“Desde a Revolução Industrial, linhas de montagem ditaram um mundo feito de partes enquadrando a imaginação de arquitetos e designers que foram treinados a pensar nos seus projetos como resultados de pedaços com funções distintas”, essa foi uma frase proferida pela arquiteta israelense e pesquisadora do MIT Media Lab, Neri Oxman em sua palestra do TED intitulada “Projetando na intersecção entre tecnologia e biologia”.
Neri reforça que a maneira tradicional de se construir é feita do mesmo modo há milênios e precisa ser reinventada. De fato, fomos ensinados a construir edifícios e cidades de forma racionalizada, em partes, sem pensar no todo. Até hoje essa lógica ainda é ensinada nas universidades.
A era hoje não é mais industrial, é digital. E agora?
Revolução Industrial
As primeiras grandes inovações acerca do lar e da tecnologia do morar só ocorreram após as Grandes Navegações quando as comunicações entre os povos, as trocas de ideias e o intercâmbio de culturas, insumos e matéria-prima tornaram-se possíveis, principalmente os diálogos entre Inglaterra e EUA. Mas foi especificamente após a Revolução Industrial, em 1750, que a evolução da moradia aconteceu de verdade.
É fato que a industrialização trouxe inúmeros benefícios, entre eles, invenções como a bomba de mercúrio criada pelo alemão Hermann Sprengel em 1850, e que deu origem futuramente à luz elétrica e ao cimento hidraúlico, uma mistura de cimento romano com outros insumos, criado em 1825 pelo americano Canvass White, como afirma Bill Bryson em seu livro “História da Vida Doméstica”.
Mas infelizmente estamos há 200 anos criando dessa mesma forma, com mentes treinadas a pensar como peças de montagem, e invenções sendo tratadas como linhas de produção. Como resolver problemas complexos se não conseguimos sair do pensamento industrial? Como sermos criativos num mundo que limita a nossa ousadia?
Na faculdade de Arquitetura, o primeiro aprendizado na aula de Desenho Técnico é que uma parede tem 15 cm porque o tijolo padrão tem 9cm mais 6cm de argamassa. Que a janela deve ter um tamanho múltiplo de 6m (como 1m, 1.5m, 2m ou 3m) porque a barra de alumínio vendido no mercado tem 6m.
Como estimular que arquitetos, engenheiros e designers sejam criativos e pensem em outras formas de construção menos poluentes, mais conectadas a saberes ancestrais e mais otimizadas se o próprio ensino se adaptou à industrialização?
A perda da criatividade
Arquitetos como o chinês Wang Shu e a indiana Anupama Kundoo tem defendido que técnicas tradicionais e criativas de construção se apagaram ao longo dos processos de colonização, tornando países de terceiro mundo dependentes de indústrias criadas por outras culturas, totalmente diferentes.
Esta geração de profissionais perdeu contato com as tradições de construção e não consegue trabalhar com materiais naturais ou de maneira artesanal – Wang Shu
Para Anupama e Wang, moradias de construção rápida e mercantilizadas são essencialmente voltadas para o lucro e para o enriquecimento de poucos, ignorando os requisitos básicos para o bem-estar humano.
Se alguém interpretar o papel do arquiteto como meramente reprodutor de edifícios de acordo com catálogos de materiais e tendências de construção, então sim, esses hábitos não são válidos em outras regiões geográficas, pois não seriam necessariamente adequados ao clima, aos materiais locais e às suas culturas.
Simplesmente reproduzir materiais da indústria e deixar de pensar com as mãos – usando suas habilidades técnicas e artísticas –, para criar estruturas e processos exclusivos para a identidade única de cada projeto, destrói a capacidade criativa que acompanhou nossos povos ancestrais durante tantos anos.
Além disso, as práticas de industrialização exigem um ritmo acelerado de criação, para que o lucro tenha resultados rápidos. Como respeitar o tempo da natureza criando no ritmo do nosso ciclo circadiano?
Não estamos totalmente cientes das implicações quando não sabemos mais como fazer coisas básicas com nossas mãos, como costurar um botão na roupa. Fazer tem um impacto sobre a mente e sua evolução. Acho interessante que, se recorrermos a tecnologias feitas à mão, possamos construir tudo o que imaginarmos, sem nenhuma das restrições que as máquinas carregam, com base no que foram projetadas para fazer. – Anupama Kundoo
Novas formas de pensar
Na cidade de Massa Lombarda, na Itália, o escritório Mario Cucinella Architects concluiu um protótipo para uma casa combinando algumas das tecnologias mais recentes com materiais antigos de habitação, como por exemplo, barro e areia. A moradia, batizada de TECLA, é a primeira casa impressa em 3D feita de barro e o objetivo é que o desenho de seu programa seja uma opção viável para abrigar pessoas que carecem de moradia adequada por questões financeiras ou deslocamento.
A flexibilidade do programa de usar o solo disponível e sua facilidade de construção significa que a moradia TECLA pode ser adequada para suprir habitação em diversos países. Cucinella afirma que TECLA é de baixo desperdício, uma vez que sua estrutura é biodegradável (acessórios extras como portas e janelas, no entanto, não são) e o processo de construção usa muito menos energia do que construir uma casa padrão.
Além disso, a tecnologia de impressão 3D permite que diferentes protótipos sejam criados para diferentes terrenos e configurações de cada projeto, de acordo com a natureza do lugar.
Nos Estados Unidos, a popularidade crescente dos produtos de madeira em massa – conhecido também como mass timber, um tipo de aglomerado de madeira para construção – levou a uma redescoberta de técnicas ancestrais indígenas de construção.
Como a madeira é um recurso natural renovável e uma fonte de empregos florestais, ela se alinha aos valores indígenas de administração e comunidade há muito obscurecidos pelas práticas de construção dominantes no século XX.
O uso da madeira prensada também estimulou que escritórios de arquitetura procurassem construtores indígenas para entender suas técnicas ancestrais do uso da madeira, criando um nicho de arquitetos formados por indígenas.
No Brasil, o arquiteto sérvio Marko Brajovic, naturalizado brasileiro, é um desses profissionais que lutam contra a industrialização. Há alguns anos tem colaborado com comunidades no nosso país, bebendo dos seus saberes ancestrais para ressignificar a arquitetura e o design.
Marko divulgou recentemente o projeto de uma Biblioteca Comunitária Flutuante no lago Mamori, na Floresta Amazônica. Desenvolvido em estreita colaboração com a comunidade local, o projeto pretende se tornar uma referência para a construção sustentável e educação ambiental.
Depois de quase duas décadas de pesquisas e experimentações em design e arquitetura com um forte relacionamento com a comunidade local, a equipe envolvida no projeto de Marko descobriu que os principais problemas locais estão diretamente relacionados a processos industriais e materiais de construção industrializados.
O uso de tais materiais e técnicas de construção introduzidos de fora resultaram em novas tipologias arquitetônicas que não atendem às condições climáticas, desgastando a qualidade de vida da cultura local.
Com novos olhares para materiais e processos, é possível construir cidades e edifícios mais criativos, resgatando a imaginação de profissionais da criação. E que essas cidades não sejam produtos de indústrias atrasadas, com tecnologias poluentes e caras, e que não se encaixam mais em contextos descolonizados.
Via O futuro das coisas.