As cidades estão no centro da crise causada pela Covid-19, expondo mais uma vez problemas como a falta de acesso a moradia, transporte, infraestrutura e serviços de qualidade – especialmente entre as populações de menor renda. Os efeitos da emergência climática nos centros urbanos também estão bastante visíveis e cada vez mais frequentes, como deixou claro o último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) a partir de novas evidências. O Brasil enfrenta hoje uma crise hídrica e energética, mas recentemente sofreu com chuvas torrenciais, inundações e deslizamentos de terra, alguns com vítimas fatais. No médio e longo prazo, as cidades costeiras serão afetadas pela elevação do nível do mar.
Esse cenário coloca os governos nacionais diante de um desafio triplo: recuperar a economia após a pandemia, enfrentar as ameaças geradas pelas mudanças climáticas e avançar seus objetivos de desenvolvimento de longo prazo. Embora a maior parcela das emissões de gases de efeito estufa (GEE) do Brasil tenha origem no uso e conversão do solo, é nas cidades que vivem mais de 87% dos brasileiros e onde cerca de dois terços do PIB são produzidos. Decisões que impactam a floresta são tomadas nas cidades, e não haverá uma retomada verde da economia do Brasil sem a inclusão dos territórios urbanos.
O Brasil se urbanizou rapidamente, com mais de 50% de sua população vivendo em cidades em 1965, número que chegou a quase 87% – 183 milhões de pessoas – em 2018. A dispersão urbana é um problema generalizado no país, gerador de muitas ineficiências. Nas últimas duas décadas, foram os municípios com menos de 1 milhão de habitantes que apresentaram o maior crescimento populacional, e o seu desenvolvimento ocorreu principalmente a partir do espraiamento da mancha urbana. Somente no período de 2000 a 2014, as cidades do Brasil se expandiram em 1.603 km2, área superior à da cidade de São Paulo.
Reverter esse modelo de desenvolvimento urbano é uma oportunidade para estimular a economia e reduzir desigualdades, gerando emprego e renda pelo caminho. Um novo estudo elaborado com apoio do WRI Brasil e coordenado pela Coalition for Urban Transitions, uma coalisão formada por institutos de pesquisa, redes de cidades, investidores, empresas de infraestrutura e de consultoria estratégica, ONGs e redes de cidades nos cinco continentes, contribui para indicar ações capazes de destravar o potencial das cidades brasileiras na retomada verde.
A modelagem econômica realizada no estudo mostrou que um cenário otimista de implementação de medidas de baixo carbono nos setores de construção civil, transportes e gestão de resíduos permitiria reduzir as emissões urbanas de GEE em 88% até 2050 em comparação ao cenário atual. Os investimentos adicionais necessários nesse cenário seriam de US$ 1,7 trilhão até 2050, e poderiam ser mais que compensados apenas pela economia de custos, gerando retorno acumulado com um valor presente líquido de US$ 369,7 bilhões até 2050. Além disso, poderiam gerar mais de 4,5 milhões de novos empregos até 2030.
Abaixo, listamos 6 estratégias que podem contribuir para tornar essa oportunidade urbana uma realidade no Brasil.
1. Estabelecer uma nova estratégia nacional
O Brasil conta com um arcabouço legal que se caracteriza por importantes políticas nacionais, como o Estatuto da Cidade, que acaba de completar 20 anos. No atual momento, o país carece de uma nova visão para o desenvolvimento urbano de todo o país, uma nova agenda urbana que torne as cidades mais equitativas e promova uma transição justa para uma economia de baixo carbono.
Há uma oportunidade muito concreta no horizonte: o Ministério do Desenvolvimento Regional está desenvolvendo a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano. Esse processo pode contribuir para estabelecer essa nova agenda, que necessita de estratégias diferenciadas para incorporar a diversidade das cidades brasileiras e deve criar um processo de monitoramento e avaliação de sua implementação. O Brasil precisa fortalecer e implementar planos e políticas existentes, como o Estatuto da Cidade, mas também o Estatuto da Metrópole, a Política Nacional de Mobilidade Urbana, a Política Nacional de Desenvolvimento Regional, a Política Nacional de Mudanças do Clima e o Plano Nacional de Adaptação, entre outros.
Uma nova estratégia nacional também poderia incluir um sistema nacional de diagnóstico de resiliência que, no mínimo, reunisse dados de emissões de gases de efeito estufa (GEE) e métricas essenciais de vulnerabilidade, como acesso a água e exposição a riscos de desastres específicos, entre outros.
2. Desenvolver e estimular a governança metropolitana
Mais da metade da população brasileira está concentrada em 74 regiões metropolitanas. Dependem de mobilidade, água, saneamento, gestão de resíduos sólidos e outros serviços públicos. A gestão a partir da escala metropolitana poderia reduzir custos, expandir a disponibilidade e melhorar a qualidade desses serviços.
Os Planos de Desenvolvimento Urbano Integrado (PDUI) previstos pelo Estatuto da Metrópole precisam ser implementados com mais celeridade e ambição. São eles que definem as Funções Públicas de Interesse Comum (FPIC), como os serviços urbanos mencionados acima. Ao mesmo tempo, poderiam ser criados mecanismos de financiamento específicos para apoiar ações em nível metropolitano, a partir de um fundo ou de linhas especiais de crédito, apoiados por modelos padronizados de governança que facilitassem os consórcios municipais na gestão dos serviços públicos comuns.
