A pandemia do Covid-19 aprofundou a crise dos centros urbanos, especialmente daqueles que, como o Rio de Janeiro, têm sua vitalidade associada às atividades comerciais e de serviços.
A determinação de períodos de lockdown e o estabelecimento das práticas de trabalho remoto diminuíram de forma substancial a circulação de pessoas, que alimentavam uma série de atividades, especialmente os bares e restaurantes, o pequeno comércio e os estabelecimentos culturais.
Em fevereiro de 2021, levantamento da Associação Brasileira das Administradoras de Imóveis (ABADI) apontou que quase metade dos imóveis comerciais do centro do Rio tinham fechado as portas (G1, 2021).
A ausência da função residencial foi especialmente sentida nesse novo contexto, evidenciando-se a sua importância para a manutenção das atividades da vida cotidiana: o comércio de bairro, a ocupação dos espaços públicos e o movimento das pessoas nas ruas, que muito contribuem para a sensação de segurança.
A constatação da gravidade do problema e da urgência em revertê-lo se reflete no recente movimento de diversos municípios para lançar programas urbanísticos com o intuito de recuperar o papel habitacional de suas áreas centrais.
Exemplos são o Programa Requalifica Centro, de São Paulo, o Programa Aluguel no Centro, de São Luís do Maranhão, o Programa de Reabilitação do Centro Histórico de Porto Alegre e o Programa Reviver Centro, do Rio de Janeiro, todos lançados em 2021.
No Rio, o Reviver Centro foi o principal tema urbanístico em debate na Câmara Municipal durante o primeiro semestre de 2021. Ele congrega uma série de medidas que buscam recuperar o dinamismo da II Região Administrativa da cidade, correspondente aos bairros do Centro e da Lapa.
Isso através da aderência ao uso residencial e misto, por meio de reconversão de imóveis, construção de novas edificações, recuperação do patrimônio cultural e requalificação de espaços públicos.
O programa conta com uma seção dedicada à regulamentação da intervenção de reconversão, o que inclui a flexibilização de exigências construtivas constantes do atual Código de Obras e Edificações (COES 2019).
Isso porque as determinações nele contidas, a serem seguidas para novas construções e reformas no município, dificultam muito a adaptação de edificações antigas, erigidas sob outros padrões construtivos, para a norma e a vida contemporânea.
Por exemplo, o Reviver Centro desobriga as edificações de terem vagas de estacionamento, possibilita a redução das áreas mínimas de unidades autônomas, para que escritórios ou salas comerciais possam ser adaptados em apartamentos sem que, para tanto, tenha que se proceder a extensas — e custosas — remodelações de áreas internas.
Possibilita, ainda, a existência de mais de um uso nos prédios, inclusive em seus pavimentos superiores, onde poderiam coexistir residências e escritórios, dinamizando a ocupação de edificações subutilizadas, e estimula-se o uso coletivo de terraços e coberturas, aproveitando o potencial paisagístico da área central.
Entendendo a importância de se atrair o interesse do setor imobiliário para a região — fator que, ausente, foi determinante para o insucesso de projetos de revitalização anteriores, como o caso do Programa Novas Alternativas (1994) — foram propostos incentivos fiscais, como isenção ou redução de IPTU e ITBI para imóveis que forem reconvertidos, complementarmente aos benefícios edilícios citados.
Além disso, o grande diferencial do programa ficou por conta da chamada Operação Interligada, que funciona da seguinte forma: o empreendedor imobiliário que recuperar um prédio no centro, destinando no mínimo 60% dele para a função residencial, adquire o direito de verticalizar determinados terrenos nas Zona Sul e Norte da cidade, hoje restritos a 4 pavimentos devido a uma determinação anacrônica da Lei Orgânica Municipal.
Obedecendo aos padrões de gabarito consolidados em cada área e seguindo uma série de determinações impostas na Lei, o empreendedor tem a chance de obter um retorno econômico advindo desta verticalização em áreas valorizadas e com alta procura, o que viabiliza o investimento realizado na região central.
