Do deslocamento entre fronteiras ao deslocamento intra-urbano, a população migrante participa e transforma as paisagens e relações de sociabilidade estabelecidas no território onde habitam. A cidade, espaço de encontro e confronto de diferentes perspectivas, intensifica essa característica ao receber fluxos migratórios e acolher de formas distintas os diferentes atores deste processo. Migrantes latino-americanas – grupo múltiplo em raça, identidade de gênero, orientação sexual e classe – confrontam lógicas conservadoras ao se deslocarem por entre fronteiras nacionais e territórios urbanos. Dentro desta realidade, migrantes organizadas em coletivos reivindicam suas demandas e participação na cidade através de manifestações de suas culturas de origem.
Frente às restrições do norte global à entrada de imigrantes, constitui-se no cenário das migrações internacionais do século XXI as migrações sul-sul. Estes deslocamentos de pessoas que se dão entre os países da América Latina ou em sua direção indicam novas complexidades no âmbito da mobilidade humana contemporânea (BAENINGER, 2018). Entretanto, o fluxo migratório latino-americano para a cidade de São Paulo existe desde a década de 1950, devido aos acordos bilaterais com países sul-americanos, sendo intensificado a partir dos anos 1980 e 1990 por conta de crises econômicas, climáticas e conflitos armados.
Migrações mais recentes como a venezuelana, haitiana e colombiana unem-se às nacionalidades que possuem fluxos migratórios consolidados e redes sociais estabelecidas como a boliviana, peruana e paraguaia (MAGALHÃES; BÓGUS; BAENINGER, 2018, p. 82-83). Desta forma, estes grupos convivem na cidade desenvolvendo relações de sociabilidade e configurando territórios de pertencimento. No tecido urbano de São Paulo, é possível identificar maior presença de imigrantes na região central e nos anéis periféricos da cidade, regiões associadas a determinadas atividades econômicas como as oficinas de confecção de costura e o comércio popular, como também pelo menor custo do aluguel e a presença de centros de apoio e acolhida para a população migrante.
Os bairros que se estendem a partir da região central em direção à zona leste com os distritos da Sé, Brás, Pari e Bom Retiro caracterizam-se pela presença de diferentes nacionalidades, o mesmo ocorre na Liberdade, Mooca e Bela Vista. Tanto nos bairros ocupados pelas migrações contemporâneas quanto nas históricas - imigrações relacionadas ao período de industrialização e expansão urbana, sobretudo de fins do século XIX a primeira metade do século XX -, as populações migrantes ocuparam e redefiniram estes territórios da cidade. Todavia, estas distinções entre nacionalidades e fase migratória associadas a territorialidade não são fixas. Há em muitos bairros uma co-ocupação com migrantes e refugiados de diferentes países e realidades socio-econômicas, assim como, um deslocamento intra-urbano conforme os grupos ascendem socialmente. Estas transformações nas dinâmicas migratórias estão inseridas numa lógica de disputa e produção do espaço na qual os grupos de migrantes criam novas formas de sociabilidade e ocupação do território da cidade. Para Luís Felipe Magalhães, Lúcia Bógus e Rosana Baeninger, “a migração é produto e produtora da forma com que se organiza o espaço urbano em São Paulo” (2018, p. 77), assim como a localização urbana se configura como “elemento diferenciador” dos capitais sociais e econômicos de imigrantes.
Convém destacar, no entanto, que essa cidade que recebe atualmente imigrantes e refugiados e os abriga sob diferentes contextos de segregação socioespacial, também ela foi produzida por distintos processos históricos de imigração [...] A cidade, com isso, cria e recria seus subalternos, abrigando-os em territórios determinados, espaços sociais marcados por estigmas e discriminações. Se o italiano deu lugar, em alguns bairros, a outras nacionalidades é por que novas hierarquias étnico-sociais foram produzidas a partir das transformações econômicas e urbanas na cidade. — MAGALHÃES; BÓGUS; BAENINGER, 2018, p. 77 - 78
É neste contexto de dinâmica migratória e ocupação territorial que estão inseridas as migrantes latino-americanas que vivem em São Paulo. Acessar trajetórias femininas de migração ao longo da história é um exercício que encontra algumas dificuldades estruturais. Inúmeros foram – e continuam sendo – os processos de apagamento das vivências destas mulheres nos livros e dados oficiais.
