O movimento maker é uma filosofia que gira em torno da atividade criativa do fazer, intrínseca ao ser humano, e que se dá através da utilização, adaptação e modificação de recursos existentes sem ajuda profissional (HATCH, 2013). Além disso, é baseada na cultura do “faça você mesmo”, sendo sua principal diferença a utilização de ferramentas digitais que facilitam e potencializam a colaboração, a documentação e o compartilhamento entre as pessoas. Desta forma os projetos ficam abertos e adaptáveis, qualquer pessoa pode acessar e modificar.
É a partir dessa transformação digital do fazer que é possível aumentar o conhecimento tecnológico das pessoas abrindo caminho para o surgimento de uma população de produtores que irá explorar áreas que muitas vezes o capital não mostra interesse. A comunidade que nasce desse processo se fortalece conforme mais ferramentas são elaboradas, pois essas ferramentas permitem a fabricação de protótipos e produtos em menor escala e em ambientes reduzidos, podendo até mesmo ser em casa. Como bem diz Chris Anderson, “a fabricação dos novos produtos não mais pertence ao domínio de poucos, mas uma oportunidade de muitos” (ANDERSON, 2012, p.50). É neste contexto que se inicia o surgimento de um ambiente propício para uma mudança histórica do processo de fabricação, expandindo os meios de produção das fábricas para as casas. Portanto, a criação e a fabricação de produtos, ao serem mais democratizadas, aumentam a acessibilidade de certos conhecimentos pelas pessoas e deixam de ser limitadas a pequenos nichos.
Os participantes do movimento maker buscam, conforme seus princípios, desenvolver uma nova força produtiva, econômica e cultural, ou seja, possibilitar que mais pessoas consigam produzir elas mesmas seus próprios bens de consumo. Em alguns setores que dependem menos da materialização para existirem, como música, filmes e jornalismo, essa tendência em produzir aquilo que se consome já existe. Mas o que ainda não vimos é a expansão dessa tendência para o setor da construção civil, que ainda se encontra na mão de grandes construtoras ou espalhada na informalidade, que coloca a maioria da população numa posição de desvantagem e, por que não dizer, de submissão.
A partir dessa perspectiva, podemos vislumbrar o surgimento de laboratórios que incentivem o pensar, o projetar e o fabricar. Desta forma, seria possível oferecer para a nova geração de pessoas um conjunto de ferramentas altamente produtivas capazes de acelerar o comportamento empreendedor, que está constantemente em busca por inovação e rápida evolução, até o dia em que todos nós nos tornemos projetistas (ANDERSON, 2012). Podemos notar como as startups hoje em dia têm uma relação próxima com essa tendência. Em essência são empreendedores que têm acesso a ferramentas necessárias e poderosas para projetar, construir e testar suas ideias até o desenvolvimento de protótipos, com o potencial de serem escaláveis e comercializados. O movimento maker traduz o modelo que os empreendedores e as startups já aplicam na esfera digital e transporta para o mundo material, tornando-o mais viável principalmente por aplicá-lo dentro dos fab labs.
Um fab lab, cujo nome é a abreviação do termo em inglês fabrication laboratory, é uma plataforma de prototipagem rápida de objetos físicos, inserida em uma rede mundial de laboratórios. Agrupa um conjunto de máquinas de fabricação digital, como a CNC (sigla em inglês para Computer Numeric Control, que significa “controle numérico computadorizado”), múltiplos componentes eletrônicos e ferramentas de programação associadas a microcontroladores (pequeno computador num único circuito integrado usados em sistemas embarcados/embutidos, ou seja, são completamente dedicados ao dispositivo ao qual estão inseridos). Contrariamente ao funcionamento dos laboratórios tradicionais de prototipagem rápida, que estão alocados dentro de empresas, a principal característica deste novo tipo de laboratório é que são abertos a todos, sem distinção de prática, diploma, projeto ou uso (EYCHENNE; NEVES, 2013).
