura Multidisciplinar. Mensalmente, exploramos um tema específico através de artigos, entrevistas, notícias e projetos. Saiba mais sobre os tópicos mensais. Como sempre, o ArchDaily está aberto a contribuições de nossos leitores; se você quiser enviar um artigo ou projeto, entre em contato.