Ao descrever o processo de estruturação espacial da cidade de São Paulo, o professor Flávio Villaça constata que o seu crescimento no período entre a construção da ferrovia São Paulo Railways, em 1867, e o início do século XX foi voltado predominantemente para a burguesia pois, na época, as camadas populares ainda não constituíam um mercado significativo para terrenos urbanos.
A urbanização seria boa se fosse feita no total e pensando na comunidade. Tinham que pegar prioridades e resolver o problema. Urbanizar não é só moradia: é saúde, educação e cultura também. — Francisco de Assis, professor de caratê em Paraisópolis.
O fortalecimento da industrialização de São Paulo, já nas primeiras décadas do século XX, foi responsável pelo acentuado e contínuo crescimento da cidade. A área central se consolida, a burguesia se apropria do setor à oeste do centro e as classes populares adensariam a área mais à leste da área central, consolidando bairros como Brás, Mooca, Bom Retiro e Barra Funda.
Configura-se assim, uma cidade dividida, separada basicamente por duas classes: a alta e média renda desenvolvendo o setor sudeste da cidade e a baixa renda a região leste.
O crescimento populacional e o processo de urbanização do Brasil — em especial, da cidade de São Paulo — não foi, até a década de setenta do século XX, acompanhada de políticas públicas de moradia para as classes populares e pelos despossuídos. Essas políticas só viriam a ocorrer a partir da criação do Banco Nacional da Habitação (BNH) em 1964.
Por décadas, projetos são elaborados para as cidades, espaços são edificados e alterados, grande parte visando os interesses de uma classe populacional específica. O resultado disso é notório quando se anda pelas ruas de São Paulo, onde o contraste da paisagem urbana é gritante: a cidade formal e a informal, separadas por muros, próximas uma da outra, mas distantes do acesso à educação, infraestrutura básica, moradia digna e saneamento.
Medellín
Neste contexto, entende-se a necessidade de estudar e compreender as ferramentas do Urbanismo Social, estratégia de intervenção urbana criada em Medellín, uma das maiores e mais importantes cidades da Colômbia, para o desenvolvimento territorial, políticas públicas integradas e participação social.
O urbanismo social deve ser uma ferramenta para a inclusão social e como estratégia territorial, estética e simbólica de uma transformação física, que confira à cidade cenários dignos que dinamizam a transformação social. O prefeito deve assumir a liderança no processo e implementar medidas preventivas em detrimentos das repressivas. Toda política de combate à violência urbana para ter sucesso tem que ir do preventivo ao punitivo. Uma liderança local forte que implemente ações integradas é o principal requisito desse projeto. — Mauricio José Fraga Costa (2019).
A experiência de Medellín — considerada em 1988 pela revista Times como a “cidade mais perigosa do mundo”, e a partir de 2000 a “cidade mais inovadora” — foi construída por meio da interação e parcerias entre poder público, instituições acadêmicas, iniciativas privadas, organizações sociais e comunidades, desenvolvendo de forma coletiva ações e intervenções regionais, apresentando sua cultura, contexto histórico e o seu modo de viver.
Como reforçado pelo colombiano, professor e ex-secretário de cultura cidadã e de desenvolvimento social, Jorge Melguizo, este planejamento de ações deve conter a participação de todos durante cada processo, para oferecer uma educação digna, para garantir uma saúde integral e sustentabilidade social aos equipamentos e programas.
Cada projeto necessita também ser construído e entregue principalmente para os bairros mais pobres, oferecendo a arquitetura de melhor qualidade, para que contribua no pertencimento e valorização do cidadão, em cada transformação.
Paulo Freire inspira a possibilidade de uma articulação onde a prática pedagógica interativa e dinâmica se entrelaça com uma forma de agir do arquiteto na sociedade, buscando diálogo e a construção de um projeto participativo dos espaços vendo o homem como um ser de relação não apenas no mundo, mas com o mundo.
Aplicar projetos de forma participativa diminui as desigualdades que acontecem no momento da (re)inserção da população e dificulta a exclusão social. Não basta apresentar um planejamento técnico pronto à comunidade, é necessária a construção conjunta acontecendo tanto em dinâmicas com os moradores, quanto pela possibilidade de expressão por meio da arte, com vistas a permitir manifestações sobre o entendimento de futuras intervenções.
