O debate sobre criminalidade e segurança pública no Brasil tem sido pautado pela polarização entre defensores de medidas duras contra o crime, que vão desde o endurecimento das penas e dos trâmites processuais até o salvo conduto da excludente de ilicitude para a violência policial, e críticos do sistema de segurança pública e justiça penal, pelos abusos praticados e a ineficácia do encarceramento para a contenção da criminalidade.
Para além desta dicotomia muitas vezes contraproducente para o enfrentamento de um problema que vitimiza grande parte da população brasileira, que tem sua integridade física e/ou patrimonial ameaçada cotidianamente, a questão da prevenção ao delito tem sido pouco discutida e menos ainda priorizada. Há experiências exitosas neste âmbito, e todas elas passam pelo maior protagonismo do poder local/municipal na implementação de iniciativas e programas e na articulação da ação das polícias com outros atores sociais.
No campo dos estudos criminológicos, a relevância do município na gestão da segurança pública é algo já constatado desde os primeiros estudos da Escola de Chicago, nas primeiras décadas do século XX. A identificação das zonas criminógenas e a implementação dos Chicago Area Projects, buscando identificar e atuar sobre os “gateways” da criminalidade, significaram um avanço importante no debate sobre a prevenção ao delito. Desde então, tanto no contexto norte-americano como em outros países, o envolvimento de gestores municipais na coordenação de programas de prevenção, com participação comunitária, tem sido muitas vezes o caminho mais exitoso para a redução de homicídios, lesões corporais, furtos, roubos e delitos sexuais.
No Brasil, seja por conta do modelo de policiamento adotado, seja em função das limitações impostas pelo texto constitucional, os municípios permaneceram por muito tempo à margem do debate sobre segurança pública.
Via de regra, este foi um problema considerado de responsabilidade dos governos estaduais. Contudo, a partir do final dos anos 90 a segurança pública passou a receber um tratamento especial na agenda das discussões dos compromissos da União com os municípios, deixando de se constituir como problema da segurança estritamente dos estados e de suas polícias.
Desde então, muitas experiências importantes de políticas públicas de segurança passaram a ocorrer na esfera municipal. Vários são os municípios que, nestes últimos 20 anos, criaram secretarias municipais de segurança urbana, assumindo responsabilidades na área, produzindo diagnósticos, desenvolvendo planos municipais, formando e reestruturando suas Guardas, implementando projetos sociais com foco na prevenção das violências e da criminalidade. Tais experiências são muito diversas e se orientam por princípios e expectativas também muito variadas, sendo, no geral, pouco estudadas e conhecidas.
No âmbito das políticas municipais de segurança, a pauta deixa de ser exclusivamente a repressão, priorizando a prevenção e a promoção de novas formas de convivência social e cidadã, focadas na garantia, no respeito e na promoção de direitos. A intenção passa a ser a implementação de políticas de segurança cidadã, balizadas por duas perspectivas, distintas e complementares: a repressão qualificada da criminalidade, com a contenção de grupos armados que dominam territórios e controlam mercados ilegais, como facções do tráfico ou milícias urbanas, e a prevenção social das violências, com a identificação de gateways e a incidência preventiva sobre os mesmos.
As políticas municipais de segurança cidadã expressam, pois, a expectativa de que as políticas de segurança devam se adequar às realidades locais e aos anseios das populações, em uma perspectiva de integração interinstitucional, intersetorial e interagencial, através de mecanismos democráticos de controle, monitoramento e avaliação das políticas públicas.
Em 2007, seguindo essa tendência mais ampla de indução da atuação dos municípios no campo da segurança pública, o Ministério da Justiça lança o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI), reconhecendo os avanços dos planos anteriores e assumindo a complexidade do fenômeno da violência, dando ênfase maior às questões das raízes socioculturais e dos agenciamentos subjacentes às dinâmicas das violências e da criminalidade, entendendo estarem imbricados à segurança outros problemas e fatores sociais, culturais, ambientais, tais como: educação, saúde, cultura e serviços de infraestrutura.
