A Reitoria da Pontifícia Universidade Católica de Goiás pretende extinguir a Escola de Artes e Arquitetura Professor Edgar Albuquerque Graeff.
A justificativa para o ato inesperado é a redução de custos da instituição. O argumento seria até admissível. Administrar ou reduzir despesas é um procedimento habitual, não apenas para universidades filantrópicas. Mas não está claro — e sequer razoável — é porque que, para reduzir os custos ordinários de uma instituição, seja necessária a extinção de uma de suas partes mais antigas e mais reconhecidas; uma Escola que se destacou excepcionalmente, em cenário nacional, com uma história que precisa ser lembrada aqui, a fim de darmos conta da atitude trágica que se exaspera; uma atitude tomada sem diálogo com os professores, artistas e arquitetos, que lá estão; sem considerar, também, a identidade e a memória de milhares de arquitetos, artistas e designers que nela estiveram nos últimos 70 anos.
A Escola de Artes e Arquitetura nasceu da Escola de Belas Artes em 1968, que, por sua vez, nasceu da Escola Goiana de Belas Artes, fundada em 1952 a partir do encontro de três importantes artistas: Luiz Curado, Frei Confaloni e Gustav Ritter. Ela passou a se chamar Escola de Belas Artes quando contribuiu — de forma decisiva — para a criação da própria Universidade, em 1959, juntando-se a outras unidades como a Filosofia, a Enfermagem e o Direito. Ou seja, a instituição deve a sua existência mesma à Escola de Belas Artes, pois só com ela foi possível pleitear — alcançado um certo número de Escolas e Faculdades — a fundação oficial da Universidade, organizada pela Sociedade Goiana de Cultura. Como a Universidade Federal foi fundada no ano seguinte, em 1960, ela passou a se distinguir como Universidade Católica de Goiás, sob chancela da Arquidiocese de Goiânia.
Durante o regime militar, a Escola de Artes e Arquitetura foi transformada em Departamento de Artes e Arquitetura; embora tenha sido tratada sempre, e denominada, por professores e alunos, como Escola, justamente pela relevância de sua memória genealógica. Mesmo no período conturbado e difícil da ditadura — haja vista, sobretudo, a visão progressista que dentro dela sempre imperou —, ela conservou sua identidade e sua autonomia. Recentemente, em ato oficial bastante digno, um processo de reestruturação da Puc-Goiás fez com que o Departamento voltasse a se chamar Escola de Artes e Arquitetura, o que foi extremamente significativo para todos nós. Assim, passados 7 ou 8 anos deste reconhecimento histórico, nos ameaça incrível retrocesso.
Mas o problema não reside apenas na transformação do nome. A Reitoria pretende alocar os cursos de Arquitetura e Urbanismo, e de Design, em um grande centro politécnico, dominado obviamente pelas engenharias. Imagina-se que possa haver também alguma redução no quadro de professores e funcionários técnico-administrativos. Entende-se que uma instituição precise, continuamente, administrar suas receitas e despesas. Só não se compreende que se faça, nesse ato, extinguir uma Escola em cujo espaço trabalharam, se formaram e conviveram os melhores artistas e arquitetos goianos de várias gerações. Como professores, ou alunos, contribuíram com ela, além de seus fundadores, artistas e arquitetos excepcionais, como Antonio Péclat, José da Veiga Jardim, Helder Rocha Lima, DJ Oliveira, Cleber Gouveia, Jorge Felix de Souza, Edgar Graeff, João Filgueiras Lima, Siron Franco, Ana Maria Pacheco, Amaury Menezes e tantos outros que ali ainda são professores, e que, à revelia da história e de seu significado, farão parte de um curso a mais na engrenagem de um instituto politécnico.
