Em diferentes partes do mundo as mulheres estão transformando as cidades e ocupando espaços no planejamento e na gestão urbana como nunca havia acontecido. Paris, Barcelona e Roma, por exemplo, além de serem cidades onde quase qualquer pessoa gostaria de viver, são, hoje, cidades gerenciadas por mulheres pela primeira vez em sua história, ambas em seu segundo mandato. Grandes mudanças e planos celebrados atualmente, como a “cidade de 15 minutos”, em Paris, a abertura da Times Square para as pessoas, em Nova Iorque, e a digitalização urbana de Barcelona como cidade inteligente, foram capitaneadas por mulheres.
Entretanto, este novo paradigma urbano parece distante da realidade brasileira. Apesar de constituirem mais de 51,8% da população e mais de 52% do eleitorado brasileiro, mulheres ainda são minoria em cargos eletivos na gestão municipal. Nas eleições de 2020, houve um registro recorde de candidaturas femininas na disputa pelas prefeituras e câmaras municipais brasileiras. Porém, além do abismo entre o número de candidatas e eleitas, o número de mulheres representa apenas um terço das candidaturas totais (33.6%).
No final de 2020, apenas nove mulheres foram eleitas prefeitas nas 96 maiores cidades do Brasil. Nas capitais, mulheres disputaram o pleito em apenas cinco das 25 estaduais, e somente uma delas está à frente de uma prefeitura em 2021: Cinthia Ribeiro, reeleita em Palmas, Tocantins. Atualmente, a cada 100 prefeituras brasileiras, apenas 12 são comandadas por mulheres. Este número é praticamente igual ao de 2016, apresentando um crescimento inexpressivo quando comparado às últimas eleições. São, atualmente, 651 prefeitas (12,1%) em contraste com 4.750 prefeitos (87,9%).
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Dados comprovam que cidades brasileiras são administradas histórica e predominantemente por homens, os quais, por consequência, tomam as principais decisões sobre recursos e aspectos essenciais para a vida nas cidades, definindo seus rumos e condições sobre as quais a população viverá. Enquanto as mulheres são maioria na população, sua presença e impacto nas cidades, seja na perspectiva econômica, social ou cultural, não se reflete na tomada de decisão e na ocupação destes espaços de poder sobre a cidade.
Além de prefeitos e vice-prefeitos, outros atores em funções e cargos não-eletivos da gestão de cidades também são importantes para que a execução e gestão de serviços públicos e da infraestrutura urbana garanta o bem-estar da população, tais como funcionários públicos, secretários, gestores de pasta e diferentes assessores. Independentemente do tamanho e da complexidade de uma cidade, o prefeito ou a prefeita não governa sozinha. Inúmeras mulheres ajudaram a mudar a realidade de suas cidades em cargos como estes, inclusive no Brasil.
Ainda que nossa lista esteja longe de ser exaustiva, apresentamos seis mulheres que fizeram a diferença na gestão urbana contemporânea, as quais, independentemente de suas visões ideológicas e partidos, seus erros e acertos, se tornaram referência em diferentes lugares do mundo. Conheça-as:
Janette Sadik-Khan
Se você pode mudar a rua, você pode mudar o mundo.
Formada em Ciência Política e mestre em Direito, Janette Sadhik-Khan foi Secretária de Transportes de Nova York de 2007 a 2013, durante a gestão do prefeito Michael Bloomberg. Com seus projetos, transformou o cenário da cidade, privilegiando o pedestre, o ciclista e o uso do transporte público, sempre tendo em seu foco a sustentabilidade urbana e as soluções rápidas e baratas. Em seu cargo, reduziu pistas para carros, criou dezenas de praças para pedestres, pistas compartilhadas, centenas de ciclovias, uma rede de BRT e colaborou para a implantação do maior programa de compartilhamento de bicicletas do país, aumentando a circulação nas ruas, o convívio em espaços públicos, abrindo espaço para as pessoas e incentivando o comércio local.
