Líderes do poder público, privado e representantes da sociedade civil de todo o mundo se reuniram na COP26, realizada em Glasgow entre os dias 31 de outubro e 12 de novembro, para debater e deliberar sobre uma das questões mais importantes do século 21, o processo de mudanças climáticas. O encontro girou em torno de quatro diretrizes principais, sendo elas:
1) Assegurar que os países se comprometam a zerar suas emissões de gases do efeito estufa até o meio do século de modo a limitar o aquecimento global a uma temperatura de 1,5ºC maior do que a média do período pré-industrial;
2) Adaptação para proteger as comunidades e habitats naturais vulneráveis para as mudanças climáticas;
3) Mobilizar o sistema financeiro para viabilizar o cumprimento das metas anteriores; e
4) Reafirmar e aprimorar o compromisso de colaboração entre as partes interessadas de forma a cumprir as metas estipuladas pelo acordo de Paris.
O evento acontece enquanto o mundo enfrenta uma grave crise energética, inflamada pela quebra de cadeias de produção e inflação causada pela recessão econômica resultante do coronavírus, o que tem alarmado os ambientalistas que temem um retrocesso na agenda de descarbonização da economia.
O ceticismo dos especialistas é em parte motivado pelo longo histórico de metas não cumpridas e pela ausência de alguns dos principais líderes mundiais, como os presidentes da China e Rússia.
Infelizmente esses não são os únicos motivos de crítica ao encontro. Urbanistas ficaram estupefatos com a completa ausência de debates sobre transporte público e bicicletas durante o evento, uma vez que a transição para veículos elétricos foi uma das principais estratégias escolhidas para o cumprimento das metas estabelecidas.
De acordo com a ONU Habitat, as cidades são responsáveis por mais de 70% das emissões de gases do efeito estufa, o que nos leva à seguinte questão: em um ano onde as maiores cidades brasileiras discutem seus planos diretores, quais seriam as melhores práticas de urbanismo para mitigar as mudanças climáticas?
É consenso entre os urbanistas que incentivar o uso de modos de transporte ativos, como a caminhada e a bicicleta, aliado ao adensamento populacional ao longo dos eixos de transporte coletivo, apresentam um grande potencial no processo de descarbonização da economia.
O Brasil já apresenta instrumentos legais que preveem essa prioridade, como é o caso da Lei 12587/12, a Política Nacional de Mobilidade Urbana. A redação desta Lei prevê “a prioridade dos modos de transportes não motorizados sobre os motorizados e dos serviços de transporte público coletivo sobre o transporte individual motorizado”.
Em contraposição aos veículos elétricos, que apesar de não emitirem poluentes durante o seu deslocamento, o mesmo não se pode dizer do seu processo de produção e distribuição, além dos problemas de uso do espaço urbano, que permanecem independentemente da matriz energética.
Não obstante, as mesmas tecnologias de propulsão elétrica que equipam os novos modelos de automóvel individual, também podem equipar bicicletas e veículos de transporte público, que não produzem as externalidades negativas do carro particular.
Esse cenário é o melhor possível, pois, de um lado, torna viável o uso da bicicleta para uma maior quantidade de pessoas e, por outro lado, reduz ainda mais as emissões de GEE dos sistemas de transporte público. Existem diversas alternativas para este segmento, como os tradicionais trólebus, que operam há décadas na cidade de São Paulo, ou também os veículos elétricos a bateria, que recentemente estão sendo testados pelo município de Niterói, no Rio de Janeiro.
A aposta na eletrificação da frota de carros privados como uma solução única se torna ainda mais problemática quando se adota uma visão de sustentabilidade um pouco mais abrangente. Lembrando também que se deve considerar não apenas a emissão de gases de efeito estufa pelos próprios veículos, mas também o impacto de todo o ciclo de vida destes produtos.
Atualmente o mundo conta com uma frota de cerca de 11 milhões de veículos elétricos, que devem chegar a 145 milhões no final da década. Se elas forem descartadas indevidamente, podem liberar uma miríade de elementos tóxicos,inclusive metais pesados.
O primeiro desafio é uma questão de design, as baterias atuais não seguem um importante conceito da economia circular de “design para desmontagem” (design for dissamble). No caso das baterias do Nissan Leaf, carro elétrico mais popular dos EUA, leva até 2 horas apenas para serem desmontadas. Além disso, a diversidade na química utilizada nas diferentes marcas de baterias dificultam a padronização e implementação de uma cadeia de reciclagem eficiente.
Ademais, é importante dizer que os problemas de emissões no setor de transportes urbanos vão além dos modos de transportes em si. Com o predomínio das influências modernistas sobre o urbanismo durante o século XX, diversas cidades ao redor do mundo foram formadas de acordo com essa escola de pensamento, caracterizada por suas setorizações da malha urbana, que levam a uma maior distância para deslocamentos de rotina, como compras, ida ao trabalho ou lazer.
Esse aumento da distância, junto à menor caminhabilidade de bairros setorizados, sem fachadas ativas ou aspectos convidativos ao pedestre, leva a uma dependência exclusiva do carro particular, bem como derruba a viabilidade econômica do transporte público.
Em cidades americanas como Los Angeles, grandes congestionamentos em vias de até mesmo 10 faixas por sentido são muito comuns, junto de uma rede insignificante de transporte público, pouco atrativa para o usuário.
O resultado das ideias modernistas aplicadas na cidade se traduz em um uso intenso do automóvel como modo principal de transporte e protagonista em investimentos e políticas públicas de transportes. Apesar do protagonismo nos investimentos por décadas, o carro particular, além de ter se mostrado incapaz de atender às necessidades de mobilidade urbana, também emite até 10 vezes mais GEE por passageiro/quilômetro rodado, conforme mostrou um estudo do IPEA.
Diante de todos esses fatos, é inegável e digno de elogios os avanços tecnológicos em matrizes energéticas mais limpas, no entanto, não é possível dizer que apenas a mudança na matriz energética será suficiente para alcançar as metas de descarbonização do transporte urbano.
O problema está, essencialmente, na morfologia urbana, que leva ao uso de uma das formas menos eficientes de transporte, o automóvel. Além de eletrificar carros, a revisão do zoneamento urbano, com diversificação dos usos do solo em residências e comércio, aliada de um maior investimento em alternativas mais eficientes de transporte, como a bicicleta e o transporte público, são metas mais coerentes para a descarbonização dos sistemas de transporte urbano.
Via Caos Planejado.