A Escola de Artes e Arquitetura foi, durante mais de três décadas, a única no Estado a formar arquitetos e urbanistas. Para se ter uma ideia de sua importância, outros cursos de arquitetura foram abertos em Goiás há bem pouco tempo. O segundo foi criado na Universidade Estadual (UEG), apenas no ano 2000. Na Universidade Federal de Goiás (UFG), o Curso de Arquitetura e Urbanismo foi criado mais recentemente ainda, em 2009, nos bons ventos do Programa Reuni. O lugar em que se sediou este curso é sintomático, e diretamente dependente da história da nossa Escola. Ao invés de se implantá-lo na Escola de Engenharia da Universidade Federal, o curso de arquitetura foi incorporado à Faculdade de Artes Visuais, fundada em 1960 e originada, por sua vez, do Instituto de Belas Artes de Goiás. Muitos dos professores desses dois cursos públicos de arquitetura foram professores da nossa Escola ou se formaram nela, vários deles meus colegas. E vale a pena comentar: a atual Escola de Música e Artes cênicas da Universidade Federal de Goiás também nasceu — e ainda atua, com enorme relevância — da parte musical da Escola de Belas Artes.
Outras circunstâncias tornam ainda mais estranha a extinção que se projeta. A Escola de Artes e Arquitetura logrou reconhecimento nacional a partir de uma reformulação curricular que aconteceu durante os anos de 1978 e 1979 — dez anos depois, portanto, de sua criação. O trabalho de reformulação foi extremamente coletivo, em que participou boa parte do colegiado de professores e também alunos — alguns destes, hoje, professores. Mas a personagem central desse processo foi o professor Edgar Albuquerque Graeff. Figura de destaque na teoria e no ensino de arquitetura no Brasil, desde a década de 1950 — formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro e um dos co-fundadores da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília —, Graeff havia acabado de voltar do exílio, em 1978, sendo recebido com entusiasmo por toda a Escola em Goiânia. Ali, ele foi decisivo, e me considero privilegiado por ter me formado à luz desse currículo coordenado por ele, fartamente elogiado em tantas instâncias que debatem até hoje a pedagogia e a formação do arquiteto.
Esse ato de extinção é também paradoxal, justamente no ano em que a Puc-Goiás organiza, em conjunto com professores da Escola, uma série de atividades em comemoração ao centenário de nascimento do professor Edgar Graeff (1921-1990). Eu participei de um desses eventos, em outubro de 2020, ao lado do professor Hugo Segawa, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, em mesa redonda que procurava discutir o legado teórico do pensamento de Edgar Graeff para o ensino da arquitetura e do urbanismo no Brasil. Participaram do evento outros arquitetos e professores brasileiros, como Paulo Bicca e José Carlos Coutinho. Neste ano de 2021, outras mesas e debates estão programados, porque é justamente o ano do centenário do querido professor que deu seu nome à Escola que agora querem extinguir. Poderíamos dar voz ao próprio Edgar Graeff, a respeito do que se intenta fazer. Há 40 anos, ele chamava a atenção para o processo de fragmentação do ensino por que passavam muitos cursos e currículos, no texto Sobre a formação do arquiteto; algumas questões para reflexão e debate, de 1980. Uma das motivações do texto, salientou Graeff, foi constatar a pouca autonomia de cursos e departamentos de arquitetura situados em Institutos universitários ou Centros tecnológicos geridos por profissionais pouco ou nada conscientes das questões mais profundas da arquitetura.
À guisa de uma carta aberta, escrevo este depoimento como arquiteto que se formou na Escola de Artes e Arquitetura em 1999/2000; que foi dela professor de projeto, de teoria e de história, em 2000 e em 2003; mas também como engenheiro civil, que se formou na Universidade Federal, em 1992. Acredito que posso discernir bem o que está por se perder.
Os meus professores de arquitetura falavam sempre da Escola de Belas Artes como nossa origem, e de todos os fundamentos implícitos e explícitos a essa história. Sei, pela amizade e pelo convívio que guardo com muitos que ainda são professores ali e em outros cursos, o quanto aquele encanto que embalava a todos, ainda no final do século XX, devia muito à memória viva da Escola de Belas Artes preservada ativamente por professores e alunos.
