A arquitetura é um ofício ou prática que, na maioria dos casos, envolve a construção de estruturas físicas e materiais. A arquitetura procura dar forma a edifícios destinados a servirem diferentes propósitos como trabalho, moradia, convivência, oração entre outros tantos. Estruturas construídas e intervenções arquitetônicas, no entanto, necessitam de um espaço físico para materializar-se. Dito isso, a melhor compreensão a relação intrínseca entre espaço e arquitetura, pode ser a chave para estabelecermos práticas mais sustentáveis nos campos da arquitetura, engenharia e construção civil.
O ambiente construído de nossas cidades não é algo que pode ser compreendido de forma isolada; ele é o resultado das inúmeras relações criadas entre os diversos sistemas e mecanismos que compõe e orientam as estruturas urbanas onde a grande maioria da população mundial habita atualmente. Um desses mecanismos é a lei — a qual define o teor e conteúdo dos projetos, dos contratos de construção, das ações judiciais e do direito de propriedade sobre um determinado território ou edifício. Neste sentido, a realidade mais preocupante é que, ao redor do mundo, a maioria dos edifícios urbanos encontram-se nas mãos de um grupo cada vez mais restrito de pessoas e empresas. Em uma disputa de poder sobre controle do território urbano, estas corporação buscam construir estruturas cada vez maiores e mais altas, as quais se impõe sobre o tecido urbano de nossas cidades, provocando finalmente uma completa ruptura entre a arquitetura e o espaço, entre os cidadãos e suas cidades.
O fenômeno de concentração de propriedades urbanas nas mãos de poucos é um reflexo direto da concentração de capital por um grupo cada vez mais restrito. Paralelamente, esta situação tem uma relação direta também com o fenômeno das mudanças climáticas. Embora mais da metade da população mundial viva hoje em territórios urbanos, precisamos considerar também a questão da propriedade da terra em áreas não urbanizadas e o valor das interrelações entre o espaço urbano e rural para o futuro das cidades. A propriedade da terra, é um elemento fundamental a ser considerado quando procuramos abordar a questão das mudanças climáticas de forma mais abrangente, reconhecendo a importância da manutenção das áreas não urbanizadas—e das comunidades que nelas vivem—no que se refere à salvaguarda do nosso planeta no futuro.
Florestas, terras indígenas e áreas de preservação permanente, por exemplo, operam como um poderoso elemento de equilíbrio climático no planeta, absorvendo e fixando carbono. Acredita-se hoje que, estas áreas sejam responsáveis hoje por 22% de todo o carbono armazenado na Terra. No Peru, enquanto projetos de intervenções urbanas como o Ocupa tu Calle desempenham um papel fundamental na criação de cidades mais equitativas e agradáveis de se viver, as florestas do país também são vistas como uma importante frente de ação no que se refere a mitigação das consequências da crise climática.
Recentemente aprovado pelo governo local, o projeto de lei para a proteção permanente das terras indígenas na Amazônia peruana resultou em uma imediata e significativa redução dos desmatamentos no país. Neste contexto, a cessão do dereito de propriedade das florestas aos povos indígenas nativos, provou ser uma ferramenta altamente eficaz na redução das emissões de gases de efeito estufa causadas pelo desmatamento no Peru - considerando ainda que as florestas são mecanismos fundamentais para o controle e melhor distribuição das chuvas em todos os continentes. Neste sentido, a saúde de nossas florestas desempenha um papel substancial no que se refere também ao conforto e qualidade de vida nas cidades, o que nos faz pensar que a questão da propriedade da terra em áreas não urbanizadas é uma questão de extrema importância também para todos aqueles que vivem nas cidades.
Uma das principais consequências das mudanças climáticas em curso no planeta é o considerável aumento de eventos climáticos extremos ao longo dos últimos anos. Considerando isso, a questão da propriedade da terra pode ser determinante também na forma como respondemos a esses eventos. As enchentes testemunhadas nas últimas décadas pelas cidades do Vale do Limpopo em Moçambique, foram vistas por alguns pesquisadores como um indicador precoce dos eventos meteorológicos extremos que viraram a acontecer posteriormente. No entanto, as questões de propriedade e às disputas sobre o território devastado após as desastrosas enchentes no Moçambique foram praticamente desconsideradas pelas autoridades locais. Isto porque, a Lei de Uso do Solo no país permite que até mesmo alguém que não detém a possa da terra ou propriedade possa construir sobre ela na ausência de um documento formal—uma situação que favoreceu a reconstrução rápida de toda área dos assentamentos afetados pelo desastre devido à ausência de grandes disputas sobre a propriedade da terra nestes locais.
Em lugares como Bangladesh, por outro lado, a questão da propriedade da terra pode se tornar um pesadelo para moradores de comunidades carentes após eventos climáticos extremos ou desastres naturais. As raízes das leis fundiárias no país remontam ao período colonial britânico, onde a receita sobre o uso do território era considerada a maior fonte de renda do próprio governo local, que o arrendava a preço de ouro. Territórios que não interessavam ao estado—na maioria em áreas rurais—eram vendidas pelo preço de mercado na época, o que significa que, na prática, a propriedade da terra no país se encontra ainda hoje nas mãos de uma extrema minoria.
Obviamente as leis de terras e de direito de propriedade em Bangladesh evoluíram desde a era colonial, mas ainda assim elas continuam favorecendo apenas a alguns em detrimento de muitos. As muitas inundações e ciclones que afetaram o país ao longo das últimas décadas deixam um rastro de destruição além de muitas famílias desabrigadas e sem as mínimas condições para recomeçar e reconstruir suas vidas. Essas famílias, então, frequentemente se deslocam e se estabelecem em novas áreas de propriedade do estado, correndo o risco de serem despejadas a qualquer momento e sem nenhuma perspectiva de futuro. Comunidades rurais, como as encontradas na vila de Rajapur, no sul de Bangladesh, utilizam métodos tradicionais de construção para erguerem suas casas, estabelecendo assentamentos incrivelmente resilientes e que contribuem para minimizar os riscos de desastres naturais nestes locais—algo que deveria ser considerado em se tratando a fragilidade do território e das próprias comunidades carentes no país.
Ao questionarmos de que forma poderíamos transformar e adaptar nossas cidades para minimizar as emissões de carbono e o impacto sobre as nossas paisagens naturais, é importante analisarmos com cuidado de que forma se estabelecem e se reproduzem as relações de propriedade não apenas no território urbano, mas principalmente sobre as áreas rurais que ainda nos restam.