Entre senhora e arquiteta, Lina Bo Bardi aparece nas páginas da revista O Cruzeiro, tanto nas colunas femininas por seu risoto à milanesa, como nas matérias sobre cultura como a arquiteta do MASP (Museu de Arte Moderna de São Paulo). Publicada semanalmente pelos Diários Associados de Assis Chateaubriand, O Cruzeiro dispunha de notoriedade e circulação no âmbito nacional e, apesar de direcionada para donas de casa das classes mais altas, apresentava um conteúdo bem amplo, abrangendo matérias de moda, cultura, cinema, política, além de “secções (sic) de aconselhamento feminino”.
As múltiplas representações de Lina, não apenas nessa revista, mas também aquelas que ela mesma buscava construir e interpretar são o ponto de partida da pesquisa que originou este ensaio. O intuito foi compreender as relações entre os debates de gênero, raça, domesticidade e cultura material nas residências abastadas da segunda metade do século XX, com aqueles relativos à participação, experimentação e engajamento na produção material da arquitetura no mesmo período, na cidade de São Paulo.
Considerando as especificidades do contexto e sociedade brasileira, em que a abolição ocorreu tardiamente e, portanto, ainda com fortes heranças do período escravocrata, a ideia é refletir sobre as narrativas que continuam sendo escolhidas como dominantes, perpetuando a invisibilidade de determinados grupos e histórias dentro da disciplina. As discussões sobre a colonialidade na arquitetura brasileira, longe de serem um assunto do passado, uma questão resolvida, se fazem presentes no cotidiano das relações, práticas e discursos dos arquitetos/as. E é nesse sentido que aproximar as trabalhadoras domésticas e os operários do canteiro de obras, como parte de uma mesma estrutura social que oblitera determinados corpos, sujeitos e narrativas, se faz interessante. Para tanto, foram escolhidas duas obras emblemáticas de Lina Bo Bardi para se debruçar sobre essas questões: a Casa de Vidro (1951) e o SESC Pompéia (1977-1982).
A cozinha e as trabalhadoras domésticas invisibilizadas da Casa de Vidro
Em um conjunto de verbetes escritos em 1958 na Enciclopédia da Mulher, um volume de trezentos e trinta páginas que reuniu diversos artigos de mulheres cujo assunto principal era o lar, Lina Bo Bardi aponta o que entendia como o papel da mulher na sociedade moderna. Ou melhor, as transformações em relação aos tradicionais papéis de gênero que compreendiam a modernidade.
Exibindo sua própria casa como um exemplo, sob a forma de um manual de instruções, ela escreve sobre as preocupações, problemas e soluções da moradia e do morar moderno. Enfatiza a ideia de eficiência, racionalização e mecanização do espaço doméstico, abordando, especialmente, as novas casas, para as quais propunha grandes modificações nas áreas de serviço. Acompanhando esse texto, foi reproduzida uma série de imagens, nas quais a arquiteta aparece realizando atividades domésticas: lavando os pratos, jogando fora o lixo, colocando roupa na máquina de lavar, abrindo uma pequena mesa retrátil na cozinha e costurando um tecido. Os objetos e aparelhos elétricos se destacam pela sua inovação e modernidade para aquele período. O lixo não é apenas uma lata de lixo comum, é um incinerador e na pia, assim como é sugerido no verbete, há um triturador de lixo. Se hoje em dia é raro encontrar esses dispositivos nas residências em São Paulo, no início da década de 1950, provavelmente, era ainda mais incomum. O mesmo se pode dizer do exaustor e da máquina de lavar que aparecem nas imagens: não eram equipamentos usuais, mesmo nas casas de alto-padrão.
Usando as mesmas roupas, calças compridas, sapatos sem salto e um casaco de botões esticado até metade do seu braço, a imagem de Lina Bardi contrasta com a iconografia dominante naquele período. Por um lado, os eletrodomésticos apresentados reforçam a ideia de economia de tempo, praticidade e eficiência, assim como nas revistas femininas daquele momento. Por outro, a arquiteta buscava distanciar-se do american way of life veiculado nessas mídias, com roupas despojadas em contraposição aos aventais e vestidos e sem aludir aos ideais de casamento, marido e filhos. Pensando que essas fotografias se inserem em um artigo voltado para um público feminino, que se dedica a sugestões de como cuidar da casa, é possível dizer que ela estava exibindo e apontando uma proposta, para outras mulheres, de modernidade. De uma nova identidade feminina dentro do espaço doméstico no contexto brasileiro: de uma mulher que cuida da casa, mas também consegue se desvencilhar dela para realizar atividades mais interessantes (RUBINO, 2017).
Importante ressaltar que esses aconselhamentos não eram direcionados a qualquer mulher, mas sim às brancas, das classes médias e altas, àquelas pertencentes ao mesmo grupo social da arquiteta. Isso porque as mulheres pobres, livres, forras e escravas já ocupavam e circulavam nos espaços públicos desde o século XVIII, no início da urbanização da cidade de São Paulo. E justamente essas mulheres articulavam outros papéis femininos que não se relacionavam com os padrões hegemônicos de comportamentos das classes dominantes.