Apesar da crescente presença feminina nos processos migratórios, por muito tempo a categoria não foi contemplada nas pesquisas acadêmicas ou relatórios internacionais. A experiência da migração era diretamente ligada à figura masculina, restando às mulheres o papel de acompanhante e, “dessa forma, nunca eram percebidas como sujeitos no processo migratório” (ASSIS, 2007, p. 748). Conforme o relatório de 2016 da Organização das Nações Unidas referente à migração internacional, as mulheres representam quase 50% do número de migrantes mundiais, enquanto na América Latina são 50,4%. Desse modo, a feminização da migração é um fenômeno que tem acontecido ao redor do mundo, em que mulheres se movem de forma autônoma, ou que protagonizam o papel de pioneiras do movimento familiar. Isto é, não mais relacionam-se a um movimento masculino prévio, mas, muitas vezes, iniciam um movimento migratório em seus núcleos familiares.
A experiência de muitas migrantes é marcada pela desvalorização e precarização da mão de obra feminina que, somadas à dificuldade na regularização da situação migratória e concessões de vistos, resultam numa maior vulnerabilidade na esfera do trabalho. A costura em oficinas de confecção é uma ocupação que costuma ser associada à mão de obra migrante, especialmente em São Paulo, onde são recorrentes as notícias sobre as condições precárias de trabalhadoras e trabalhadores do ramo. Afora a costura, muitas migrantes que chegam na cidade são direcionadas para ocupações profissionais específicas, como as funções vinculadas ao trabalho reprodutivo, trabalho doméstico e o cuidado com idosos. Essa situação está relacionada ao aumento da mercantilização das tarefas do cuidado que, ao serem realizadas por migrantes, alguns estudos o nomeiam como “transferência transnacional da mão de obra materna” (DUTRA, 2013a).
Tanto no trabalho doméstico quanto nas oficinas, existem casos onde o espaço laboral é compartilhado com a casa. A experiência do trabalho informal e exaustivo que divide também o espaço físico com a moradia gera o isolamento e invisibilidade dessas mulheres no território da cidade. Essas condições produzem a experiência de uma “privacidade coletiva” (CYMBALISTA; ROLNIK, 2007) como consequência da sociabilidade forçada em espaços de intimidade, vivenciados nas oficinas e nas casas de famílias empregadoras. Nessas situações, a delimitação da jornada de trabalho parece dificultada e, frequentemente, leva à exploração destas mulheres que se encontram em confinamento. Outra decorrência deste cenário é o isolamento vivido no espaço doméstico e privado, onde as relações com seus empregadores e empregadoras são dúbias, ultrapassam a esfera formal, mas não se configuram como íntimas. Como evidenciado pela pesquisadora Délia Dutra, a interação com a cidade é amplamente reduzida e a vivência no país de residência se resume ao trabalho:
No entanto, já no caso de muitas dessas migrantes, ao ficarem morando e trabalhando no mesmo local, ‘perdem’ a instância que o resto dos trabalhadores têm de voltar para casa, para outro bairro, espaços onde podem assumir outros papéis diferentes daquele de ser trabalhadora doméstica, por exemplo, ser mães, esposas, namoradas, vizinhas, participantes da igreja, líder comunitária, estudantes, empreendedoras, etc. — DUTRA, 2013b, p. 255
Contudo, para além das experiências de privação de direitos até aqui mencionadas, coexiste uma outra realidade na qual coletivos de mulheres imigrantes reivindicam por seus direitos ao construírem redes de apoio e ocuparem a cidade com manifestações políticas e artísticas. Estas redes são constituídas através de laços familiares ou de amizades, mas também podem se apresentar em forma de auxílio e cuidado através de organizações que atuam na assistência às populações migrantes. Algumas, especialmente direcionadas para o apoio às mulheres. Uma vez inseridas nestas organizações, muitas imigrantes participam como coordenadoras ou lideranças em seus bairros. Destacam-se como sujeitos políticos e atuantes em seus contextos a partir de uma noção de agenciamento, isto é, experiência migratória marcada pela possibilidade da negociação e manipulação de estruturas de opressão. Dessa forma, as migrantes se fazem presentes na cidade – espaço de disputas que coloca as diferenças em relação – realizando expressões culturais como principal instrumento de resistência e manifestação de ideias e valores.