Além disso, desenvolveu e publicou o primeiro Street Design Manual e o Street Works Manual da cidade de Nova York, definindo novos padrões para a criação de ruas mais resistentes e atraentes. Ficou conhecida mundialmente como responsável pela pedonalização da Times Square, fechando-a para carros, e o redesenho da Broadway. Parte de seu legado foi contribuir para tornar a cidade uma das capitais mais amigáveis à bicicleta nos Estados Unidos. Em entrevista à WRI Brasil, afirmou:
Os nova-iorquinhos, assim como os porto-alegrenses e outros integrantes de cidades brasileiras, estão cansados de esperar por mudança. Eles esperaram muitos anos. Tantas coisas mudaram nas cidades, e ainda assim as ruas não mudaram. Então, há uma incrível oportunidade de trabalhar rapidamente para realizar mudanças que alterem os espaços com certo imediatismo. E você pode fazer isso. Não demora décadas e não são necessários milhões de dólares. É preciso tinta, mesas e cadeiras, e é preciso ter uma visão para o que você quer que a cidade seja. Por isso, ter uma estratégia para uma cidade mais caminhável, mais habitável e mais saudável é o ponto de partida. E imediatamente depois, mostrar para as pessoas o que isso significa e o que pode significar, com a criação dessas vitrines, esses convites para as pessoas usarem suas cidades de uma maneira nova e tornar mais fácil e acessível para se locomoverem. Esse é o ingrediente secreto.
Atualmente, Janette Sadik-Khan assessora prefeitos de cidades ao redor do mundo como diretora da Bloomberg Associates. Seu livro “Streetfight: Handbook for an Urban Revolution“ está disponível na Amazon.
Ada Colau
Este é o século das cidades e das mulheres.
Em 2015, a ativista pelo direito à moradia, Ada Colau, tornou-se a primeira Prefeita da história de Barcelona, uma das principais cidades inteligentes do mundo, sendo reeleita para o cargo em 2019. Colau concentrou boa parte de seus esforços à melhoria da moradia na cidade, à expansão da governança, estimulando processos participativos e maior transparência, e à redefinição da cidade inteligente para que esse modelo sirva aos cidadãos e não à tecnologia. Para isso, trabalhou com profissionais de tecnologia e desenvolvedores de novas ferramentas e instrumentos, tais como a plataforma Decidim. Por meio dela, o público pode acessar informações e participar sugerindo ideias, debatendo, respondendo a consultas públicas e fazendo proposições. O governo, por outro lado, utiliza a plataforma para criar a sua agenda com base na participação cidadã. Em entrevista, defendeu:
Quando você é ativista está situada num lugar muito concreto, defendendo no meu caso o direito das pessoas roubadas pelos bancos e ameaçadas de despejo: você exige que as administrações públicas façam o trabalho delas direito e assumam o lado das pessoas e não dos agressores. Por outro lado, quando passa a ser prefeita, você é responsável por tentar gerar consensos, por fazer com que a administração funcione o melhor possível e por representar a maioria da população em seus direitos básicos, esteja ela ou não de acordo com você.
Em seu primeiro mandato, uma das prioridades de Ada Colau foi a consolidação de Barcelona como uma cidade líder nos campos da inovação, conhecimento e pesquisa. Agora, no segundo mandato, durante a pandemia, a prefeita busca impulsionar a economia pós-Covid por meio de tecnologias verdes, indústria sustentável e transporte, realizando a transição da cidade para uma economia circular.
No ano passado, Barcelona lançou um plano de 10 anos para recuperar as ruas da cidade dos carros e reduzir a poluição com a criação de espaços verdes e praças públicas. Um plano de “superquadra” que agrupa nove quarteirões transformará toda a malha central da cidade em uma área mais verde e adequada para pedestres, com ciclovias, áreas de lazer e quase sem carros. O desenho das praças e espaços será decidido em concurso público. Os principais resultados esperados com essa mudança são o aumento de espaços públicos na cidade e a redução dos índices de poluição. Barcelona tem aproveitado as mudanças inevitáveis provocadas pela pandemia para promover mudanças que garantirão um futuro melhor.
