Os elementos da natureza, as pessoas e sua cultura, enquanto afirmação da arquitetura e organização de sociedade juntamente com a relação incisiva com o rio, criam a arquitetura com caráter amazônico. Esta pesquisa abrange o estudo dos conhecimentos sociais e simbólicos adquiridos ao longo dos anos pelas comunidades ribeirinhas da Ilha de Marajó, e suas consequências nas materialidades das construções locais, que passaram por mudanças ao longo das últimas décadas.
A pressão social para cumprir a modernização cresce com a vontade de ascensão social e status. Tal cultura ascensionista tem feito parte da população das cidades do Marajó, em que fundações de alvenaria e concreto são cada vez mais presentes, mesmo se do assoalho para cima a escolha da madeira continue a mesma. Essa arquitetura híbrida entre o que poderia ser considerado tradicional e o moderno traz questões sobre o movimento de globalização e sua grande cultura universal homogeneizadora.
Esse estudo só se torna possível através de conversas com moradores e frequentadores dessa região mediante entrevistas realizadas tanto no período da expedição quanto durante o desenvolvimento deste ensaio. Quatro principais entrevistas (Tunico, Ju Castro, Betânia Barbosa e Giovani Rezende) guiaram o encadeamento para leitura e compreensão deste modo de vida que resulta na busca das soluções concretas para suprir contingências presentes em suas realidades, classificadas de tradicionais.
O movimento de globalização traz a grande cultura universal homogeneizadora que se opõe a essas culturas mais tradicionais, locais e vernaculares, ressaltando a importância de ser estudadas e compreendidas nos dias atuais. Os pequenos grupos sociais remanescentes nesse tipo de território são vistos como “bons selvagens”, povo de origem caiçara, indígena e ribeirinha que são desqualificados pelos continentais a fim de conquistar sua terra. Discutir globalização é evidenciar essa oposição. Tamanha questão se torna ainda mais essencial para pequenos grupos sociais, moradores de espaços limitados e considerados isolados, os ilhéus.
O homem contemporâneo olha para o ribeirinho, morador desse pedaço de terra, com o estereótipo construído pelos continentais ao longo dos processos históricos devido à diferença de seu modo de vida, principalmente na temporalidade das produções. O ritmo proposto pelas marés é encarado com preconceito pelo diferente, identificando o ilhéu como indolente e preguiçoso. Reconhecer o selvagem neste grupo, categorizando-o como não-cidadão e sem-direitos facilita que o especulador imobiliário o expulse de seu território, em nome da “civilização”, qualificando a permanência na ilha pelos de fora. O papel de bom selvagem é, então, imposto pelos continentais, inserindo o morador da ilha no mundo natural em que “(...) aceita passivamente a expropriação de seu pedaço do paraíso, continua a fazer parte da paisagem natural enquanto toma conta da terra do novo dono.” (DIEGUES, 1998: 121)
Esta pesquisa, então, tem foco na Ilha de Marajó, especialmente em três cidades (Afuá, Chaves e Arapixi), como um esforço de agrupar técnicas e possibilidades já utilizadas pela população local, criando um material importante para a preservação tanto dos saberes vernaculares quanto da própria maneira de se organizar uma cultura nativa de um ambiente tão invulgar como a Amazônia, levando reconhecimento e reafirmando para esses povos a importância de continuarem vivendo em sua própria cultura e, consequentemente, fazendo sua própria arquitetura insular.
Os materiais das construções marajoaras foram categorizados e especificados em seis elementos relevantes da arquitetura: estrutura, telhado, fechamentos, janela/porta, varanda e o interior dos ambientes, como forro, piso e parede. Após analisar cada elemento individualmente, foi necessário compreendê-los agregados a uma construção, agindo juntos. Por esta razão, foram relacionadas três tipologias presentes ao longo da Ilha de Marajó́, como uma aplicação deste estudo. Obras com contato direto com o rio, sobre ele (I); palafitas anfíbias, na transição dos ciclos
hidrológicos, ora secos, ora alagados (II); e edificações em áreas mais secas, quase no chão (III). Três fichas foram redigidas e exploradas.
A relação incisiva com o rio cria a arquitetura com caráter amazônico, que pode ser notada nas três possíveis categorias aqui exemplificadas. Classificadas como arquitetura tradicional ou não, as diferentes tipologias expressam a interlocução dos construtores locais com a dinâmica presente no arquipélago do estuário dos rios Pará e Amazonas, e tem particularidades e semelhanças. As três cidades citadas anteriormente são distintas entre si, relacionando-se com alguma das categorias anteriormente exemplificadas, porém nem sempre uma somente, podendo haver estilos diferentes de casa em uma mesma localidade.
