Bancos com divisórias e formatos desconfortáveis, pedras pontiagudas embaixo de viadutos, grades no entorno de praças e jardins, muros com pinos metálicos, construções sem marquises ou com gotejamento de água programado, cercas elétricas e arame farpado. Os elementos e materiais utilizados para afastar pessoas dos espaços públicos são muitos e acabam influenciando a maneira como os indivíduos vivenciam os municípios e convivem entre si. A arquitetura hostil, termo que abrange todas as barreiras e desenhos urbanos que parecem dizer “não se sinta em casa” — como define a repórter Winnie Hu, do The New York Times —, é parte da realidade da maioria das cidades pelo mundo e vem despertando debates sobre o impacto dessas ações, principalmente através das redes sociais.
A professora de antropologia do Centro de Graduação da Universidade da Cidade de Nova York, Setha Low, afirmou em entrevista para a Reuters que o risco que se corre com esse tipo de medida é mudar a natureza dos ambientes públicos de “inclusivos para exclusivos”.
Já o fotógrafo alemão Julius-Christian Schreiner ressaltou à reportagem que o aumento de locais públicos administrados pela iniciativa privada acentuou o problema, deixando pouca área para as pessoas se “recostarem, vagarem ou socializarem sem a pressão de comprar algo”. Schreiner é o idealizador do trabalho “Agentes Silenciosos” — uma série de imagens sobre arquitetura hostil realizada em lugares como Londres, Paris, Hamburgo, Berlim e Nova York.
Para o fotógrafo, nos municípios, os cidadãos são mais vistos como clientes. “Se você é um bom consumidor, pode usar a infraestrutura. Mas, se não for, não deveria estar nesse espaço”, declarou à Reuters. Ao mesmo tempo em que se vê crescer os exemplos dessas iniciativas que barram a permanência por mais tempo de pessoas consideradas “indesejadas” — e aqui entram também os skatistas e sua circulação pelos Centros urbanos —, a matéria cita grupos em diferentes localidades que estão se mobilizando para chamar a atenção para o assunto e tentar amenizar os seus reflexos.
Na França, centenas de elementos hostis foram mapeados a partir de uma campanha on-line desenvolvida por instituições voltadas para os sem-teto. Lançada no Twitter, a população foi convidada a compartilhar suas fotos usando a #SoyonsHumains (em tradução livre, vamos ser humanos).
Já na Grã-Bretanha, tachas metálicas foram cobertas por cidadãos com almofadas e colchões e, em Mumbai, na Índia, construções similares foram substituídas por flores depois de uma movimentação promovida nas mídias sociais, revela a Reuters.
A conscientização sobre esse fenômeno vem se espalhando por outras grandes cidades, como Boston, nos Estados Unidos. No início deste ano, uma ação do grupo Shlubs for Housing — ativistas contra a arquitetura hostil — retirou os braços de metal que separavam os bancos recém-instalados na parada da Praça Central do serviço público de transporte da região e chamaram a atenção para os efeitos do que chamaram de “design antissem-teto”, como relata reportagem da Boston Magazine.
Segundo a pesquisadora da Universidade da Califórnia em São Francisco, Caitlin Carey, que estuda o tema, essa forma de desenho é empregada para “manipular o comportamento humano, muitas vezes para desencorajar atitudes indesejadas.
E a maioria desses comportamentos está associado a pessoas que moram na rua e são ligados a atos como dormir, deitar ou descansar, que são inevitáveis da vida”, descreve ela à revista. Caitlin comenta ainda que moradores de rua fazem parte das comunidades como qualquer outro cidadão. “Eles merecem ser capazes de usar os ambientes públicos da maneira que precisam, dentro dos limites de segurança e da decência, é claro. Mas, quero dizer, eles precisam dormir”, reforça.
A Boston Magazine acrescenta que os obstáculos arquitetônicos não se limitam aos locais públicos. Aeroportos e shopping centers têm colocado bancos segmentados para evitar que viajantes e compradores cansados os utilizem para deitar.
Além disso, designers de parques e de complexos de edifícios vêm adicionando “pequenos entalhes de metal às paredes e grades para evitar que skatistas pisem neles”. O pesquisador de história da arquitetura e professor da Universidade de Nova York, Jon Ritter, salientou na matéria do New York Times que estão sendo construídas barreiras e paredes em torno de prédios de apartamentos e de espaços públicos para “impedir a entrada da diversidade de pessoas e usos que compõem a vida urbana”.
Projeto de Lei brasileiro impede a utilização de elementos hostis em lugares públicos
O termo arquitetura hostil foi empregado pela primeira vez pelo repórter do The Guardian, Ben Quinn, em 2014, como recorda matéria do ArchDaily. Quinn fez muitos leitores despertarem para a questão e perceberem as práticas apontadas por ele em suas cidades.
