Quando atravessa um espaço, um corpo carrega em si muitos significados. A leitura que se traduz entre esse diálogo pessoa-arquitetura, e as sensações que daí surgem, demonstram muito da desigualdade social e estruturas violentas intrínsecas ao imaginário ocidental que privilegia um mesmo padrão: o homem branco. Encontrar um lugar de reequílibrio no qual seja possível criar uma alternância de poder - em raça e gênero - é um compromisso de Erica Malunguinho.
Nascida e criada no Pernambuco, em 2018 foi eleita pelo estado de São Paulo primeira deputada trans do Brasil. Como parlamentar, é responsável por criar e alterar leis, e fiscalizar o governo representando a população. Enfrentar o racismo estrutural e defender populações mais vulneráveis não é um exercício que acontece apenas na Assembleia Legislativa, onde ela se dedica para a "reintegração de posse". Erica também é artista e educadora. Em 2016, criou o Aparelha Luzia, um quilombo urbano no qual ela destrincha e defronta as ramificações do projeto colonialista, trazendo "negritudes como continuidade de uma narrativa coerente para o enfrentamento das questões e resoluções das violências estruturais". Aqui, conversamos com a deputada sobre como o espaço urbano pode atuar diretamente na construção da equidade social.
Victor Delaqua (VD): Para falar de equidade é necessário antes pontuar os casos de desigualdade. Sabemos que um corpo é lido de diferente formas ao circular pelos espaços públicos, e que um mesmo espaço pode ser seguro ou violento de acordo principalmente com a raça ou gênero da pessoa. Você poderia compartilhar sua visão sobre esse tema?
Erica Malunguinho (EM): A violência, principalmente aquela determinada por fundamentos de raça e gênero, atua num âmbito institucional, explícito, mas também em silêncio, de forma simbólica e muito poderosa.
O primeiro passo a ser dado no combate a essas violências está na verdadeira reintegração de posse dos legados históricos que foram tirados das comunidades historicamente excluídas. A opressão está na ocultação do patrimônio de negros e indígenas, assim como na desumanização midiática dos indivíduos que fazem parte destes grupos – o que se vê cotidianamente no trato com homossexuais e transgêneres.
VD: O espaço público sempre será um espaço de conflito, de encontro com o diferente e o inesperado. Do ponto de vista da construção do ambiente construído, é possível pensar uma forma na qual ele propicie maior equidade para as pessoas? Ou ainda, um desenho arquitetônico consegue enfrentar questões como o racismo e a LGBTQIAfobia por si?
EM: Acredito na cidade enquanto espaço educador, que atualize a história de acordo com suas revisões. Exaltar os movimentos e pessoas que fizeram parte da história sem que sejam ‘romantizadas’ as figuras dos opressores, sendo que, entre estas, estejam incluídos os grandes nomes de culturas historicamente marginalizadas. Costumo dizer que a história tem outros lados, e é aí que entra aquele termo que muitos odeiam: representatividade. Essa é a palavra que resume a construção de um ambiente pautado em equidade, pois nela se pode fazer um desenho que estimule a produção de autoestima e reconhecimento, o que há séculos é usurpado das populações excluídas.
VD: "É pelos nossos territórios corporais não serem dignos de existência no espaço-cidade que novas epistemologias e imaginários sociais devem vir à tona, a fim de que possamos, enfim, permanecer". Esta colocação de Maria Léo Araruna aparece citada no texto da mesma autora: "O direito à cidade em uma perspectiva travesti". Neste, a partir de uma autoetnografia, ela discute como a construção de sua identidade travesti ocorre em meio às falhas de proteção do direito à vida urbana. Numa sociedade estruturada na cisnormatividade, como tornar esse espaço-cidade digno e seguro para transgêneres?
EM: Construir esse espaço-cidade pode e deve se dar através de políticas públicas, mas a dimensão simbólica, já citada, também precisa ser levada em conta. Isso se expressa quando analisamos a forma como a sociedade lê nossos corpos, incluindo quais lugares (físicos) estão destinados arbitrariamente aos nossos corpos. Durante o período da ditadura civil-militar, travestis não transitavam à luz do dia em muitos centros urbanos pela possibilidade de serem presas por “vadiagem”. Enquanto sociedade, é preciso que haja uma reflexão coletiva a respeito do que estamos fazendo para quebrar essas compulsoriedades. Isso diz respeito não apenas às/aos parlamentares, visto que estamos falando de micropolíticas cotidianas.
VD: Em 2020 você protocolou o Projeto de Lei 404/2020, que proíbe homenagens a escravocratas e a eventos históricos ligados ao exercício da prática escravista no âmbito da administração estadual. Esta PL vai ao encontro do tema da derrubada de monumentos, que discutem a memória que prevalece na sociedade. Se a cidade pode ser lida como um espaço educador através das imagens que ela evidencia, como pensar uma remodelação que a torne mais equitativa? É possível representar todas as ideias que existem numa cidade em seu espaço público?
EM: Uma observação marcante sobre o PL 404 está na alocação destas homenagens – no que diz respeito às esculturas – em museus públicos, com os devidos créditos às suas reais atuações. Isso seria parte de um processo educador, que também contaria com a inclusão de homenagens a representantes de todas as raças e gêneros fundadores de nossa ancestralidade.
A cidade, assim como a história, é uma construção a ser revisada e revisitada de tempos em tempos. Não podemos lidar somente com a informação imputada de acordo com a ótica do grupo que se mantém no poder, pois aí está a chave para a manutenção do status quo pautado no racismo.
A representação universal é utópica, e é da utopia que surgem as melhorias, as reparações históricas e, a ver, no horizonte, a verdadeira equidade.
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