Um dos elementos de mais afinidade entre arquitetura e cinema é o projeto cenográfico. O cenógrafo, assim como o arquiteto, parte de um conceito para elaborar espaços com uma finalidade. O arquiteto projeta espaços para a vivência e o cenógrafo projeta os espaços pra contar histórias. Muitos arquitetos trabalham com cenografia em razão da afinidade que as atividades apresentam.
O cenário compõe parte considerável da imagem cinematográfica, referindo-se sobretudo a enquadramentos onde a mise en scène abrange unicamente esse cenário ou o ator interagindo direta, ou indiretamente com o ambiente ao seu redor. Partindo de um conceito simples, a cenografia de um filme integra todo o estudo do espaço cinematográfico, composto pelo cenário, disposição dos móveis e organização dos objetos. Indo além da noção de decoração e design de interiores, o cenário conta uma história, e os elementos escolhidos podem evidenciar uma possível personalidade do personagem, ao mesmo tempo que contribui com a compreensão dos acontecimentos da narrativa.
Desde os espetáculos teatrais na Grécia Antiga, o cenário já desempenhava um papel importante dentro da narrativa. Nos primórdios do cinema, foi muito explorado por George Meliès, considerado o pioneiro em experimentar os efeitos especiais do cinema. O cineasta, com suas veias ilusionistas, fazia os próprios cenários com a técnica trompe l´oeil, uma forma artística de desenho ou pintura que permite a uma visão em perspectiva por meio de ilusão de ótica.
A pesquisadora Gilka Vargas comenta que os cineastas partiram dessa técnica e começaram a construir cenários mais realistas em três dimensões. Na Itália, berço de grandes cenários teatrais, Giovanni Pastrone lançou “Cabiria” (1914), um longa com cenários tridimensionais projetados pelo arquiteto Camillo Innocenti. André Martins afirma que o projeto revolucionou a cenografia no cinema por fugir da bidimensionalidade das pinturas chapadas usadas nos filmes de Meliès. Tal técnica permitiu que a câmera caminhasse no espaço fílmico, permitindo maior relevo às cenas. A produção do filme improvisou o que talvez tenha sido primeiro o travelling do cinema, uma técnica na qual a câmera é fixada sobre um equipamento de rodas que se movimenta de forma paralela nos cenários.
O doutor em design e arquitetura Nelson Urssi comenta que foi com as produções do movimento expressionista alemão, iniciada no cinema por volta de 1910, que o cenário começou a ser explorado como um elemento além do espaço convencional filmado. Nos cenários expressionistas os espaços eram visões sugeridas pela narrativa, com arquiteturas distorcidas que não condiziam com a realidade, remetendo muitas vezes a pesadelos. Através dessa abordagem subjetiva do mundo, os espaços cênicos realçavam o mundo interior dos personagens, como em “O gabinete do Dr. Caligari” (1920), revelando suas angústias e estado mental.
“O cinema expressionista oferecia para cenógrafos e arquitetos, a oportunidade de investigar os efeitos psicológicos relacionando elementos como: primeiro e segundo plano, distâncias e diagonais, ascendências e descendências, horizontes altos e baixos, iluminação difusa e concentrada, elaborando um vocabulário gráfico, formal e espacial de alto potencial dramático. —URSSI, 2006
André Bazin, um dos mais conceituados críticos de cinema do mundo, afirma que “o ponto de apoio da alavanca dramática não está no homem, mas nas coisas” (1958). Portanto, apoiando-se nesses conceitos, o cenário é um ponto não apenas relevante, mas fundamental no processo de comunicação visual e na construção do sentido da narrativa. Ao projetar um cenário, o cenógrafo coleta do roteiro todas as informações relevantes e consideradas cruciais na construção da cenografia, como descrição dos ambientes e traços importantes dos personagens, dando um significado para cada item projetado e colocado em cena.
Ao projetar, o cenógrafo proporciona novos significados ao espaço, procurando definir relações com o espectador a partir do cenário — por meio da escolha de cores e formas, locação dos mobiliários, especificação de materiais e texturas. Cada elemento escolhido e posicionado na cenografia possui informações, motivo pelo qual o cenário se torna um veículo de comunicação, influenciando e estabelecendo um impacto sobre o espectador, gerando diferentes estímulos e interpretações.
A cenografia revela, através de seus componentes, informações importantes para a compreensão, por exemplo, qual a opção religiosa ou política dos personagens, suas condições emocionais, onde vivem, como se relacionam com o ambiente, assim como sua classe social. Em “Parasita”, primeiro longa de língua estrangeira a ganhar o Oscar de melhor filme em 2020, o diretor Bong Joon-ho apresenta o contraste social através de duas famílias. É um filme carregado de simbolismos e muitos deles se revelam nos elementos arquitetônicos. No início do filme, os personagens Ki-woo e Ki-jung aparecem procurando sinal de wi-fi pelo celular e a câmera vai revelando o espaço em que moram: percebemos o acúmulo de objetos, a precariedade dos ambientes, a múltipla função do banheiro, assim como móveis e revestimentos envelhecidos.
Um elemento que chama atenção é uma pequena janela, a primeira imagem do filme. Dela, a vista da família pobre é no mesmo nível da rua, representando a queda social. Em contraste a essa janela, a casa da família rica é cercada por esquadrias de vidro, sendo inundada pela luz do sol. Através da arquitetura desses ambientes, a temática do filme se revela.
Além desses atributos, com o auxílio do enquadramento e posicionamento de câmera (acentuando o trabalho coletivo da produção cinematográfica), a cenografia pode servir como um elemento de indícios sobre possíveis encaminhamentos da narrativa, contribuindo com a compreensão do enredo. Durante a escolha de uma locação ou na elaboração do projeto de cenário em estúdio, o diretor e o cenógrafo podem se aproveitar de elementos arquitetônicos presentes ou criados pra expor ou enfatizar uma ideia, enriquecendo o espaço fílmico através da composição do quadro. Podendo indicar relação de proximidade de personagens, como na série “O conto da Aia” e no longa “O quarto de Jack” (figuras 11 e 12), assim como distanciamentos, como na série “Breaking Bad” e no longa “Brilho Eterno de uma mente sem Lembranças” (figuras 13 e 14), o interior dos personagens e como eles se sentem no ambiente que vivem (figuras 15 e 16).
Referências bibliográficas
VARGAS, Gilka. Direção de arte: do cinematógrafo ao cinema digital. Orson - Revista dos Cursos de Cinema do Cearte UFPEL, v. 4, p. 186-201, 2013
MARTINS, André Reis. A luz do cinema. Orientador: Prof. Dr. Luiz Nazario. 2004. 209 p. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) - Escola de Belas Artes, UFMG, Belo Horizonte, 2004.
URSSI, Nelson José. A linguagem cenográfica. Orientador: Cyro Del Nero de Oliveira Pinto. 2006. 122 f. Dissertação de Mestrado (Artes) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.
BAZIN, André. O que é o Cinema? [S. l.]: Les Éditions du Cerf, 1985. 447 p.
LAUFHUTTE, Maria Luiza Zenobio. Design de produção no cinema: o processo de comunicação visual da cenografia. 2018. Dissertação (Mestrado em Design) - PUC-Rio, Rio de Janeiro, 2016
BASTOS, Fabiane. A Maravilhosa Fotografia de O Conto da Aia. 2022. Disponível em: https://www.aheporfalarnisso.com/2020/05/a-maravilhosa-fotografia-de-o-conto-da.html. Acesso em: 27 mar. 2022.