No texto “Anti-homeless spikes are part of a wider phenomenon of ‘hostile Architecture’” (em tradução livre, As pontas de ferro antidesabrigados são parte de um fenômeno mais amplo conhecido como “arquitetura hostil”), o jornalista apresenta relatos sobre taxas instaladas em estações de transporte público e separações metálicas em bancos em frente a instituições de justiça e em parques de Londres como formas de expulsar pessoas em situação de rua da região central.
Cenários como esses são bem conhecidos pelos brasileiros. Os obstáculos para o uso dos espaços públicos por sem-teto são mais comuns do que se imagina nos municípios e, muitas vezes, passam despercebidos pelos cidadãos por já estarem incorporados à paisagem urbana.
No país, as críticas a esse tipo de ação ganharam fôlego e mais visibilidade em fevereiro de 2021, quando o padre Julio Lancelotti — coordenador da Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo — quebrou com uma marreta pedras que foram colocadas pela prefeitura de São Paulo debaixo do viaduto Dom Luciano Mendes de Almeida para impedir a presença de moradores de rua no local, informa matéria do jornal Nexo.
Já em 31 de março deste ano, o Senado aprovou o Projeto de Lei (PL) 488/2021, de autoria do senador Fabiano Contarato (Rede-ES), que proíbe a utilização de arquitetura hostil — que também é chamada de design defensivo ou design desagradável — em ambientes públicos. O PL 488/2021, que aguarda o parecer do relator na Comissão de Desenvolvimento Urbano (CDU) na Câmara de Deputados, altera o Estatuto da Cidade e deve se chamar Lei Padre Julio Lancelotti, como indica reportagem da Agência Senado.
O texto incluído na norma veda o emprego de estruturas, materiais e técnicas de arquitetura hostil que visem afastar pessoas em situação de rua, idosos, jovens e outros segmentos da população. (Clique aqui para assistir à audiência pública realizada no dia 6 de outubro sobre o tema)
Tanto Contarato como Lancelotti “não defendem a manutenção dos indivíduos nesses espaços, mas veem nas restrições a sua presença em ruas e outros lugares o agravamento do problema social e não uma solução”, destaca a matéria. Situação essa que foi agravada pela pandemia de coronavírus, como observa o relator do PL, senador Paulo Paim (PT-RS).
Ele agregou uma emenda ao projeto que prevê que a arquitetura urbana deverá “promover o conforto, abrigo, descanso, bem-estar e acessibilidade na fruição dos ambientes livres de uso público, de seu mobiliário e de suas interfaces com os espaços de uso privado”. Conforme levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o número de moradores de rua no País em 2020 chegava a 222 mil, um incremento de 140% em comparação com 2012.
Cidades voltadas para as pessoas
Na contramão da arquitetura hostil está a proposta defendida pelo arquiteto e urbanista dinamarquês Jan Gehl de um planejamento urbano humanizado. Há mais de 50 anos, ele investiga os impactos negativos do modernismo nos municípios e atua para provar que é possível fazer localidades melhores, independentemente do seu tamanho.
Como arquiteto, ele sempre se interessou pela forma como construir uma localidade influencia na vida dos seus moradores. E isso é algo que está presente em sua trajetória desde o começo da carreira, quando se casou com uma psicóloga e ela e seus amigos o questionavam por que os profissionais de arquitetura não se preocupavam com as pessoas e não tentavam entendê-las.
Neste conceito, Gehl fundou o seu escritório, em 2000, para oferecer consultoria a projetos que tenham os indivíduos como centro e que buscam oferecer espaços mais qualificados. Uma década mais tarde, o profissional lançou o livro “Cidade Para Pessoas”, considerado por ele uma publicação-protesto contra algumas ideias que dominaram a forma de desenhar os municípios no século XX.
A versão brasileira da obra foi lançada em 2013 pela editora Perspectiva, patrocinada pela Pedra Branca, responsável pela implantação do bairro planejado Cidade Criativa Pedra Branca, em Palhoça, na Grande Florianópolis (SC), que teve a Gehl Architects entre seus consultores internacionais.
No livro, Jan Gehl reúne critérios para alcançar um planejamento urbano mais humanizado e levar mais gente para a rua, como proporcionar locais para caminhadas sem obstáculos e acessíveis a todos, assinala artigo do Fronteiras do Pensamento — evento que teve o profissional como um de seus palestrantes em 2016.
Proteger os pedestres a partir do design e da arquitetura e criar zonas atraentes para os indivíduos sentarem ou ficarem são outros itens apontados no livro. Instalar mobiliário urbano que permita que as pessoas conversem, oferecer vistas interessantes e lugares bem iluminados são outros princípios que integram a lista.
Além desses, Gehl frisa também a importância de projetar para os indivíduos e não para os carros e de oportunizar experiências sensoriais positivas utilizando boa arquitetura, materiais de qualidade e mais verde nos municípios. As ideias do profissional já foram colocadas em prática em mais de 200 cidades, como Nova York, Moscou, Copenhagen, Londres, Sydney, São Paulo e, também, em Palhoça, Santa Catarina.
Via Caos Planejado.