Entre os projetos e programas estruturantes do PRONASCI estavam a valorização dos profissionais do sistema de segurança pública e justiça criminal; a reestruturação do sistema penitenciário; o combate à corrupção policial e ao crime organizado e o envolvimento comunitário. Sobre os programas locais merecem destaque o Território de Paz, o Mulheres da Paz, o PROTEJO e os programas de Justiça Comunitária.
É possível afirmar que, em que pese a descontinuidade desta relação entre União e municípios no âmbito da segurança urbana, os resultados alcançados estabeleceram as bases para a construção de um novo modelo de segurança pública, menos centrado no papel repressivo e reativo do Direito Penal e do sistema de justiça criminal (judiciário, polícias e prisões), e mais na construção de alternativas democráticas e dialogais para a gestão e mediação dos conflitos e da violência.
Entre as prioridades das políticas municipais de prevenção ao delito estão aquelas voltadas especificamente para os jovens, que, como se sabe, são os mais afetados pela violência interpessoal.
Investindo em esporte, cultura e educação, o Protejo (Projeto de Proteção dos Jovens em Território Vulnerável) buscou inserir o jovem exposto violência, tanto doméstica quanto de rua, aos direitos de cidadania. A ideia era resgatar sua autoestima, enfrentar vulnerabilidades e construir alternativas de vida diferentes da opção pelo tráfico e outras formas de obtenção de renda de forma ilícita.
Outra ação importante foi o Projeto Mulheres da Paz, formando lideranças femininas nas comunidades mais vulneráveis para a concretização de um trabalho de disseminação de uma cultura de cidadania. Aproximar os jovens ao Protejo, por exemplo, foi uma das finalidades das Mulheres da Paz, formadas em cursos de formação em Direitos Humanos e capacitadas a mediar conflitos e encaminhar pessoas em situação de risco para que participassem dos projetos desenvolvidos em suas comunidades. As Mulheres da Paz recebiam uma bolsa auxílio para desenvolverem este trabalho.
É através dos Gabinetes de Gestão Integrada Municipal (GGIM) que a comunicação entre os diferentes agentes e agências se inicia: policiais civis, militares, guardas municipais, servidores da secretaria de segurança pública e representantes da comunidade começam a traçar metas para enfrentar os problemas e administrar os conflitos. Instalam-se, então, os Conselhos Comunitários de Segurança Urbana, com o objetivo de discutir as diversas questões ligadas à violência. A união dos agentes responsáveis é a principal inovação, já que não são apenas os responsáveis diretos pela segurança pública que discutem os problemas, mas os próprios membros da comunidade, que interagem e dão ideias para lidar com os conflitos.
Mais recentemente, um estudo do IPEA sobre os municípios que mais reduziram as mortes violentas entre 2019 e 2020 apontou a cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul, como um dos quatro municípios com maior redução, da ordem de 52% entre um ano e outro. Entre as causas do fenômeno está a iniciativa do município em assumir responsabilidade na prevenção ao delito, inclusive com o apoio de consultoria externa (Instituto Cidade Segura). A cidade assumiu o Pacto pela Paz, com um conjunto de medidas voltadas à integração das polícias para o enfrentamento dos hot spots da criminalidade, assim como a apreensão de armas ilegais. O foco na prevenção foi adotado pela implementação de programas sociais, como o Infância Melhor (visitas de profissionais de saúde a crianças de até 3 anos em situação de vulnerabilidade social), Famílias Fortes (encontros semanais para fortalecer vínculos familiares de jovens com até 14 anos) e Escola pela Paz (com comissões internas de prevenção da violência nas escolas).
Uma agenda efetiva para as políticas públicas de segurança deve abordar preferencialmente ações preventivas, articuladas com departamentos e secretarias importantes da administração pública (educação, saúde, serviços sociais, habitação, transporte, planejamento urbano, comunicação, esporte, lazer e cultura) — políticas específicas de segurança preocupadas com a proteção integral de direitos, com o sistema de persecução criminal, incluindo, ainda, entidades da sociedade civil, associações comunitárias, cidadãos em geral. Resta claro que esses pressupostos, embora não exaustivos, representam passos importantes para o enfrentamento da violência e da criminalidade a partir da experiência local das cidades no campo da segurança pública.
Via Caos Planejado.