Em Accra, capital de Gana, Owusu, a esposa e os quatro filhos dividem uma casa com outros cinco inquilinos e suas famílias no bairro de Tantra Hills. A casa possui um banheiro e energia elétrica, mas os custos de ambos são excessivamente altos. Como não é conectada à rede municipal de abastecimento de água, Owusu precisa comprar água de vendedores que cobram caro. A conta de luz, em torno de US$ 50 por mês, é mais alta do que o aluguel de US$ 33. Com uma renda mensal de US$ 175, Owusu vive com o medo de ser despejado caso haja aumento no preço do aluguel, da água ou da eletricidade.
Além disso, o bairro de Owusu não dispõe de acesso fácil ao transporte público. O ponto de ônibus mais próximo fica a cerca de um quilômetro, e normalmente ele espera até 30 minutos pelo ônibus. O trajeto até o trabalho, em um posto de gasolina, leva em torno de duas horas, sem trânsito. De segunda a sábado, ele sai de casa às 4h30 para não pegar a hora do rush.
Owusu é um dos 1,2 bilhão de moradores de cidades no mundo todo que vivem sem acesso a serviços básicos como água e saneamento, eletricidade, habitação digna e transporte. O relatório-síntese da série World Resources Report, Towards a More Equal City (Rumo a uma cidade mais equitativa, em tradução livre), mostra que um a cada três habitantes de cidades no mundo é desassistido por serviços urbanos. E essa distância – entre os que possuem e os que não possuem acesso a serviços básicos – tem se ampliado em decorrência do crescimento desenfreado e mal planejado das cidades.
Essa desigualdade impacta todos nas cidades, não apenas as pessoas desassistidas. Sem acesso a serviços municipais, moradores de todas as faixas de renda são forçados a encontrar os próprios meios para suprir suas necessidades de casa, água, saneamento, energia e transporte. Os serviços alternativos podem ser inferiores em qualidade e mais caros do que os serviços municipais acessíveis a outras pessoas e podem ser danosos para o meio ambiente, mas muitas vezes são a única opção disponível. A desigualdade no acesso aos serviços urbanos impacta toda a cidade na forma de perda de produtividade, gastos mais elevados, degradação ambiental e prejuízos à saúde. Mas não precisa ser assim.
O relatório-síntese do WRR identifica sete transformações cruciais que reimaginam a oferta de serviços públicos, incluindo as pessoas excluídas e criando as condições adequadas para uma mudança duradoura. O estudo mostra que focar em abordagens isoladas, específicas para cada setor, não ajuda as cidades a enfrentar o desenvolvimento desigual e não sustentável que mantém as pessoas na pobreza. Essas transformações intersetoriais podem reduzir a pobreza ao mesmo tempo em que geram benefícios econômicos, ambientais e sociais para todos.
Confira as sete transformações intersetoriais para cidades mais sustentáveis e equitativas:
1. Projeto e implementação de infraestrutura: priorizando os vulneráveis
Em muitas cidades de países em desenvolvimento, o projeto e a implementação da infraestrutura urbana ignoraram o número crescente de pessoas vivendo em assentamentos informais ou em áreas periféricas desconectadas do centro da cidade. Nessas áreas, em geral não há acesso a serviços básicos, e os moradores precisam se virar – com frequência de forma ilegal ou onerosa em termos de tempo, dinheiro, saúde e meio ambiente. O problema tende a piorar se nada for feito, e estima-se que 1,6 bilhão de pessoas não terão moradia adequada em 2050. Além disso, as mudanças climáticas colocam tanto as populações vulneráveis quanto a infraestrutura das cidades em risco. Se as temperaturas globais aumentarem em 2°C, 2,7 bilhões de pessoas, ou 29% da população global, estarão expostas a riscos climáticos moderados ou altos até 2050. Dessas pessoas, entre 91% e 98% vivem na Ásia e na África.
A infraestrutura urbana precisa ser projetada e implementada para priorizar as populações negligenciadas, recuperar os atrasos na oferta de serviços básicos, minimizar o carbono retido na atmosfera e antecipar riscos futuros. Planejamento integrado e colaboração intersetorial podem gerar benefícios em cascata, como melhora da qualidade da água para toda a cidade a partir do investimento em saneamento para as pessoas desassistidas. As cidades também têm a oportunidade de traçar um novo modelo de desenvolvimento de infraestrutura que limite as emissões de carbono e fortaleça a resiliência climática.
Medellín, na Colômbia, investiu US$ 24 milhões na reconstrução da linha K do Metrocable, um sistema de teleféricos que beneficia diretamente 150 mil moradores de bairros periféricos da cidade. Em alguns casos, esse investimento reduziu deslocamentos de 2 horas para 30 minutos. O caso mostra como investir em serviços de transporte seguros, não poluentes, acessíveis e multimodais, incluindo teleféricos, pode controlar os congestionamentos e conectar as comunidades mais pobres, periféricas e do alto dos morros às oportunidades de trabalho no centro da cidade. Além disso, investir em infraestrutura para transporte ativo e coletivo tem o potencial de reduzir a intensidade dos gases de efeito estufa no setor de transporte em até 50% até 2050, em relação aos níveis de 2010.
