No artigo desta semana da Metropolis Magazine, Kelly Beamon explora “a simbologia do telhado em duas águas”, analisando como muitos arquitetos contemporâneos têm se apropriado desta tipologia fundamental para ressignificar a sua própria essência. De acordo com Beamon, o telhado em duas águas é uma das mais tradicionais soluções arquitetônicas de cobertura, utilizada amplamente tanto em regiões de clima frio quando temperado, a qual está composta por dois planos inclinados e opostos os quais se encontram para formar a cumeeira. Como uma das soluções construtivas mais emblemáticas na arquitetura residencial dos EUA, este artigo procura analisar como este tradicional recurso tem sido reinventado ao longo das últimas décadas.
O telhado em duas águas pode ser considerado um símbolo tão preponderante da americanidade quanto a torta de maçã e embora as duas coisas sejam europeias em sua origem, ambas podem ser vistas hoje como a personificação máxima do universo doméstico americano. Entretanto, é importante notar que esta solução construtiva, apesar de ter sido difusamente utilizada desde a chegada dos primeiros imigrantes, se transformou e evoluiu com o tempo, assumindo distintas formas à medida que incorporava também novos materiais. Desta forma, podemos dizer que os telhados em duas águas encontra-se enraizados o território americano de forma tão profunda que até parecem uma solução autóctone por definição. E embora tenha sido combatida pelos arquitetos modernos ao longo de décadas, a cobertura em duas águas parece ressurgir como toda a força nos dias de hoje, tendo sido cada vez mais explorada e difundida por todo o território nacional.
“Uma abordagem ‘contextual’ na arquitetura não necessariamente significa exagero ou anacronismo. A arquitetura contextual manifesta a intenção de adaptar-se ao seu contexto, mas isso não a impede de ser inovadora também”, diz Katherine Chia, diretora da Desai Chia Architecture, escritório com sede na cidade de Nova Iorque. E é exatamente disso que se trata este artigo. Ainda que os três exemplos apresentados a seguir possam sugerir a volta do telhado em duas águas como uma moda passageira na arquitetura residencial norteamericana; centenas de milhares de outros projetos similares construídos recentemente nos quatro cantos do país apontam não para uma simples tendência, mas para uma verdadeira evolução—uma mudança de paradigma naquela que talvez seja a mais tradicional tipologia residencial de todos os tempos. Finalmente, parece que estamos nos livrando do preconceito moderno para com o expoente máximo da arquitetura vernacular.
Tenhamos como exemplo o projeto da Casa Woven, construída pela Bruns Architecture no meio-oeste dos Estados Unidos. Neste projeto, a forma da casa com telhado em duas águas “foi sendo destilada até restar apenas a sua mera essência, um casa que não é nada mais do que um simples telhado em duas águas”, comenta Stephen Bruns, sócio responsável pelo projeto. Ao eliminar a distinção entre planos verticais e inclinados, subtraindo o beiral e outros elementos desnecessários, ressignificamos a própria tipologia sem que ela se transformasse em uma “caricatura” de si mesma. O revestimento—feito a partir de um composto de pneus reciclados—é fluido e contínuo, partindo desde a base da parede até o topo da cumeeira, reforçando a imagem simbólica da casa.
O MacKay-Lyons Sweetapple Architects, com sede na província da Nova Escócia, é um dos escritórios de arquitetura que mais projetaram casas em tipologias de duas águas no Canadá, mas ao invés de apenas reproduzir e banalizar essa tradicional tipologia construtiva, eles aproveitaram desta oportunidade para refrescar e modernizar seus elementos e componentes. Apropriando-se amplamente de materiais industriais como o aço corten, eles procuram continuamente reinventar e ressignificar esta tipologia. “É o vernáculo que nos interessa”, comenta Brian MacKay-Lyons, “fazer o que é ‘bom e funciona’ é a melhor maneira de se construir comunidades.”
Também digno de nota é outro projeto da Desai Chia, uma casa de final de semana na qual eles procuram reinventar a tipologia tradicional local de armazém em duas águas utilizando um revestimento de madeira de pinho amarelo Kebony carbonizado em um estilo japonês conhecido como shou sugi ban. Esta solução simples em duas águas fez com que os arquitetos ousassem e arriscassem mais em outros elementos e componentes do projeto. Trabalhando em parceria com os engenheiros estruturais da PE David Kufferman, eles desenvolveram uma mega estrutura em forma de moldura, a qual os permitiu liberar todo o plano inclinado do telhado de vigas e treliças. “Não queríamos que pensassem que estávamos apenas projetando mais uma casa de telhado em duas águas, queríamos criar algo novo e inovador a partir de uma solução bastante tradicional”, comentaram os arquitetos responsáveis.