Se os escritos e fotografias de Lina Bardi parecem sugerir que era ela mesma, ou num espectro mais ampliado, a dona de casa quem realizaria os afazeres da casa, sabe-se que não era ela quem de fato exercia essas atividades. Tampouco as suas leitoras, aquelas para quem exibia essa nova ideia do morar moderno. É possível supor que, inclusive, havia mais de uma funcionária na Casa de Vidro, uma vez que há dois aposentos para as empregadas dentro do corpo principal da casa e, anos mais tarde, também é construída uma casa para os caseiros no mesmo terreno.
Os arquivos históricos e registros das trabalhadoras domésticas, não apenas da Casa de Vidro, são, porém, escassos. Suas representações existentes nas residências burguesas da segunda metade do século XX são apresentadas por intermédio de manuais e revistas femininas, tais como O Cruzeiro. Se a relevância dessas fontes não diminui, é preciso lembrar que eram direcionadas a um público específico, mulheres brancas de classe média alta e classe alta, ou seja, as patroas. Produzida pelo mesmo grupo social, não apresenta as narrativas, opiniões, subjetividades e experiências das próprias trabalhadoras domésticas.
Enfatizando muitas vezes a ideia de inimigas em potencial, as notícias, propagandas e “secções (sic) femininas” da mesma revista colaboravam para a construção dessa imagem. Como aponta Santos (2015), apesar da preferência por empregadas brancas e estrangeiras, a maior parte das mulheres contratadas como servidoras domésticas nesse período eram negras e brasileiras. É importante ressaltar a diferenciação da representação entre as trabalhadoras brancas e negras, reforçando o imaginário de mão de obra branca civilizada, em detrimento à negra. Mesmo depois da abolição “permaneceu-se no imaginário a ideia de que o negro representava uma ameaça à propriedade, à segurança e à moral das famílias “distintas e bem estabelecidas” (SANTOS, 2015, p. 105).
Grada Kilomba questiona algumas teorias feministas na medida em que dividem o mundo entre homens poderosos e mulheres subordinadas, excluindo estruturas raciais de poder entre mulheres diferentes. Discorre sobre o fato de estarem centradas em uma imagem de mulher única e universal, negligenciando que o modo como o gênero é construído para mulheres brancas difere das construções de feminilidade negra.
O impacto simultâneo da opressão “racial” e de gênero leva a formas de racismo únicas que constituem experiências de mulheres negras e outras mulheres racializadas. — Grada Kilomba, 2019, p. 37
É significativo que em uma casa com dois quartos e uma sala de empregados, além de uma edícula construída especificamente para ser a casa dos caseiros, não apareça nenhuma imagem das empregadas e quase nenhuma menção delas nos discursos da arquiteta.
Se de fato não eram essas as questões colocadas pela arquiteta naquele período, vale refletir sobre o que isso representa nas pesquisas sobre a figura de Lina Bo Bardi nos dias de hoje. As ausências de fotografias, de registros, de histórias e de estudos sobre as trabalhadoras domésticas que, não apenas trabalhavam, como também residiam na Casa de Vidro revelam algumas questões fundamentais sobre os arquivos.
É importante ressaltar como essas narrativas que não fazem parte da lógica dos arquivos de arquitetura, permanecem na chave das anedotas pessoais de pessoas que frequentaram a casa. E isso se reflete no fato que as trabalhadoras domésticas, suas perspectivas, vivências e experiências dessa arquitetura não se tornam uma fonte de pesquisa. Nesse sentido, os estudos de Kilomba são de extrema relevância para pensar quais vozes e perspectivas são legitimadas dentro do arquivo histórico e, consequentemente, da História oficial.
O canteiro e os trabalhadores da construção do SESC Pompéia
O SESC Pompéia é uma obra extremamente relevante na trajetória de Lina Bardi, sobretudo no que concerne à sua construção. Ela sugere a montagem de um pequeno escritório dentro do canteiro de obras, no qual projetava diretamente em contato com as diversas equipes de engenharia, arquitetura, operários, consultores, técnicos e representantes do cliente. O projetar na obra incluiria o estético e o social, uma união entre o criativo e o construtivo, no qual as decisões se dariam a partir do embate e do diálogo com o universo real, nesse caso, dos desafios técnicos entre o desenho e a construção colocados no canteiro.
Verificar de perto as negociações, como diz Bardi, não era uma superficialidade, fruto de um capricho pessoal, mas determinante para o resultado final da obra, sua coerência e qualidade. A arquitetura seria uma experiência coletiva que carregaria consigo responsabilidades sociais. O arquiteto, nesse sentido, teria um papel importante na construção de uma nova sociedade e Lina Bardi empenha-se em uma “tomada de consciência” coletiva das pessoas e de seus valores. Esse princípio fundamental da criação coletiva apresentado em seus discursos significa a valorização da participação dos trabalhadores do povo, como parte da responsabilidade moral do arquiteto, na conscientização político-econômica e na própria produção da arquitetura.