2. Modelos de oferta de serviços: formando parcerias alternativas
Prestadores de serviços informais, como motoristas de vans ou vendedores de água, oferecem serviços essenciais onde os serviços públicos não chegam. Esses serviços em geral custam caro, são de pior qualidade ou, em alguns casos, prejudiciais para as pessoas e o meio ambiente; a água de fornecedores alternativos pode ser imprópria ao consumo, fontes alternativas de energiapodem ser perigosas e o transporte alternativo pode contribuir com congestionamentos e poluição.
Impactos da integração dos fornecedores informais
Em vez de ignorar os fornecedores alternativos, as cidades podem integrá-los em seus planos de desenvolvimento de curto e médio prazo por meio de parcerias que garantam serviços acessíveis a mais pessoas. O estudo de caso de Kampala (Uganda) apresenta uma parceria bem-sucedida entre o governo municipal e pequenos negócios, grupos comunitários e a companhia nacional de água e saneamento para melhorar a coleta de lodo fecal de latrinas de fossa. A parceria usou tecnologias acessíveis e não tradicionais e criou novas oportunidades de subsistência para os moradores da comunidade.
3. Práticas de coleta de dados: melhorando os dados locais com a participação da comunidade
Uma cidade não pode resolver um problema que não é totalmente compreendido. Apesar de todos os dados existentes hoje, muitas cidades não dispõem de dados locais detalhados para ajudar a identificar onde e como vivem as pessoas mais vulneráveis. Mesmo quando há dados disponíveis, as cidades com frequência carecem de capacidade técnica para gerenciá-los, compartilhá-los e utilizá-los para orientar tomadas de decisão.
Novas tecnologias, parcerias e a participação da comunidade podem gerar dados locais melhores para embasar as decisões e qualificar os processos de governança. Em um estudo de sete anos publicado recentemente, pesquisadores mapearam assentamentos informais em Bangalore, na Índia, usando imagens de satélite, aprendizado de máquina e esforços de verificação em campo. O estudo registrou cerca de dois mil assentamentos informais na cidade, enquanto os registros do governo apontavam menos de 600. Informações como essa podem viabilizar uma melhor prestação de serviços públicos para esses locais.
4. Trabalho informal: reconhecendo e apoiando trabalhadores informais
Em todo o mundo, dois milhões de pessoas trabalham na economia informal, representando de 50% a 80% da mão de obra no sul global. Esses trabalhadores oferecem bens e serviços vitais para as cidades, mas ainda assim recebem pouca atenção. Pesquisas anteriores focaram principalmente no aumento da produtividade do setor formal, o que limitou a disponibilidade de dados sobre o trabalho informal. Cidades com amplos setores informais tendem a ignorá-los, tratá-los como um fardo ou a tentar se livrar de sua presença, deixando ainda mais vulneráveis tanto os trabalhadores quanto as pessoas que dependem desses serviços.
Reconhecer e apoiar os trabalhadores informais e ampliar seu acesso a espaços e serviços públicos, clientes e redes de seguridade social pode melhorar os meios de subsistência e a resiliência econômica urbana. Em cidades indianas como Surat e Ahmedabad, por exemplo, o fundo de habitação Mahila Housing SEWA Trust negociou com órgãos municipais e arrecadou recursos públicos para os trabalhadores informais. O dinheiro foi usado para melhorar as condições de moradia e o acesso a tecnologias de energia solar para manter geladeiras, ferros de soldar e máquinas de costura de negócios domiciliares. Essas mudanças aumentaram a renda, economizaram dinheiro e reduziram o gasto em energia para as pessoas beneficiadas.
5. Financiamento e subsídios: aumentando os investimentos e alocando recursos de forma inovadora
As cidades não estão conseguindo fazer os investimentos necessários para preencher as lacunas em serviços essenciais, o que pode levar a custos ainda maiores no futuro. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, garantir o acesso de todos os habitantes urbanos à água potável custaria US$ 141 bilhões ao longo de cinco anos, mas atualmente o consumo de água imprópria para beber e condições inadequadas de saneamento já custam 10 vezes mais, principalmente em termos de tempo e saúde.