Afuá́ e Arapixi têm o contato mais próximo com o rio e, por essa razão, suas casas são elevadas por pilares (localmente conhecidos como esteios) para que o balanço das marés não inunde as construções. O vaivém das águas tem diferente impacto nas duas vilas. O Igarapé́ Arapixi possui bordas conquistadas por palafitas sob a água e, consequentemente, com esteios compridos.
O interior da vila é majoritariamente habitado por palafitas com esteios menores, já́ que tem o solo seco em certas épocas no ano, diferentemente de Afuá. Chaves, por ter raros períodos de inundação, dispõe suas habitações mais perto do chão ou até construídas sobre ele, em áreas mais elevadas.
Apesar das classificações, é relevante destacar que há poucas localidades na ilha de Marajó em que as poderosas marés de inverno não invadem suas terras, coagindo os moradores a se colocar sempre no alto de esteios, prevenindo, assim, o alagamento de suas habitações. Chaves e Arapixi têm seu interior mais consolidado, chegando a ter lâminas de água ou até mesmo só o solo lamelado, na maré alta, alagando somente as casas mais próximas ao rio. Por consequência, as palafitas presentes não são muito elevadas. Já́ Afuá́, por estar na cidade e ter o solo mais argiloso, obtém mais controle sob o nível da água, onde sua erosão é baixa. O solo, que se compacta com facilidade, permite esteios padrões daquela região, normalmente por volta de 70 centímetros.
O caráter cíclico e coletivo está presente nas três tipologias em todas as cidades, defendendo técnicas convocadas nessa interlocução com o ciclo hidrológico. Saberes regionais, então, são expressos na forma de organização social das cidades amazônicas. É importante ressaltar, porém, a necessidade de soluções criativas quando se trata das materialidades das construções, tanto para baratear o custo de sua fabricação, quanto devido à recente mudança de materiais naturais por mais industrializados pela influência do grande movimento homogeneizante que é a globalização.
A efemeridade das vilas no interior amazônico, com sua dificuldade de acesso, exemplifica a abundância da madeira, porém, atualmente, esse cenário tem passado por transformações. A pressão social para cumprir a modernização – grande parte das casas, inclusive na área urbana, ainda tem como principal material a madeira – cresce com a vontade de ascensão social e status. Tal cultura ascensionista – em que os materiais mais industrializados são classificados de modernos – têm feito parte da população de Afuá́, por exemplo, em que fundações de alvenaria e concreto são cada vez mais presentes, mesmo se do assoalho para cima a escolha da madeira continue a mesma. Essa arquitetura híbrida entre o que poderia ser considerado tradicional e o moderno traz questões sobre essa discussão.
Nós somos tradicionais então? Também não. A ideia de uma tradição estável é uma ilusão da qual os antropólogos há muito nos livraram. Todas as tradições imutáveis mudaram anteontem. — LATOUR, 1994
A ideia de algo tão durável como o concreto para matéria-prima nessas regiões, remete ao conceito de permanência, afastando a maleabilidade imposta na vivência do amazônico. Tal pensamento, porém, habita o imaginário do ribeirinho formando laços com suas construções a fim de retardar sua deterioração e, assim, esperar longos períodos de tempo antes de sua próxima manutenção.
Giovani Rezende, belenense de família marajoara, trabalhou em uma construção de passarelas interlocutoras em uma vila no interior da ilha e notou a concepção de durabilidade idealizada por um dos operários que estavam trabalhando no local, com a seguinte afirmação:
Se um dia eu fosse prefeito eu ia fazer logo (...) toda essa fundação de alvenaria para durar anos e anos, para a gente não se preocupar e precisar ficar trocando tábua, porque a tábua tem que trocar daqui 5 anos, (...) então faz de alvenaria que vai durar mais. – Giovani Rezende.
Atualmente, o número de construções de concreto e alvenaria existentes com acabamentos inadequados para as elevadas temperaturas continua a crescer principalmente caracterizando prédios públicos, como postos de saúde e escolas construídas com recursos federais e estaduais. Frequentemente inadequadas à localidade inserida, já que pouco se respeitam os saberes locais como técnicas construtivas e ventilação.
A difícil manutenção junto com a umidade, pode danificar a estrutura, convidando insetos e até outros animais a habitarem o projeto, que muitas vezes acaba em forma de ruínas, não atendendo às expectativas continentais. Tunico, paulistano morador da Ilha do Marajó há 4 anos, mostrou-se certo de que o destino dessas construções é algo inevitável: “um dia elas vão a baixo, a não ser que você ache uma solução”.