Francesca Bria
Meu objetivo é entender como a tecnologia pode servir às pessoas.
Italiana e defensora da democracia digital, Francesca Bria havia concluído seu doutorado em Economia da Inovação no Imperial College London e trabalhava no Reino Unido quando apresentou, em Madri, um projeto para proteção de dados dos cidadãos que chamou a atenção de Ada Colau. A então prefeita de Barcelona propôs a Francesca o desafio de criar uma nova estratégia digital para uma das principais cidades inteligentes do mundo.
Como Chief Technology and Digital Innovation Officer (CTO) da cidade de Barcelona, Bria liderou grandes projetos de pesquisa e inovação relacionados à soberania digital, democracia digital, capacitação digital e plataformas criptográficas, como o Decentralised Citizens Owned Data Ecosystem (DECODE), o qual usa tecnologias descentralizadas (como blockchain) para ajudar os cidadãos a controlar melhor seus dados. Bria ficou conhecida como o “Robin Hood dos dados” por defender que dados são infraestrutura pública, pertencem aos cidadãos e não às gigantes de tecnologia:
Não queremos um Uber, um Airbnb, um Google para administrar tudo. Queremos abrir esses dados, preservando a privacidade, e compartilhá-los com as indústrias locais, startups, cooperativas e os próprios cidadãos, para que eles possam construir o valor agregado, os aplicativos, sobre esses dados. Queremos competição em cima dos dados para serviços e queremos dar uma chance a todo esse talento.
Na busca por integrar os cidadãos à governança urbana e estimular a democracia, a equipe da CTO chegava a executar 16 processos participativos ao mesmo tempo na cidade, em eixos como cultura, mobilidade, educação digital e urbanismo. Alguns dos recursos utilizados foram orçamentos participativos, fab labs públicos e parcerias público-privadas. Como resultado de seu trabalho, houve uma uma mudança fundamental na relação entre o setor público, o setor privado e os cidadãos de Barcelona.
Atualmente, Francesca é presidente do Fundo Nacional de Inovação da Itália, consultora sênior em Cidades Digitais e Direitos Digitais das Nações Unidas, consultora da Comissão Europeia e professora de diferentes universidades. Seu livro “A cidade inteligente: Tecnologias urbanas e democracia“ está disponível na Amazon.
Anne Hidalgo
Esqueça cruzar Paris de carro.
Nascida na Espanha e criada em Lyon, na França, a advogada Anne Hidalgo é a primeira mulher a comandar a prefeitura de Paris na história, sendo reeleita, em 2020, para seu segundo mandato. A essência do primeiro mandato foi o combater a poluição e promover a transformação de Paris em uma cidade mais verde e sustentável.
Apesar de enfrentar uma forte oposição e entreves legais impostos pelo lobby de carros, ao assumir a prefeitura, em 2014, entre outras medidas, Anne Hidalgo propôs a pedestrianização permanente das margens do rio Sena, um espaço privilegiado e icônico da capital francesa. Ela também proibiu, em dias úteis, a circulação de veículos movidos a gasolina fabricados antes de 97 e a diesel fabricados antes de 2001, visando a diminuição da poluição e dos congestionamentos na cidade. Paris deve eliminar os veículos movidos a diesel até 2024 e os movidos a gasolina até 2030.
Para seu segundo mandato, o eixo central da campanha de Hidalgo, denominada Paris em Comum, foi a proposta de transformar os vinte arrondissements da capital em comunidades autossuficientes em termos de acesso a amenidades, a chamada “cidade de 15 minutos”. O objetivo é possibilitar aos cidadãos o acesso a escolas, escritórios, comércio, lazer e outras amenidades com apenas uma caminhada curta ou passeio de bicicleta a partir de sua casa, promovendo o bem-estar da comunidade.
O projeto diverge do planejamento da “era do carro” que separa diferentes atividades em áreas da cidade - a exemplo de áreas exclusivamente residenciais – e, consequentemente, aumenta distâncias e dificulta o acesso a funções básicas. Hidalgo, já em seu primeiro mandato, vinha lutando por mais espaço para as pessoas nas ruas e menos para os carros, por meio de investimentos em ciclovias, pedestrianização e transporte público. Ela também decidiu remover a metade das 140.000 vagas de estacionamento da cidade para torná-la mais amigável para pedestres e ciclistas.