Cidades, países e investidores precisam aumentar os investimentos e alocar os recursos de forma inovadora para preencher a lacuna na oferta de serviços urbanos. Processos de orçamento participativo, como os apresentados no estudo de caso de Porto Alegre, são uma forma de direcionar recursos para atender às necessidades locais. Maiores investimentos nacionais com subsídios direcionados também podem gerar recursos para as áreas onde é mais necessário, enquanto instrumentos de financiamento inovadores e métodos de pagamento criativos podem facilitar o acesso aos recursos. O PROTRAM, um programa federal no México, tem sido uma referência nesse tipo de investimento. O programa oferece subsídios de até 50% do custo de infraestrutura em projetos de transporte coletivo urbano de órgãos municipais, estaduais e regionais. Esses investimentos resultaram em transporte de massa de alta qualidade, com baixa emissão de carbono e maior acesso à cidade para pessoas de renda média e baixa que não possuem veículos particulares.
6. Gestão do território urbano: promovendo transparência e planejamento espacial integrado
As áreas urbanas devem crescer 80% entre 2018 e 2030. A maior parte das cidades está crescendo de forma dispersa e não sustentável, com um número cada vez mais alto de assentamentos informais. Essa situação também aumentará a desigualdade espacial – o acesso desigual a serviços e oportunidades com base na localização. Os governos locais muitas vezes não possuem autoridade, recursos ou capacidade técnica para planejar esse crescimento, de forma que o desenvolvimento é orientado pelos lucros dos proprietários dos terrenos em detrimento do interesse público.
Mercados imobiliários e fundiários transparentes e bem regulados e o planejamento espacial integrado são essenciais para a prestação de serviços de maneira equitativa e para a gestão sustentável do crescimento urbano. Isso implica intervenções intersetoriais para melhorar os assentamentos informais existentes em locais seguros e fornecer acesso acessível a serviços, conforme descrito no estudo de caso de Surabaya, na Indonésia.
Na favela de Mukuru, na periferia de Nairóbi, mais de 100 mil famílias vivem em uma área de 262 hectares divididos entre 230 proprietários. O governo municipal designou Mukuru como uma “área de planejamento especial” que exigia um plano de desenvolvimento abrangente, elaborado em parceria com a comunidade, antes que quaisquer novos recursos pudessem chegar ao local. Governo local e ONGs trabalharam juntos para criar um plano de desenvolvimento de oito setores que priorizou a água e o saneamento, devido ao impacto imediato que teriam na saúde pública. Esse processo colaborativo mostra como o planejamento espacial intersetorial pode atender às necessidades de comunidades carentes.
7. Governança e instituições: criando coalizões diversas e alinhamento
As cidades nem sempre têm o poder ou os recursos para fazer as mudanças necessárias por conta própria. O acesso a alguns serviços urbanos, por exemplo, depende de órgãos metropolitanos ou regionais responsáveis pelo planejamento das redes. As cidades precisam de uma visão comum e do alinhamento de políticas entre diferentes departamentos e instâncias de governo. Porém, na medida em que cresceram muito rápido, as estruturas institucionais e os processos de governança existentes se tornaram inadequados para atender suas necessidades. Como resultado, essas estruturas não correspondem mais à realidade da vida nas cidades.
Coalizões de atores diversos podem catalisar ação política, promover inclusão e gerar mudanças duradouras. Alinhar políticas locais e nacionais em torno de uma visão comum pode reduzir custos, prevenir ineficiências e ajudar as cidades a alcançar objetivos estratégicos.
Towards a More Equal City inclui estudos de caso de Guadalajara, no México; Pune, na Índia; e Kampala, em Uganda. Esses exemplos mostram como coalizões envolvendo a sociedade civil e pequenas associações de negócios locais, trabalhando em conjunto com representantes do governo, melhoraram os espaços públicos em Guadalajara, qualificaram o transporte e a gestão de resíduos sólidos em Pune e aumentaram o acesso de comunidades de baixa renda ao saneamento básico em Kampala. Estudos de caso em Ahmedabad, na Índia, e Johanesburgo, na África do Sul, mostram que alinhar políticas entre diferentes níveis de governo e órgãos locais ajuda a criar moradias populares em locais bem conectados da cidade.
Mudanças transformadoras hoje por cidades sustentáveis no futuro
Em todo o mundo, os esforços para combater a pobreza e as mudanças climáticas dependem do acesso das populações urbanas a serviços e oportunidades. A pandemia de Covid-19 apenas acentuou a desigualdade no acesso a serviços urbanos, evidenciando a distância entre as pessoas que têm dinheiro e podem escolher permanecer seguras e empregadas e aquelas que não têm. As decisões tomadas hoje podem impulsionar a pobreza, restringir oportunidades e ampliar a desigualdade dos serviços urbanos de maneiras cada vez mais difíceis de reverter. Também podem manter o alto consumo de energia e as emissões de carbono ao longo das próximas décadas, agravando os riscos das mudanças climáticas.
Não é tarde demais para fazer uma mudança de rota. Priorizar o acesso equitativo a serviços urbanos essenciais pode ser um ponto de partida eficiente, um modelo e um caminho em direção a cidades mais equitativas e sustentáveis para todos.
Via WRI Brasil.