Por décadas, carros têm sido associados a uma promessa de praticidade, autonomia e conforto. Do ponto de vista individual, pode até ser verdade. Mas a priorização do automóvel no desenho das cidades torna a mobilidade urbana ineficiente e fomenta a desigualdade ao privar grande parte da população do acesso a oportunidades. Usar o carro é uma escolha individual que gera muitos prejuízos coletivos. Cobrar pelos custos sociais dessa escolha é uma forma promissora de desestimulá-la e, ao mesmo tempo, gerar recursos para a mobilidade sustentável.
Carros passam 95% do tempo estacionados – muitas vezes nas vias, consumindo espaço público precioso. Em São Paulo, uma das cidades mais congestionadas do planeta, carros ocupam 88% das vias e transportam somente 30% das pessoas. Parece loucura que tantas pessoas sigam sonhando em comprar carros – em 2020, era uma intenção de 45% dos brasileiros.
Qual a alternativa? O transporte coletivo, a bicicleta e a caminhada. Mas, apesar da centralidade dos modos coletivos e ativos nos deslocamentos urbanos no Brasil (39% dos deslocamentos são realizados a pé e 28% por transporte coletivo), investe-se muito mais em infraestruturas e incentivos para o transporte individual motorizado do que na mobilidade sustentável. Enquanto isso, o transporte coletivo atravessa uma crise financeira que ameaça a continuidade do serviço em muitas cidades.
Solucionar essa equação passa por repactuar com os carros a conta da mobilidade urbana. Em quase todas as cidades brasileiras cabe unicamente ao passageiro pagar a conta do transporte coletivo. Por que aqueles que usam automóveis estão dispensados de pagar pelas perdas econômicas geradas pelos congestionamentos no trânsito, pelos custos sociais gerados por sinistros de trânsito e poluição do ar, pelos custos ambientais decorrentes da emissão de gases de efeito estufa? Cobrar pelo uso do carro para financiar o transporte coletivo e a mobilidade sustentável é uma questão de justiça social.
Carros podem “financiar” a mobilidade sustentável
Os carros seriam bem menos atraentes se os motoristas fossem financeiramente responsáveis pelos impactos negativos que impõem para a sociedade, as cidades e o planeta. Os custos individuais de dirigir, como IPVA, seguro, combustível e peças, dizem respeito à posse, ao uso e à manutenção de um bem privado. Os custos coletivos para a sociedade, o meio ambiente e a economia – as chamadas externalidades negativas – seguem descobertos, prejudicando a vida nas cidades e no planeta.
A Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP) estima que carros e motos são responsáveis por 85% dos custos do transporte urbano para a sociedade, somando gastos em infraestrutura e mortes e internações decorrentes de acidentes e da poluição. O transporte coletivo é responsável por apenas 15% desses custos. Se mais pessoas utilizassem o transporte coletivo, menores seriam os custos impostos para a sociedade. Todos sairiam ganhando.
Enquanto isso não ocorre, os passageiros de ônibus urbanos sustentam praticamente sozinhos um sistema que beneficia toda a coletividade. Mais limpo, seguro e eficiente, o transporte coletivo é um direito constitucional e um elemento fundamental para as cidades. Metade dos passageiros de ônibus urbanos em cidades brasileiras são cativos do sistema, ou seja, dependem exclusivamente dele para ir ao trabalho, estudar, acessar postos de saúde e alcançar áreas de lazer. Sem ônibus, milhões de brasileiros perderiam oportunidades para vencer na vida.
Em um cenário marcado por anos sucessivos de quedas na demanda, garantir um transporte coletivo de qualidade e cidades mais inclusivas requer que se cobre pelos impactos negativos do uso do carro. Os recursos gerados podem ser usados para promover a necessária renovação do transporte coletivo, bem como em outros investimentos em mobilidade sustentável.
5 formas de cobrança pelas externalidades dos carros
Cidades em todo o mundo têm implementado modelos de cobrança pelas externalidades negativas decorrentes do uso do carro, e muitas delas revertem os recursos gerados em investimentos nos sistemas de ônibus e em infraestrutura de qualidade para a bicicleta e a caminhada. No Brasil, a Lei da Mobilidade Urbana já prevê a cobrança pelo uso do carro como medida de equidade e sustentabilidade no transporte. As cidades brasileiras devem pôr a lei em prática. A seguir, conheça algumas medidas de sucesso e o local e contexto em que foram implementadas.