Jonathan Tate, sócio fundador do escritório de arquitetura OJT (Office of Jonathan Tate), é outro arquiteto que acredita que a abordagem contextual não necessariamente é retrograda ou conservadora. Apropriando-se de formas bastante simples e modernas, o seu projeto em Nova Orleans encaixa-se perfeitamente em seu contexto específico, refletindo a mesma escala e ritmo das demais edificações do entorno. Como ele mesmo diz, “é um prazer enorme ter que lidar com tipologias mais tradicionais, é algo que remete à minha infância e o lugar onde cresci. É algo familiar e agradável, mas ainda assim, aberto a novas leituras e reinterpretações.”
“Radicalmente familiar porém, diferente”, é assim que Jennifer Bonner, fundadora do escritório de arquitetura MALL e também professora associada na Harvard Graduate School of Design, descreve o projeto de sua casa em Atlanta. Batizada de Haus Gables, esta casa foi projetada como um estudo de caso em escala 1:1 no qual ela explorou e desenvolveu uma solução estrutural em madeira laminada colada, um recurso que a permitiu liberar vistas mais amplas do interior para o exterior. “Trata-se de uma nova materialidade, porém, a expressão simbólica de uma casa em duas águas permanece a mesma”, diz Bonner.
Muitos exemplos desta nova geração de casas com telhados em duas águas compartilham de um mesmo elemento, ou melhor, da falta dele: as calhas convencionais: “Ao subtrair a saliência do beiral, a água da chuva passa a ser recolhida junto à base das paredes, em uma espécie de canal de drenagem enterrado no solo”, explica Bruns. “Ao eliminar as calhas deixamos que a água da chuva escorra pelas paredes da casa, uma abordagem inovadora que só foi possível com a chegada de novas soluções de revestimento de fachada.” A forma de abrir, recortar e acomodar os espaços interiores também mudou consideravelmente com as novas tecnologias estruturais disponíveis. “O problema das antigas estruturas de telhados em duas águas é que as nossas possibilidades de explorar os espaços interiores eram mais limitadas”, diz Bonner.
A busca por promover e ampliar o acesso à moradia digna também impactou decisivamente na evolução e transformação desta tipologia. A crise habitacional e a urgência por desenvolver soluções construtivas mais eficientes e acessíveis têm impulsionado a exploração de novas versões e variações desta tipologia. Tomemos, por exemplo, o projeto para a Comunidade de Bastion, desenvolvido pela OJT; um conjunto de habitação social para veteranos de guerra no bairro de Gentilly, em Nova Orleans. Visto de cima, esta pequena comunidade muito se assemelha aos idílicos subúrbios das décadas de 1950 e 60, como em Levittown, Nova Iorque, onde infelizmente, o universo pitoresco das casas em duas águas carregava consigo também, a conotação de uma segregação racial avassaladora. Embora tenha se tornado um símbolo do sonho americano da casa própria, não podemos esquecer que estes icônicos telhados representam também, para uma grande parcela da população, exclusão e desigualdade. Neste contexto, o projeto de Tate para a Comunidade de Bastion opera quase como uma reabilitação desta tipologia—mesmo que isso não tenha sido de pensado de fato de maneira intencional. “O principal objetivo deste projeto era criar um bairro que se integrasse perfeitamente à sua vizinhança”, ele comenta.
Em outros diversos projetos espalhados pelo Alabama, Nebraska e Wyoming, onde a Bruns Architecture concentra seus esforços, algumas construtoras ainda preservam algumas de suas cláusulas formais restritivas, embora felizmente, a exclusividade racial seja proibida por lei no país já a muito tempo. Nestes contextos homogeneizantes, “a figura de Frank Lloyd Wright nunca teria existido”, diz Stephen Bruns. Um de seus clientes, que estava procurando um terreno para construir a sua casa, recebeu um dossiê de mais de 124 páginas, onde os empreendedores do condomínio não apenas restringiam as novas edificações a casas em duas águas como estabeleciam até o grau exato de inclinação do telhado. “A uniformização chega a ser tão absurda que as pessoas sequer podem escolher como será a própria casa onde elas vão morar”, diz Bruns.
Visto por essa ótica, estes esforços restritivos não apenas limitam as tipologias de um bairro, mas a própria criatividade dos arquitetos. Da mesma forma, o projeto de lei proposto pela administração Trump para limitar os estilos arquitetônicos dos edifícios públicos no país poderia ser visto como o maior retrocesso em toda a historia da arquitetura norteamericana.
Por sorte, o crescente números de projetos híbridos, estranhamente familiares porém diferentes, contextuais, ou seja lá como você queira chamá-los, carregam consigo a semente de uma mudança que veio não apenas para consagrar uma tipologia confessa, mas para promover sobretudo, uma verdadeira mudança de paradigma. “É como se os arquitetos estivessem finalmente abandonando o vício de falar sozinhos e estejam tentando, finalmente, construir um diálogo com a demais pessoas à sua volta”, diz Tate.
Este artigo foi publicado originalmente em Metropolis.