As dependências de empregada estão com “os dias contados”, apesar de ainda encontrarem lugar nos novos apartamentos de luxo. A informação é de uma reportagem publicada na Folha de S. Paulo em março deste ano que diz que em 2018 menos de 1% das trabalhadoras domésticas, em sua maioria mulheres negras, moravam nas dependências de seus empregadores — um número baixo quando comparado com os 12% de 1995. Com a diminuição das profissionais residentes na casa dos empregadores, o “quartinho de empregada” estaria aos poucos deixando de fazer parte das plantas de arquitetura dos edifícios habitacionais brasileiros.
Históricamente, a organização social pautada na servidão e na escravidão foi adaptando os espaços domésticos de acordo com sua hierarquia. Se os engenhos tinham as casas grandes com toda sua escala e imponência, é porque nos porões e nas senzalas viviam pessoas escravizadas que forçosamente trabalhavam mantendo essa estrutura em funcionamento. Depois da abolição da escravidão, essas pessoas, agora livres porém sem qualquer apoio para se incorporarem à sociedade, continuaram trabalhando nas mesmas funções, agora pela necessidade de sobrevivencia e em condições similares. Assim se perpetua a lógica de servidão na sociedade brasileira, incorporada até hoje na figura dos empregados domésticos.
É a partir da abolição da escravidão e dos avanços tecnológicos em saneamento básico que a organização espacial começa a se transformar. As casas grandes migram para a cidade e se materializam em mansões urbanas e a senzala se torna a edícula no fundo do terreno que abriga os funcionários dedicados aos serviços domésticos. A casa tradicional (burguesa) brasileira reconhece três áreas diferentes em sua organização espacial: social, íntima e de serviço. Enquanto a área íntima é reservada aos moradores da casa e a parte social é dedicada ao entretenimento das visitas, a área de serviços é onde ficam os espaços de “apoio” de uma residência, aqueles ligados diretamente aos serviços que eram desempenhados pelos escravos e que não deveriam ser revelados às visitas nem frequentados diariamente pela família.
As edículas continham um dormitório e banheiro onde moravam esses trabalhadores domésticos e era normalmente localizada próxima à cozinha e à lavanderia, espaços historicamente marginalizados. Com o adensamento das cidades, a verticalização, e a permanência de uma hierarquia social pautada nos serviços domésticos, as dependências dos funcionários vão aos poucos deixando as edículas e migrando para os edifícios residenciais. Até a década de 1970 era comum ver apartamentos pequenos, de dois quartos, com dependências para empregados, não somente nas classes mais abastadas, como também na classe média alta. Entre os mais ricos essa prática é reproduzida até hoje.
Os séculos XX e XXI trazem mudanças sociais substanciais, como uma potente luta popular por direitos trabalhistas e avanços tecnológicos significativos que transformam algumas dinâmicas domésticas. Por um lado, temos maior acesso a eletrodomésticos que facilitam e otimizam os trabalhos, além também da lógica industrial facilitar o acesso a alimentos industrializados. Por outro, politicamente há um conjunto de conquistas trabalhistas que estabelece direitos e deveres aos trabalhadores e patrões, sendo a mais recente a PEC das Domésticas, aprovada em 2013, que regulariza o trabalho do trabalhador doméstico.
Com isso o número de empregados domésticos por residência diminui no decorrer do tempo, mas ainda assim a lógica do “quartinho” continua existindo. A herança colonial-imperial brasileira faz com que o empregado doméstico moderno assuma um papel de ajudante do lar, o que o torna quase “indispensável” para a lógica familiar da classe média alta, inclusive por questões de poder e status social. Se “o quartinho da empregada” permaneceu ativo durante todos esses anos, mesmo com as mudanças na dinâmica do lar, quais são os fatores recentes que fazem com que esse espaço comece a desaparecer da arquitetura doméstica?
Primeiramente, os últimos 10 anos foram marcados por uma mudança generalizada nas relações de trabalho. A ideia do empreendedorismo e da terceirização, bem como o aumento do custo de vida da população e o consequente aumento no custo do profissional doméstico, faz com que muitos trabalhadores domésticos se dividam em vários trabalhos pontuais e diários, ao invés de um emprego fixo e registrado. Se antigamente o comum era dedicar-se exclusivamente à uma família, hoje esse profissional transita por vários locais de trabalho e se especializa em um serviço específico, como faxina, cozinha etc.
Ao mesmo tempo, com o adensamento das cidades e a escassez da terra, o preço do metro quadrado subiu consideravelmente, de modo que o mercado imobiliário têm construído empreendimentos residenciais cada vez menores e com a área cada dia mais otimizada. Nos apartamentos de classe média alta as dependências de serviço dedicadas aos profissionais foram suprimidas, enquanto a lavanderia foi reduzida ao mínimo e a cozinha se tornou área social. A reportagem da Folha de S. Paulo aponta que hoje em dia, ao mesmo tempo que esses aposentos permanecem existindo nas unidades maiores e mais luxuosas de São Paulo, o mercado traz possibilidades de adequações de planta que suprimem esse cômodo, com a opção de transformar o quartinho em um escritório, ou ampliar a cozinha. Ao mesmo tempo, não são poucas as reformas de apartamentos antigos que suprimem os quartos de empregada e os transformam em áreas sociais.
Porém, assim como na transição do trabalho escravo para o trabalho livre, o trabalhador doméstico atual também não perdeu o estigma da marginalização na sociedade. Se antigamente eles se concentravam na senzala, na casinha dos fundos ou no quartinho da empregada, hoje em dia eles ocupam os bairros periféricos das cidades, enfrentando transporte público lotado para se deslocar de serviço em serviço, falta de acesso à educação, lazer e cultura e continuam sendo vítimas de preconceitos. Apesar das transformações na dinâmica arquitetônica ao longo dos séculos, a organização espacial continua respondendo à mesma hierarquia social derivada da lógica colonial-imperial, reproduzindo estruturalmente o racismo e o machismo.
Referências:
TIEGHI, Ana Luiza; GAVRAS Douglas. Quarto de serviço resiste nos imóveis de luxo, mas tem dias contados, 2022. Acesse aqui.
VIANA, Maíra Boratto Xavier; TREVISAN Ricardo. O “Quartinho de Empregada” e seu lugar na morada brasileira, 2016. Acesse aqui.
DiEESE, Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconomicos. Dados atualizados do IBGE. Acesse aqui.