3. Políticas de acesso ao transporte sustentável
O setor de transportes é um dos que tem o maior potencial de redução de emissões de GEE nas áreas urbanas, de acordo com o estudo. A mobilidade urbana também poderia estar no centro de uma estratégia nacional para reduzir as desigualdades, já que grande parte da população depende do transporte coletivo para ter acesso a emprego, saúde, educação e lazer.
O caminho possível é repensar as cidades a partir da escala de prioridades já prevista na Política Nacional de Mobilidade Urbana: primeiro pedestres, seguidos de ciclistas, transporte coletivo e, só depois, os outros modos de transporte. A realidade hoje é oposta. Entre as ações para um transporte de baixo carbono, está a revisão e reformulação de subsídios fiscais nacionais e criação de estruturas de tributação que incorporem as externalidades causadas pelos veículos privados. O transporte coletivo urbano precisa sobreviver e se renovar, para então prosperar. Outras políticas nacionais, como o Programa Nacional de Controle das Emissões de Veículos (Proconve), precisam ser mais ambiciosas e contar com monitoramento e avaliação apropriados. As agendas nacionais de transportes e energia precisam andar lado a lado, especialmente no contexto dos veículos elétricos.
4. Renovar programas e políticas nacionais de habitação
O setor de edificações é um dos que mais podem contribuir com a redução de emissões em áreas urbanas, gerando muitos empregos e atividade econômica. Com princípios e critérios norteadores corretos, projetos de habitação em escala nacional poderiam ajudar a colocar o setor no caminho de baixo carbono e ao mesmo tempo reduzir desigualdades, tornando as cidades mais compactas, conectadas e acessíveis.
Boas iniciativas de habitação podem concentrar muitas ações importantes para a retomada verde nas cidades. Novos empreendimentos devem priorizar locais onde já há infraestrutura, especialmente onde ela é subutilizada, com critérios coerentes com o desenvolvimento de uma nova agenda urbana. Códigos de construção e normas de eficiência poderiam estimular a transição energética e soluções baseadas na natureza para infraestrutura básica como saneamento e drenagem, por exemplo. Mecanismos existentes e previstos na atual legislação urbana, que permitem converter prédios e propriedades subutilizados em habitações precisam ser mais estimulados, assim como novos arranjos legais, como parcerias público-privadas, parcerias público-populares e parcerias público-privado-populares.
5. Expandir o financiamento a projetos de baixo carbono
O gasto médio do Brasil com infraestrutura foi de apenas 2,1% do PIB entre 2000 e 2016 – menos da metade da média global, que é de 4,7% do PIB. Mesmo modestos, eles fizeram diferença: a porcentagem de domicílios com acesso a água encanada passou de 78% em 2001 para 86% em 2018, e a parcela conectada com redes de esgoto passou de 45% para 66%. O financiamento verde e climático é uma oportunidade para tirar projetos ambiciosos do papel.
Recentemente, um relatório fruto de uma parceria do WRI Brasil com o Ministério de Minas e Energia e a GIZ, agência alemã de cooperação internacional, mostrou como governos e instituições financeiras podem impulsionar o financiamento verde nas cidades. O governo federal deve assegurar as condições necessárias para esses investimentos, e as cidades precisam buscar capacidade de pagamento e planejamento. Facilitar e remover as barreiras existentes para o financiamento de infraestrutura sustentável é parte fundamental na construção de cidades de baixo carbono.
6. Reformas fiscais que equilibrem a distribuição de receitas tributárias às cidades
Para as cidades brasileiras, o reequilíbrio da situação fiscal é tão importante quanto o acesso a novos recursos financeiros. Apesar de o Brasil ter uma das cargas tributárias mais elevadas da América Latina, menos de 6% dessa receita é arrecadada pelos governos municipais. Os municípios também exploram pouco o potencial pleno do IPTU (principalmente a taxação da ociosidade imobiliária), dos instrumentos de recuperação da valorização imobiliária previstos no Estatuto da Cidade e da cobrança das externalidades negativas geradas pelo transporte individual motorizado.
O país poderia incentivar a melhoria da gestão fiscal e dos gastos públicos ao usar critérios de aprovação de investimentos a nível nacional que vão além da avaliação da capacidade de endividamento e que recompensem uma boa gestão fiscal.
Não existe só um Brasil urbano, mas seu futuro precisa ser verde
O Brasil é um país grande e diverso, com diferenças culturais, ambientais e econômicas significativas entre as regiões. Tudo isso definiu os modelos de urbanização e continuará definindo. Qualquer esforço para descarbonizar a economia brasileira e promover a resiliência, inclusive nas cidades, precisa reconhecer essa diversidade ao definir ações e prioridades. Também necessita proteger e respeitar a autonomia dos municípios, conforme previsto em lei, permitindo aos governos municipais tomar as decisões mais importantes com relação ao uso do solo, transportes e serviços urbanos.
Destravar o potencial sustentável das cidades é um passo importante para a solução das crises históricas e recentes do Brasil e contribuirá para oferecer um caminho mais próspero a todos os brasileiros.
Via WRI Brasil