Taxação da gasolina – Bogotá, Colômbia
Bogotá, na Colômbia, mantém a tarifa do ônibus em patamares acessíveis e os investimentos no transporte coletivo por meio de um fundo de estabilização tarifária que tem entre as fontes de recursos a taxação da gasolina. A chamada “sobretaxa da gasolina” é de 25%. Estuda-se estender a política para outros combustíveis, como o gás natural. Criada há mais de 30 anos, a sobretaxa teve várias finalidades ao longo dos anos, como a construção e manutenção de infraestrutura viária e de linhas de metrô e do TransMilenio, o sistema BRT da cidade.
Taxação do congestionamento – Londres, Reino Unido
Londres gera mais de R$ 1 bilhão ao ano para o transporte coletivo ao cobrar pelo acesso dos carros à zona central – medida também chamada de “pedágio urbano” –, e vai economizar outros bilhões ao longo dos anos com a redução de emissões e acidentes. A fiscalização é feita por câmeras e reconhecimento das placas dos veículos. Caso os proprietários atrasem o pagamento da taxa, há aumento na tarifa cobrada. As zonas em que ocorre a cobrança têm sido expandidas e convertidas em Zonas de Ultrabaixa Emissão, em que veículos muito poluentes não são permitidos. Medidas semelhantes vigoram em outras cidades britânicas, em Singapura, Seul, e países como Noruega e Suécia.
Precificação dinâmica do estacionamento – São Francisco, EUA
São Francisco (EUA) precifica o estacionamento em vias públicas de acordo com a demanda por vagas. Ir ao centro de transporte coletivo tornou-se mais barato do que ir de carro, e as receitas anuais para a mobilidade sustentável engordaram alguns milhões de dólares. Não é justo reservar espaço público valioso para a armazenagem gratuita de bens privados. Outras cidades no mundo têm adotado modelos inovadores de cobrança pelo estacionamento rotativo, como Lisboa e São José dos Campos.
Taxa de mobilidade corporativa – Paranaguá (PR)
Empresas se beneficiam da infraestrutura viária das cidades e geram parte significativa do tráfego nas cidades, onde 50% dos deslocamentos são realizados por motivos de trabalho. Paranaguá, no Paraná, passou a cobrar uma taxa de mobilidade de empresas e empregadores, em substituição ao vale-transporte. A arrecadação compõe parte dos recursos com os quais a cidade viabilizou a implementação do transporte coletivo gratuito, que deve começar a operar no primeiro trimestre de 2022.
Taxação de aplicativos de transporte – São Paulo (SP)
Carros por aplicativo fazem uso intensivo do sistema viário e realizam paradas frequentes junto ao meio-fio, impondo ainda mais custos a sociedade do que veículos privados. Além disso, capturaram pessoas que utilizavam meios de transporte mais sustentáveis. Isso inclui os clientes do transporte coletivo que realizam deslocamentos mais curtos, que cobrem parte dos custos das viagens longas – o chamado “subsídio cruzado”. Pesquisa realizada em São Paulo, em 2018, mostrou que 30% dos clientes de aplicativos vinham do transporte coletivo e 5% não teriam feito a viagem se não houvesse o app.
São Paulo tem um dos modelos mais inovadores de taxação dos apps entre as cidades do mundo. Há uma taxa base de R$ 0,10 por km rodado, que pode diminuir ou aumentar como medida de estímulo (há descontos para motoristas mulheres e veículos menos poluentes, por exemplo) ou desincentivo (quando determinada empresa supera um limite de quilômetros rodados). Em 2019, a cidade arrecadou R$ 215 milhões com a prática.
Desafio ambiental, econômico e político
A cobrança pelas externalidades negativas do uso dos carros é medida promotora de saúde, de mitigação climática e, principalmente, de equidade e justiça no acesso à cidade. A prática também é positiva ao fomentar uma mudança de comportamento na mobilidade urbana: quanto mais pessoas deixarem o carro em casa para usar modos mais sustentáveis, melhor para as cidades e para todas as pessoas – incluindo quem precisa usar o carro.
Os exemplos acima mostram que há um grande potencial de geração de recursos para a mobilidade sustentável, o que só torna mais urgente que se avance nessas discussões no Brasil. Para o transporte coletivo, repactuar com os motoristas os custos sociais que os carros impõem à sociedade pode representar uma esperança concreta em meio à crise que ameaça o serviço. Ano após ano, os ônibus urbanos no Brasil se veem presos no mesmo círculo vicioso de perda de demanda, de receitas e de qualidade. Prefeitos reclamam, não sem razão, amparo do governo federal para subsidiar os sistemas de ônibus urbanos. Mas não podem deixar de buscar outras soluções, nem de enfrentar a insustentabilidade da mobilidade urbana que insiste na priorização do automóvel.
Via WRI Brasil.