E eu me lembro bem da atmosfera singular que preenchia os espaços da Escola, em todos os sentidos: humano, artístico, intelectual. Era um ambiente criativo e permanentemente inspirador, como eu nunca havia experimentado antes, mesmo convivendo com amigos músicos e poetas. Desde que pisei ali, em meus primeiros dias de estudante, percebi que tudo, no âmbito da construção, poderia (e deveria) ser visto de um modo diferente; com valores, meios e finalidades raramente contemplados nas escolas politécnicas de engenharia, que eu já conhecia. E percebi também, tempo depois, sendo professor, engenheiro e arquiteto, que estas duas áreas precisam se complementar continuamente, mas jamais se (con)fundir. Em síntese, obviamente redutora, mas didática, o ambiente de uma politécnica direciona o conhecimento rumo a um aprimoramento técnico-científico constante. O ambiente de uma escola de artes e arquitetura estimula um estado de constante criação, crítica e artística, em que o interesse principal é a destinação humana da construção.
Em nossa Escola de Artes e Arquitetura, nas aulas de ateliê, existia uma ambiência instigadora de experimentação, de desenho, de arte e de pesquisa. Havia professores artistas, pintores, escultores, fotógrafos, psicólogos, engenheiros e arquitetos. Nas aulas de teoria e de história, valorizava-se o papel social e político do arquiteto, a dimensão humana que deveria predominar em nossa formação, e que deveria orientar também a técnica e a construção. A arquitetura e as cidades que construímos precisam resguardar sobretudo essa dimensão humana, como bem lembrava o professor Graeff, sob o risco de vermos prevalecer as finalidades tecnicistas e comerciais que predominam em nossa sociedade capitalista e neoliberal. Nossas cidades precisam ser mais inclusivas, mais justas e mais democráticas, mais belas, mais humanas e melhor integradas à natureza. Bem vindo ao que se discute, essencialmente, em uma Escola de Artes e Arquitetura!
Em todas as transformações por que passou a Escola em seus quase 70 anos, foi preservado sempre o seu fundamento. Havia uma continuidade naquilo que caracterizava a Escola de Artes e Arquitetura em sua essência: a premissa e o reconhecimento de que a arquitetura possuía e propagava valores que congregavam arte e técnica, história e filosofia, sociedade e antropologia, não se consumindo, jamais, em uma definição estritamente disciplinar da arquitetura, ou em parâmetros objetiva e exclusivamente politécnicos.
Hoje, sei o quanto ter feito o curso naquela Escola foi definidor de todos os rumos que tomaram a minha vida profissional. Apesar das circunstâncias que atingem a gestão da PUC-Goiás, esperamos que se possa manter, de algum modo, a autonomia, o reconhecimento e a denominação de nossa Escola de Artes e Arquitetura Professor Edgar Albuquerque Graeff. A comunidade como um todo, da Escola — professores, alunos e egressos —, estaria aberta a pensar, juntamente com a administração da Universidade, noutra saída, noutro processo, a corresponder decentemente com a sua história. Mais do que preservar a memória de uma Escola reconhecida por sua singular e bela trajetória, o que dignificaria ainda mais a própria Universidade, mais do que preservar a história de milhares de profissionais que trabalharam ou se formaram ali, seria também manter ativo o âmago daquilo que nos motiva a todos — do cotidiano de nossas vidas ao sentido que adquire e justifica, diariamente, a nossa ação como arquitetos, como artistas e como professores.
Assine a petição Pela Identidade Histórica da Escola de Artes e Arquitetura.
Rodrigo Bastos é arquiteto, engenheiro civil, Mestre pela Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais, Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo, com Pós-doutorado pela Capes/McGill University, Montreal. Foi professor de vários cursos de Arquitetura no país e atualmente é professor associado do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina. É autor de dois livros, "A maravilhosa fábrica de virtudes", e "A arte do urbanismo conveniente".