A recente alteração de materiais destaca uma arquitetura resultante de reflexos das grandes cidades, remetendo a pouca autenticidade. Há de se entender também outros fatores que contribuem para a transação material das construções. Telhas de barro conseguem suprir melhor a demanda do conforto térmico na região equatorial –quente e úmida– e ainda assim sofre resistência pelos moradores locais devido ao seu deslocamento dificultoso tanto pelo grande peso, quanto pela quebra do material em seu percurso. O uso das telhas de fibrocimento se consolida, então, por sua praticidade, mesmo retendo mais calor.
Por outro lado, os materiais de construção adequados para atingir o consumo da modernização nem sempre valem a pena economicamente. O porcelanato, por sua fácil manutenção, tem aumentado sua demanda nas cidades marajoaras em contraste com as ripas de madeira, posto que demoram menos para ser trocadas do que o chão frio.
Podemos também destacar uma casa com azulejos com estampa imitando a textura do tradicional piso de madeira, fazendo um contraponto na questão da estética moderna. Mesmo com a alta demanda, há comércios que estão cessando suas vendas de lajotas visto que a alta maresia no verão causa muita perda de produtos, trazendo até prejuízo para os comerciantes. Quem desejar obter esses itens deve, então, atravessar o rio até o continente em busca para adquiri-los, responsabilizando-se desde seu traslado até sua instalação.
A materialidade de outras partes internas da casa também tem sofrido transformações ao longo dos anos. O que antes era coberto apenas por madeira agora utiliza materiais diferentes para cada elemento. As paredes internas não fazem parte da estrutura da construção –deixando a planta livre– e em sua maioria continuam a ser de madeira, podendo ocasionalmente ser de alvenaria. Algumas construções têm mudado suas divisórias de cômodos para gesso, buscando melhor acústica, já que a madeira o deixa transpassar. O forro não é tão presente nas habitações aumentando o pé-direito e o mais comum deles é o de PVC, apesar novamente, do difícil acesso, de não ser facilmente reciclado na região e não contribuir para baixar a temperatura do ambiente.
Urbanizações desconexas, sem repensar os recursos naturais presentes com o movimento cíclico das marés e, sobretudo, sem ressaltar as vontades e os anseios das comunidades residentes, transparecem no movimento globalizante, no qual a homogeneização das construções vale em nome do desenvolvimento. Um caso típico para demonstrar essa vontade de “modernidade” presente em novos projetos foi
a instituição da zona franca em Manaus. Esse projeto, que pretendia implantar um polo industrial eletroeletrônico em uma região com características amazônicas, sem mão de obra especializada e sem matéria-prima, levou, por consequência, ao despovoamento do interior, pois a população massivamente mudou-se para Manaus. Ainda assim, a grande parte dos operários preferiu construir suas habitações mantendo o contato direto com o rio, em cima de palafitas.
Os modernos (...) acreditaram que eram revolucionários, porque inventaram a universalidade das ciências, arrancadas para sempre dos particularismos locais, e também porque inventaram organizações gigantescas e racionais que rompiam com todas as lealdades locais do passado. E ao fazerem isto, estragaram duplamente a originalidade daquilo que estavam inventando: uma nova tipologia que permitia atingir quase todos os lugares sem que, para tal, fosse necessário ocupar mais do que estreitas linhas de força. Glorificaram-se por virtudes que não podem possuir - a racionalização -, mas também flagelaram-se por pecados que são incapazes de cometer - esta mesma racionalização. (...) Acreditaram que realmente havia pessoas, pensamentos, situações locais e organizações, leis, regras globais. Acreditaram que havia contextos e outras situações que gozavam da misteriosa propriedade de serem “descontextualizados” ou “deslocalizados. — LATOUR, 1994
É necessário compreender todos os fatores que envolvem uma arquitetura para analisá-la. Não teria sido possível enxergar o processo construtivo da arquitetura ribeirinha sem estudar sua sociedade, assim como os materiais disponíveis, sistemas de mediação e representação e a memorização e transmissão de experiências. Do macro para o micro, essa ocupação pode ser entendida não somente como territorial, mas também uma ocupação social e humana.
Referências Bibliográficas
AB’SABER, A. N. A Amazônia: do discurso à práxis. São Paulo: EDUSP, 1996.
BAUMANN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001
DIEGUES, A. C. Ilhas e Mares: simbolismo e imaginário; São Paulo; Hucitec; 1998.
LATOUR, B. Jamais fomos modernos, Ensaio de antropologia simétrica. 34 Literatura S/C Ltda. Tradução: Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1994.
LEONEL, M. A Morte Social dos Rios. Coleção: Estudos. Editora Perspectiva, São Paulo, 1998.