A descoberta do fogo foi um dos grandes acontecimentos que mudou a organização social dos aglomerados humanos, que passaram aos poucos do nomadismo ao sedentarismo. O fogo, que naquele contexto servia para manter as pessoas aquecidas e proteger o grupo, foi também sendo explorado como fonte de cocção de alimentos, o que não só mudou os hábitos alimentares dos humanos, como também possibilitou a conservação de mantimentos, alterando a organização social das comunidades. O preparo e as refeições eram atos coletivos, que reuniam as pessoas para se alimentar, se aquecer e se proteger. É desse hábito que herdamos a prática dos grandes banquetes e a valorização da alimentação e do momento de refeição. A preparação dos alimentos, em contrapartida, foi sendo paulatinamente marginalizada.
Ao passo que egípcios, assírios, fenícios, persas, gregos e romanos compartilhavam do hábito de realizar grandes banquetes, o preparo ganhava cada vez menos prestígio, perdendo sua dimensão social coletiva até ser fisicamente segregado em um cômodo específico: a cozinha.
O primeiro registro de um espaço de manejo e preparo de alimentos é do Egito Antigo, uma sociedade que não apenas inventou a cerveja, mas tinha o hábito de fazer pães e bolos em fogões a lenha dentro das residências. Na Grécia Antiga, o inchaço da camada aristocrática levou as refeições a se tornarem uma grande experiência social, tratada quase como arte. Elas eram preparadas em cozinhas que anexadas às casas, em pátios muitas vezes descobertos. Nas residências mais ricas a cozinha ficava dentro de casa, de modo que o calor do fogão também aquecesse os ambientes, ao mesmo tempo que havia um pequeno cômodo próximo a cozinha onde se armazenavam mantimentos. Já durante o Império Romano os banquetes ficaram cada vez mais luxuosos e fartos para os mais ricos. A população romana, em geral, não tinha cozinha em suas residências – usava cozinhas coletivas que ficavam no centro das cidades para preparar as refeições.
De maneira geral, na antiguidade, apesar das refeições serem sempre comemoradas como grandes eventos de fartura, os espaços de preparo eram definidos a partir do manejo do fogo e da fumaça. Durante muito tempo não houve tecnologia de exaustão eficiente para lidar com esse problema, portanto, os espaços de preparo foram segregados dos banquetes, ficando a cargo de serviçais ou pessoas escravizadas. A partir do domínio ideológico da Igreja Católica e da divulgação da doutrina dos pecados capitais, a gula, bem como a interação social que provinha dos grandes banquetes, se tornou objeto de censura pelas autoridades clericais, fazendo com que o hábito de usar as cozinhas coletivas e realizar grandes refeições fossem, aos poucos, sendo abandonados.
Diferentemente dos banheiros, que nesse momento se tornaram inexistentes para a maioria da população, os espaços de cozinhar foram adaptados para dentro das casas das pessoas. Compostos basicamente por um fogareiro no chão e um balde suspenso que eram posicionados no centro da sala, era ali mesmo onde os animais eram abatidos, preparados, e também onde se armazenavam outros mantimentos. Em um momento no qual a higiene era também censurada pela moral católica, as casas se tornaram lugares sujos e propagadores de pestes, o que era agravado pela falta de redes de esgoto. A situação insalubre só afastou mais as pessoas das atividades de cozinha, cooperando para a segregação do lugar e de seus trabalhadores do restante do convívio social.
Ao longo do século XIX, grandes invenções mudam a forma das cozinhas se organizarem; com o advento da chaminé, este espaço se torna independente. Tempos depois o fogão de ferro fundido, a possibilidade do gás encanado, e as primeiras geladeiras mudam circunstancialmente as configurações espaciais. A partir da Revolução Industrial, a cozinha, entendida como espaço de trabalho, passa a ser vista sob a ótica das linhas de produção e se torna objeto de experimentos que buscam otimizar seus processos.
No início do século XX, as mulheres, desde a idade medieval vinculadas ao trabalho na cozinha, começam a estudar a otimização desses espaços. Nos Estados Unidos, Christine Fredericks Mary Pattison realizou em 1922 um estudo de circulação na cozinha e examinou a movimentação a partir da disposição dos móveis, concluindo que o layout era fundamental para otimização do tempo. Já em 1926, na Alemanha, a arquiteta Margarete Schütte Lihotzky desenvolveu o conceito da Cozinha de Frankfurt inspirada nas cozinhas dos navios de guerra alemães.
Ali surgia a cozinha embutida e a organização que mais nos parece familiar hoje em dia. Com o advento da rede elétrica as cozinhas foram sendo equipadas com objetos e eletrodomésticos que buscavam economizar tempo e facilitar o dia a dia. Nas décadas seguintes, mudanças sociais estruturantes impactaram na forma como a cozinha é integrada à vida doméstica; ela passou a ocupar menos espaço e foi trazida definitivamente para dentro de casa. Poderia ser comandada ainda por cozinheiras e empregadas, mas se tornara um espaço doméstico, inclusive incorporando elementos de design e decoração. Durante a Guerra Fria, nos Estados Unidos, os equipamentos de cozinha para a classe média foram grandes símbolos do American Way of Life.
A última grande mudança que testemunhamos nas cozinhas é um resgate dos processos alimentares como atividade social e coletiva. No século XXI, a cozinha compacta foi integrada aos espaços sociais a partir do que as pessoas conhecem hoje como “planta aberta”. É importante salientar, porém, que grande parte das mudanças que ocorreram nas cozinhas do século XIX até hoje se concentraram em um grupo social específico, de classe média alta. Ainda hoje vemos cozinhas insalubres, sem estrutura e saneamento e, principalmente, grupos inteiros que passam por situação de insegurança alimentar. Se, por um lado, buscamos resgatar a função social e cultural do preparo dos alimentos e da refeição, por outro, a cozinha se tornou ainda mais um espaço luxuoso e distante da realidade de muitos.
Referências
SÂMIA, Carolina Olsson Folino, 2008. Cozinha funcional: Análise do Espaço e do Usuário Idoso. Acesse aqui.
VILELA, Juliana de Almeira, 2018. Do fogo aos banquetes medievais - Uma pequena fatia da história das cozinhas profissionais. Acesse aqui.