Este artigo foi publicado originalmente em Common Edge.
Para todas aquelas famílias que passaram a pandemia trancadas em casa com um filho pequeno, apenas gostaria de dizer que sei bem o que vocês passaram nestes últimos anos. Lá em casa, os brinquedos que antes encontravam-se organizados por tipo e tamanho agora estão jogados nos cantos, enterrados sob outros tantos objetos da vida cotidiana de uma jovem família. Ainda assim, apesar da enorme saudade de nossa antiga vida no Brooklyn, encontramos consolo em nossa nova rotina suburbana, com nosso pequeno quintal, a nossa horta, a área de serviço e a bagunça de todo dia ... tanto que decidimos encomendar um outro filho para completar a festa! Enquanto abríamos as caixas da mudança em nossa nova casa com quintal, pensando já em como seria a vida durante a pandemia com um filho pequeno, a primeira ideia que nos veio à mente foi fazer a assinatura do canal da Disney. E, embora eu já tivesse visto muitos dos filmes da Pixar, assistí-los novamente neste novo contexto foi algo que me fez refletir muito sobre toda a situação que estávamos vivendo.
Embora os filmes da Pixar existam apenas dentro do universo cinematográfico, há algumas curiosidades que parecem ir um pouco além da sua própria realidade. No mundo imaginário dos brinquedos que falam existem dois elementos que parecem amarrar os cenários digitais dos filmes da Pixar com a realidade visível deste outro lado da telinha. Não me parece gratuita a invenção da Dinoco (empresa de petróleo / gás) e da Buy n Large (conglomerado global muito parecido com o que a Amazon representa hoje), as quais aparecem em vários filmes do estúdio de animação com sede em Emeryville, Califórnia. Tampouco parece fruto do acaso que essas corporações do mundo do faz de conta tenham um caráter, digamos assim, minimamente duvidoso. Estes pequenos elementos que se repetem no plano de fundo das histórias animadas dos filmes da Pixar, transparecem uma preocupação com a atual situação do mundo hoje—um convite à reflexão sobre a nossa própria condição humana.
Vamos ver se eu consigo me explicar. Tomemos como exemplo o filme Carros, cujos personagens—para aqueles que não estão familiarizados com os filmes infantis—são automóveis falantes. Nosso protagonista, Lightning McQueen, é um novato recém chegado ao competitivo e acirrado circuito dos carros de corrida. No que diz respeito às suas qualidades, ele parece ter tudo aquilo que se espera de um verdadeiro campeão: velocidade, arranque, resistência e carisma é claro. Mas, antes de ver a bandeira quadriculada da vitória parece que ele precisará enfrentar alguns obstáculos. No caminho para a próxima corrida, ele inadvertidamente pega a saída errada e acaba tendo que passar por Radiator Springs, uma cidade abandonada em meio a Rota 66. Através deste tortuoso caminho, o nosso protagonista faz uma série de novos amigos e acaba descobrindo o rico passado e a célebre história desta cidade: um antigo oásis no deserto, uma cidade vibrante e repleta de luzes e faróis. Nada disso se parece com a atual Radiator Springs que Ligatninf McQueen encontr—e muito se deve à construção da Rodovia Interestadual número 40, a qual tirou a cidade da rota no início dos anos 1960. A deriva pela cidade, Lightning chega até um cume desde onde é possível admirar aquilo que sobrou da outrora prodigiosa cidade de Radiator Springs. Além desta, é possível ver a rodovia que atravessa o deserto, por onde os carros passam zunindo, ignorando a sua presença. “Veja só: ninguém se dá conta do que há por aqui, ninguém sabe da beleza deste lugar”, diz ele ingenuamente. Uma moral bastante comovente por se tratando de uma história infantil de carros que falam. “No passado, carros cruzavam o país de uma maneira totalmente diferente”, diz o companheiro de Lightning, marcando não apenas uma clara nostalgia, mas uma crítica à política rodoviarista da segunda metade do século XX. “A cidade foi excluída do mapa simplesmente porque a construção da nova rodovia seria mais barata se esta evitasse o centro de Radiator Springs.”
Outro personagem interessante no catálogo da Pixar é Carl Fredericksen do filme Up: Altas Aventuras. Carl, dublado por Chico Anysio no Brasil, está passando por um período meio turbulento. Acontece que, o lugar onde ele passou boa parte de sua vida, uma pitoresca casa vitoriana de dois pavimentos em um lindo e arborizado bairro suburbano dos Estados Unidos, a qual ele reformou junto com sua esposa Ellie logo após terem se casado, encontra-se hoje em uma nova zona de expansão urbana, cercada por múltiplos edifícios e canteiros de obras. Assim como a casa, Carl já viveu dias melhores. Velho, carrancudo e solitário com sua bengala, ele se vê ilhado em meio a um mar de andaimes e estruturas de aço que mal deixam ver a luz do sol durante o dia. O salão de bronzeamento artificial e um restaurante japonês do outro lado da rua são sinais claros do amplo processo de gentrificação pelo qual o bairro está passando. Ele já não escuta mais os pássaros pela manhã e os grilos ao cair da noite, apenas britadeiras e caminhões de concreto que trabalham noite e dia no tereno ao lado. Mas Carl não se dá por vencido e não pretende arredar o pé de sua tão amada casa. Ele não se importa com dinheiro e tampouco parece disposto a negociar a sua saída. Somente quando a situação se torna inevitável, é que ele decide se mexer, amarrando balões em sua chaminé ele consegue escapar de uma vez por todas do caos que a sua vida na cidade se tornou.