Será necessário, ainda, que o interessado pague uma contrapartida pela verticalização pretendida, que será obrigatoriamente reinvestida em obras de requalificação de espaços públicos, recuperação do patrimônio cultural ou promoção de habitação de interesse social na área de abrangência do programa.
Em relação a este último ponto, o Reviver Centro prevê programas de locação social para faixas entre zero a seis salários mínimos, e oferece maiores benefícios ao empreendedor que concordar em destinar ao menos 20% das unidades residenciais criadas para locação social.
Há também o programa de moradia assistida, destinado à reinserção social de pessoas em situação de vulnerabilidade, e o programa de autogestão, que visa estimular a produção autogerida de moradia pelas comunidades, com direito a assistência técnica e linhas de financiamento.
Por fim, ressalta-se um último ponto fundamental do programa, que é a tentativa de estabelecer mecanismos que auxiliem na resolução de imbróglios fundiários e fiscais de imóveis abandonados ou subutilizados, um grande problema da maioria dos centros históricos. É o caso da regulamentação do instrumento de arrecadação de bem vago, previsto na Lei Federal n° 13.465 de 2017 (‘Lei do Reurb’) para o contexto do centro do Rio.
Entre o plano e a prática: a necessidade da gestão eficaz para a implementação do Reviver Centro
Mesmo com as críticas recebidas, especialmente devido à ausência de programas de habitação social para faixas entre 1 a 3 salários mínimos e o temor de a operação interligada ser um potencial descaracterizador urbano, as medidas acima descritas compuseram um programa de vulto, dos mais ambiciosos já idealizados para a região central, devido à abrangência dos instrumentos criados.
Já aprovado e sancionado, o fator que determinará o seu sucesso ou o seu fracasso, no entanto, ainda está por se iniciar: é imprescindível uma gestão ativa e eficaz para a implementação dos programas propostos, desde os de locação social, passando pela operação interligada até os distritos de baixa emissão e de inovação do centro, que necessitam de um grande aprofundamento nas medidas práticas que ambicionam instituir.
Particularmente, se as experiências anteriores nos ensinaram algo, é que quando se trata da reabilitação de centros urbanos é preciso avançar por diversas frentes: os espaços públicos, o patrimônio cultural, a viabilização de usos múltiplos, que garantam diversidade e vitalidade ao cotidiano e, de forma essencial, a reocupação de vazios urbanos.
Se o Reviver Centro entende essa urgência e endereça medidas para a dinamização do estoque edificado vazio e subutilizado na esfera privada, existe um confronto que o programa apenas tangencia, e que é necessário trazer à tona: os imóveis públicos vazios.
O centro do Rio de Janeiro possui uma enorme concentração deles, sob titularidade de todos os entes federativos: município, estado e união. Acredite se quiser, existem ainda propriedades sob titularidade do “Antigo Estado da Guanabara” e da “Prefeitura do Distrito Federal”, entidades inexistentes há mais de 60 anos, o que indica o baixo nível de dinamização destes imóveis.
Os muitos imóveis que o poder público detém, e que atualmente contribuem para a estagnação da região, são uma oportunidade para dinamizar o Reviver Centro, pois:
- Podem ser reconvertidos para a constituição de um parque público nos programas de locação social e moradia assistida;
- Podem ter o direito de uso concedido de forma séria a instituições com fins correlatos aos do programa, como a indústria criativa, por exemplo;
- E uma parte deles pode, sem dúvidas, ser alienada a custos atrativos, funcionando, ao mesmo tempo, como um catalisador dos empreendimentos imobiliários que se deseja atrair, e um gerador de receita que pode ser destinada à recuperação do restante do estoque edificado público.
Segundo Raquel Rolnik, “reabilitar os centros, segundo a estratégia de ampliar a urbanidade para todos, é, como sabemos, desafio de enorme complexidade. Entre outros fatores, porque não há solução possível que não rompa com a cultura corporativista dos vários entes públicos envolvidos na região”.
Se queremos que o Reviver Centro deslanche, é necessário cobrar do poder público, em seus diversos níveis, uma quebra desse corporativismo e uma disposição para enfrentar o problema de frente, dispondo do estoque construído sob sua tutela para um real uso público, que beneficie a cidade e seus moradores.
Via Caos Planejado.