Em Medellin, o segundo requisito foi a política Medellin a Mais Educada, que entendeu que a educação envolve muito mais que os sistemas escolares e buscou difundir uma aprendizagem coletiva na cultura cidadã. A grande lição aprendida, que permitiu a Medellín o desenvolvimento do seu modelo atual, foi que a segurança não é apenas produto de medidas estatais contra o crime, mas também da estruturação e da implementação de políticas integrais que permitam oferecer igualdade de oportunidades aos seus habitantes com vistas a desmantelar a violência estrutural e construir conjuntamente com a sociedade civil a convivência no espaço urbano. — Mauricio José Fraga Costa (2019).
Para além do fortalecimento local dos territórios vulneráveis, elaborado com projetos de cultura e educação, houve também um investimento grande de recursos públicos e privados em projetos de regeneração urbana por meio do PUI (Programa Urbano Integral) focado nas dimensões do espaço público, habitação, transporte acessível e integrado, com um planejamento contínuo de ações e projetos, independentemente da troca de gestão, diferentemente do que acontece no Brasil, país marcado pela descontinuidade e obras interrompidas. Ainda assim, apresentam exemplos que se sobressaem e resgatam a cidadania, listados a seguir.
COMPAZ
O projeto COMPAZ (Comunidade Morada da Paz), localizado nas periferias da cidade de Recife, inspirado no urbanismo social de Medellín, idealizado por Murilo Cavalcanti, secretário de segurança cidadã da prefeitura de Recife, é um dos exemplos no Brasil de impacto social e transformação territorial que um equipamento urbano, a partir da gestão e investimento público, pode realizar na vida dos mais vulneráveis.
O espaço busca acolher aqueles que mais precisam com oportunidades nas áreas de tecnologia, cultura, esporte e qualificação profissional, além de estabelecer políticas públicas na prevenção social ao crime, fortalecer o senso comunitário e o sentimento de pertencimento.
Parque Cantinho do Céu
O Parque Cantinho do Céu, realizado pelo escritório Boldarini Arquitetura, formulado a partir de diretrizes da Secretaria Municipal de Habitação, destaca-se como um dos mais significativos projetos de espaço público da cidade de São Paulo por aliar qualidade de projeto ao compromisso social.
A sua implantação possibilitou não apenas a ampliação da qualidade de vida a uma área periférica, destituída de qualquer opção de lazer e entretenimento mas também o resgate da autoestima de seus moradores.
Está localizado no extremo sul da cidade, no distrito de Grajaú, nas margens da represa Billings. A intervenção abrange o Complexo Cantinho do Céu, que compreende o Residencial dos Lagos, Cantinho do Céu e Jardim Gaivotas. A comunidade, de cerca de 10 mil famílias, ocupa uma área de aproximadamente 1,5 milhões m², com moradias precárias e carência de infraestrutura básica.
Vale ressaltar no Urbanismo Social a importância das iniciativas comunitárias, startups e organizações sociais para o desenvolvimento e avanços das comunidades que têm sido cada dia mais frequentes nas grandes cidades, demonstrando a habilidade das lideranças e cidadãos em apresentar pequenas soluções de curto e médio prazo, em face às demoras existentes do poder público.
Parque Fazendinha
O “Parque Fazendinha”, apelidado carinhosamente pelos moradores do Jardim Colombo, em São Paulo, faz jus à aplicabilidade das ferramentas do Urbanismo Social, em iniciativas de pequena escala. Desenvolvida de forma coletiva pelo Instituto Fazendinhando, União de Moradores, Arq. Futuro, Mauro Quintanilha e a comunidade do Jardim Colombo, recuperou um espaço físico degradado, antigo lixão, causando um grande impacto na comunidade.
Foi pensado não apenas na maneira como esses moradores passariam a utilizá-lo, mas também como poderiam ser mantidas e resgatadas as suas relações sociais, construídas ao longo dos anos e por eles consideradas o maior patrimônio que possuem.
Em síntese, o urbanismo social visa capacitar, acolher e empoderar cidadãos que buscam transformar territórios vulneráveis, conectar a cidade informal e formal, criar pontes e articulações com a gestão pública e privada, ampliar a escuta ativa nos processos participativos, incentivar o morador a construir, participar, colaborar e principalmente a serem protagonistas dessas ações. Mesmo que árdua, a construção conjunta de um sonho será o ápice para a concretização e conquistas.
Via Caos Planejado.