E, finalmente, não poderia deixar de mencionar o filme WALL-E. O personagem que dá título ao filme é o último robô em operação na terra, programado para coletar e compactar o lixo deixado pela humanidade antes de migrar para um outro planeta distante. O ano é 2800, e a Terra foi reduzida a um depósito tóxico de entulho e lixo, o resultado de séculos de exploração e desequilíbrio ambiental. Não há nenhum humano vivendo na superfície da terra; eles estão vagando pelo sistema solar em suas estrelinhas, alienados de tudo em suas bolhas artificiais, inconscientes da devastação causada pelas gerações anteriores. Na verdade, a única coisa viva que habita o nosso planeta é uma única barata, a qual faz companhia para o solitário robô em sua interminável tarefa de limpar a Terra. O que WALL-E não sabe é que a sua missão é insignificante e que há muito, ninguém espera voltar para a terra. O planeta é uma causa perdida e a Buy n Large, a corporação que efetivamente desencadeou a extinção da vida na Terra, está bem consciente disso. E enquanto os humanos continuarem confortáveis em suas cadeiras elétricas e absortos em filmes e comerciais, ninguém se importará com este planeta imundo e inabitável. Mas em um determinado momento, WALL-E tropeça em uma pequena planta que parece brotar da terra—o sinal de que nem tudo está perdido. A partir deste feliz encontro, nosso personagem segue uma aventura interestelar maluca para derrubar um regime fascista e restaurar a civilização humana no planeta Terra.
Entretanto, nem todos os filmes da Pixar pregam mensagens assim tão profundas. Ratatouille e Soul são cartas de amor implícitas a cidades como Paris e Nova Iorque. Nestas histórias a mensagem que fica é que a vida na cidade pode ser difícil, mas no final, o esforço vale a pena. Divertida-Mente - que, aliás, é um belíssimo roteiro original - narra a saga de uma jovem menina forçada a se mudar com sua família do interior do Minnesota para as ruas movimentadas de São Francisco.
Mas nem tudo é apenas nostalgia romântica nos filmes da Pixar; o estúdio de animação parece gostar de cutucar a onça com vara curta. Em Os Incríveis, um casal de super heróis aposentados compulsoriamente, são forçados a viver uma vida de “João Ninguém”. Isso porque um infeliz incidente do passado fez com que os super-heróis fossem proibidos de utilizar seus super poderes em público, e Bob e Helen Parr (também conhecidos como Senhor e Senhora Incrível) simplesmente passam a viver uma vida banal e pouco incrível em um lugar qualquer perdido em meio a um típico bairro suburbano dos Estados Unidos. (Também não é coincidência que certos elementos artísticos no filme sejam uma ode aos estilos futuristas de Miroslav Šašek.) E em Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica, dois irmãos elfos adolescentes, Ian e Barley, habitam o fantástico mundo equivalente àquele do Suburgatório. No contexto mítico do filme, a magia já não significa nada em comparação ao consumismo desenfreado e os avanços tecnológicos. Como resultado, a história se transforma em lenda, que gradualmente passa a ser explorada como ficção e fantasia. Mas acontece que as lendas e histórias folclóricas são difíceis de apagar, e os irmãos elfos decidem ir em busca de suas raízes familiares e, essencialmente, se reencontrar com a fantasia perdida do mundo.
Recentemente, enquanto eu observava o caos dentro de casa, como se a nossa própria sala tivesse se transformado em um depósito de lixo espacial, eu comentei com minha esposa que a nossa era uma causa perdida. Mas não no mal sentido: eu estava chamando a atenção ao fato de que há uma série de lições que podemos apreender assistindo estes filmes de animação. Basta pensar um pouco sobre figuras como Baudelaire e O’Hara, Olmstead e Gehl, e outros tantos autores que nos ensinaram a ver o mundo a partir de uma outra perspectiva. Como se fosse um belo jantar romântico em que harmonizamos o prato com o vinho, combine trechos de The Power Broker com uma passagem de Up: Altas Aventuras, ou O Mito da Máquina de Lewis Mumford com as imagens de WALL-E. Se nomes como Lightning McQueen, Carl Fredericksen e WALL-E estão todos de alguma forma conectados a uma narrativa comum, então a mensagem que a Pixar procura implantar em nossas mentes é bastante clara. Mas, como em todo bom conto de fadas, vislumbres de esperança muitas vezes estão escondidos nas entrelinhas e tirar as nossas próprias conclusões é mais do que necessário. É preciso sonhar como uma criança para poder transformar o mundo à nossa volta, e às vezes, vale a pena voltar a ser criança, nem que seja apenas por uma noite.