O coletivo de danças colombianas Prende La Vela foi criado em março de 2018, com o intuito de ser um espaço de troca e encontro através dos ritmos e movimentos tradicionais da Colômbia. Nos ensaios e apresentações anteriores ao contexto de isolamento social iniciado em 2020, estes encontros se davam em espaços públicos da cidade reunindo migrantes e não migrantes.
O coletivo surgiu dessa ideia de colocar um som e dançar com as pessoas. Não tinha um grande projeto, era estar na rua e fazer uma troca, aprender dançando. Para mim, a dança é algo muito forte e é uma das coisas que mais me faz sentir colombiana. Existe uma bandeira do meu país da qual eu já tenho muitas diferenças porque ela implica coisas muito complicadas. Mas a música, a dança e o fato do meu quadril se mexer quando eu escuto o tambor de uma forma específica me faz sentir que eu sou de lá. Porque é lá que os corpos se mexem dessa forma. — A. Villalobos, 2020
Prende La Vela veio de um lugar de resistência, de querer falar sobre você. Dança é uma coisa que colombianos adoram. No coletivo gostamos de espalhar algo muito da gente através da dança. — N. Cohen, 2020
A ação desses coletivos são estratégias de enunciação e visibilização de suas demandas e produções, evidenciando a atuação das migrantes como agentes ativos e sujeitos históricos. Por meio das manifestações culturais, como a dança, música e gastronomia realizadas em espaços públicos, as iniciativas compartilham com não-migrantes elementos que lhes são caros da sua cultura de origem. Assim, esses encontros tornam-se espaços de identidade e troca, onde se desenvolvem formas de resistência e redefinição dos estigmas a respeito da população migrante. São momentos de reivindicação de seus espaços de expressão e do direito de participarem da construção da vida cotidiana do território que habitam, assim como da construção do sentimento de pertencimento.
Referências bibliográficas
ASSIS, Gláucia de Oliveira. Mulheres migrantes no passado e no presente: gênero, redes sociais e migração internacional. Revista Estudos Feministas. Florianópolis, 15(3):336, p. 745-772, setembro-dezembro, 2007.
BAENINGER, Rosana. Migrações Sul-Sul. In BAENINGER, Rosana; BÓGUS, Lúcia Machado; MOREIRA, Júlia Bertino et alii (orgs.). Migrações Sul-Sul. 2a edição. Campinas, SP: Núcleo de Estudos de População “Elza Berquó” – Nepo/Unicamp, 2018.
CYMBALISTA, Renato; ROLNIK, Iara. A comunidade boliviana em São Paulo: definindo padrões de territorialidade. Cadernos Metrópole 17, 2007, p. 119-133.
DUTRA. Délia. Mulheres, migrantes, trabalhadoras: a segregação no mercado de trabalho. Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, Brasília, v. 21, n.40, p. 177-193, jan/jun. 2013a.
MAGALHÃES, Luís Felipe Aires; BÓGUS, Lúcia; BAENINGER, Rosana. Migrantes Haitianos e Bolivianos na cidade de São Paulo: transformações econômicas e territorialidades migrantes. REMHU, Revista Interdiscip. Mobil. Hum., Brasília, v. 26, n. 52, abr. 2018, p. 75-94.
_____. Migração Internacional e Trabalho Doméstico: Mulheres peruanas em Brasília. São Paulo/Brasília: OJM/CSEM, 2013b.
Ensaio escrito a partir do Trabalho de Conclusão de Curso intitulado “Corpos que dançam fronteiras e habitam territórios: a casa na experiência migratória de mulheres latino-americanas” defendido em 2020 na Associação Escola da Cidade sob orientação da Professora Dra. Sabrina Fontenele. As narrativas femininas apresentadas pertencem a Andrea Villalobos e Nilen Cohen, migrantes colombianas que integram o Coletivo de danças colombianas Prende la Vela e interlocutoras na pesquisa que resultou o Trabalho de Conclusão.