Ao oferecer acesso a ferramentas poderosas e versáteis, os fabs labs têm capacidade de minimizaras barreiras que impedem a participação das pessoas e fazer com a produção de bens de consumo o que o surgimento da internet fez com a distribuição de informação (ANDERSON, 2012). A tecnologia digital presente nesses espaços dá poder ao indivíduo no que diz respeito aos meios de produção e permite a mudança do sistema de baixo para cima e uma maior democratização das ferramentas.
A abertura ao público em geral, o fácil acesso e as baixas tarifas são as principais características que fazem os fab labs terem sucesso e popularidade. Através delas, também facilitam os encontros, o acaso e o desenvolvimento de métodos inovadores para o cruzamento de competências, além de favorecerem a redução de barreiras para constituírem um terreno fértil à inovação (DIEZ, 2012).
As atividades sempre giram em torno da aprendizagem na prática. Fazer também é um modo de pensar, e por isso, possui uma inteligência própria. Existem coisas dentro de nós que não entendemos muito bem, e para entender, usamos a faculdade do fazer. Executar uma ideia é sair do abstrato e trazer para a realidade aquilo que está em nossa mente. O aprender na prática, dentro desses espaços, está intimamente ligado à produção colaborativa e transdisciplinar de objetos, que contribui respondendo a problemas por meio da inovação (NEVES, 2014). Ainda que seja um espaço para a produção de objetos, a principal ideia por detrás dos fab labs é aumentar a independência criativa das pessoas através de espaços educativos para a libertação da criatividade.
É a partir desse pensamento, que defende a democratização dos meios de produção, que surge a possibilidade de se elevar a posição do usuário, de alguém que apenas consome, para um potencial produtor. Como bem comenta Castells (2005), sobre a paixão criativa necessária para a autorrealização e crescimento pessoal contínuo das pessoas, essa perspectiva ainda aumenta o engajamento das pessoas em atividades e causas, pois ao participar dos processos de outra forma conseguem perceber sua relevância e o valor de suas contribuições com mais clareza. Maior participação e colaboração nos processos criativos aliadas com princípios da “mão na massa” também direcionam para o rompimento do sistema vertical fordista, e são premissas do que Neves (2014) chama de maker innovation, abordagem que busca promover a evolução das práticas no design.
Dito isso, coloca-se o questionamento: será que existe alguém melhor do que o próprio indivíduo para saber seus desejos e pensamentos? Qual seria o impacto em nossas vidas se o espaço em que vivemos pudesse estar mais próximo daquilo que esperamos dele? A capacidade técnico-arquitetônica manifesta-se no momento em que temos domínio do potencial e do conhecimento das ferramentas necessárias para colocar em prática aquilo que queremos? A participação e o conhecimento são essenciais para produzir e se apropriar do espaço, podendo ser intensificadas com o uso das tecnologias digitais como ferramentas, resta apenas nos perguntarmos os limites disso.
Este ensaio é um excerto de artigo originalmente publicado na Revista Cadernos de Pesquisa #10 da Associação Escola da Cidade e disponível para consulta aqui. Trata-se de publicação proveniente de Trabalho de Conclusão de Curso entregue em 2019 na Unesp-Bauru sob orientação do Prof. Dr. Sidney Tamai (Unesp-Bauru).
Referências bibliográficas
ANDERSON, Chris. Makers: The New Industrial Revolution. Nova Iorque: The Crown Publishing Group, 2012.
CABRAL, Cláudia Piantá Costa. Uma fábula da técnica na cultura do estado do bem-estar: Grupo Archigram, 1961-1974. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, PUC-Minas, Belo Horizonte, v.11, n.12, p.247-263, 2004.
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 2005.
LEITE, Raquel Magalhães. Oficinas em rede. 2016. Monografia (Graduação em Arquitetura e Urbanismo) – Centro de Tecnologia da Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2016.
NEVES, Heloisa. Maker innovation. Do open design e fab labs… às estratégias inspiradas no movimento maker. 2014. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.
PARVIN, Alastair. Architecture (and the other 99%): Open‐source Architecture and Design Commons. Architectural Design, Nova Jersey, v.83, n.6, p.90-95, 2013.