A “cidade de 15 minutos” depende do desenvolvimento de distritos social e economicamentemistos, onde o cidadão possa encontrar itens essenciais para a vida cotidiana, encurtando os deslocamentos, integrando casas, escolas, empresas, restaurantes e áreas verdes e reduzindo o tráfego e a poluição para aumentar a qualidade de vida da população.
Recentemente, Hildago também anunciou que a Champs-Élysées, avenida mais famosa e tradicional da capital francesa, será transformada em um 'jardim extraordinário'. A reforma de mais € 200 milhões está ligada aos Jogos Olímpicos de Verão de 2024 que acontecerão na cidade.
Clara Muzzio
Trabalho por um espaço público sustentável e de qualidade.
Durante a pandemia de coronavírus, a Ministra do Espaço Público e de Higiene Urbana da cidade de Buenos Aires, Clara Muzzio, adotou medidas temporárias, econômicas, replicáveis e de rápida instalação nos espaços públicos da capital argentina, visando favorecer o distanciamento social e promover centralidades que evitam deslocamentos. Sem os recursos de grandes cidades europeias e em um período de recessão econômica, grandes transformações no espaço urbano foram descartadas, mas a ampliação de calçadas, novas vias para pedestres, uso de espaços públicos para gastronomia ao ar livre e velocidades máximas foram algumas das medidas adotas nessa cidade em que mais 6 milhões de pessoas circulam todos os dias.
Carolina Tohá
Eu não entrei na política, a política entrou na minha vida.
A advogada Carolina Tohá, filha de uma das vítimas do regime de Pinochet, passou vários anos de sua juventude em exílio, no México (1974-1979), após o assassinato de seu pai. Ao retornar ao Chile, envolveu-se ativamente em movimentos de restauração da democracia no país. Tohá contribuiu, junto a políticos e ativistas, para a derrubada de Pinochet, possibilitando o renascimento do Chile. Na sequência, foi estudar Ciência Política em Milão. De volta a seu país, atuou em ministérios, no congresso nacional e em outras funções no governo, até se tornar a primeira mulher a ser eleita pelo voto para ser Prefeita de Santiago, em dezembro de 2012. Em entrevista, explicou:
“Em minha carreira estive em diferentes espaços - governadora, congressista, presidente do meu partido, mas queria ver como a política funcionava com pessoas reais nos territórios. Nos territórios você tem a oportunidade de ver todas as políticas interagindo juntas com maior possibilidade de fazer mudanças e com maior complexidade. A realidade é mais complicada nos territórios do que no ministério, onde você vê silos- saúde, educação. Para uma pessoa, em um dia, todas as políticas vêm juntas.”
Na área de mobilidade, um dos grandes problemas da capital chilena, promoveu diferentes intervenções para qualificar o espaço urbano, criando novas áreas verdes e melhorando a iluminação, calçadas, infraestrutura cicloviária e o transporte coletivo. A gestora também adotou uma abordagem quádrupla:
(I) o Pro-Bike para promover o ciclismo como um meio de transporte e não apenas lazer e esporte, criando infraestrutura, rede de ciclovias interligadas e o compartilhamento público de bicicletas, e;
(IV) uma estratégia educacional concentrada em escolas e crianças para transformar os paradigmas de transporte e mudar a visão de carro como símbolo de sucesso.
Os resultados alcançados foram: redução no tempo de viagem de transporte público em 50%, duplicação do número de pedestres circulando, diminuição de 45% de acidentes de trânsito, aumento de 300% no uso da bicicleta no município, redução nos níveis de ruído nas ruas e, calçadas mais amplas levaram a um aumento de 20% a 30% nas vendas.
A capital chilena foi a vencedora do Sustainable Transport Award 2017, resultado do trabalho de Tohá à frente da prefeitura.
Via Urban Studies.