É a partir desse entendimento que ela irá propor um modo de fazer arquitetura crítico, voltado para a realidade social em que se vivia. Convocará a humildade autoral em prol de um fazer a partir da vivência coletiva, na qual o homem livre seria o criador do seu próprio espaço e o arquiteto, ligado aos problemas políticos, sociais e econômicos, abdicaria da sua grandiosidade como autor de uma obra formal.
Com base em alguns relatos obtidos dos antigos colaboradores da arquiteta, a pesquisa de Renata Bechara demonstra a importância dos protótipos dentro do canteiro do SESC. Lina Bardi, usualmente, solicitava a realização de inúmeros modelos em escala 1:1, dos móveis, escadas, guarda-corpos, peitoril dos mezaninos, que eram testados antes de serem de fato construídos. Um exemplo interessante são os azulejos dos vestiários e piscina. Foi delegado aos operários que os posicionassem aleatoriamente, sem uma ordem pré-estabelecida ou um desenho rígido na composição. Seriam os trabalhadores da obra que determinariam o arranjo das peças, mas como relata Marcelo Ferraz, arquiteto estagiário que colaborou na obra, foram necessárias diversas orientações sobre essa paginação de piso para obter essa estética “sem acabamento” desejada. (BECHARA, 2017).
Se há ali certa autonomia e liberdade permitida para que os trabalhadores se expressassem e participassem (mesmo que só de algumas) decisões no canteiro de obras, é importante ressaltar que eram limitadas. Como aponta Bechara, “era dela a releitura dos valores culturais do povo brasileiro, ali representados pelos trabalhadores na obra. Eram delas as decisões; era dela o projeto” (BECHARA, 2017, p. 131).
Se seus discursos enfatizam a liberdade do homem comum e certa omissão do arquiteto, isso se relacionava mais com os usuários do que com a autonomia delegada aos operários. A presença da arquiteta no canteiro não significou liberdade ou emancipação dos trabalhadores, na medida em que centralizava na sua figura e de seus auxiliares as decisões projetuais.
O conceito de lugar de fala traz uma reflexão importante sobre os discursos como ferramentas de poder e controle que domina, organiza e dá sentido aos acontecimentos, perpetuando e autorizando determinadas verdades. Segundo Ribeiro, o ato de falar não se restringe a emitir palavras, mas sim ao poder de existir. O direito à voz está intrinsecamente relacionado com a localização social que uma pessoa ocupa dentro da sociedade e esse entendimento não exclui as vivências e perspectivas individuais ou mesmo determina uma consciência discursiva sobre esse lugar social, mas sim, questiona o ponto de vista único desse sistema que estrutura um imaginário social.
Da mesma forma que os grupos subalternizados não têm direito à voz, a autora argumenta que seus saberes não são reconhecidos por uma determinada epistemologia dominante. Ao refletir sobre quando e o quê é permitido a esses grupos falarem, ela também questiona a hierarquização dos saberes e o espaço de aceitação do conhecimento construído fora da academia. Esse conceito propõe romper com o silêncio instituído para aqueles que foram subalternizados, romper com a hierarquia daqueles que foram deslegitimados historicamente pela norma colonizadora (RIBEIRO, 2017).
A noção de lugar de fala se faz importante para se pensar na releitura dos valores culturais do povo brasileiro feita por Lina Bardi. Se a experiência dos acabamentos, com a realização de inúmeros protótipos testados e aprovados pela arquiteta, expressa o seu entendimento sobre a cultura popular brasileira, vale refletir sobre os limites que esse entendimento representa. Mais do que isso, discutir sobre as autorizações discursivas e hierarquias do saber é relevante para pensar os limites dos arquivos históricos e como determinadas narrativas se perpetuam em detrimento de outras. Muito se destaca sobre o processo de construção coletivo e colaborativo dessa obra, mas então onde estão as pesquisas que investigam também os trabalhadores do canteiro? Por que há tão poucos relatos desses operários nos arquivos sobre a obra do Pompéia? Novamente, a escassez de registros, relatos e depoimentos dos trabalhadores da construção do SESC indicam questões.
A aproximação entre os trabalhadores do canteiro de obras do SESC com as trabalhadoras domésticas da Casa de Vidro expõe as hierarquias e opressões sofridas por diferentes grupos. As ausências de determinados agentes nas narrativas oficiais, assim como nos arquivos históricos, revelam processos históricos que colocam esses grupos em posições subalternas. Mais do que isso, refletir sobre a ideia de lugar de fala na arquitetura visa pensar a possibilidade de outras existências e outros discursos construídos a partir de outros referenciais e geografias.
Ao pensar sobre as relações que a disciplina da arquitetura estabelece com o seu passado colonial, é importante refletir sobre a forma com a qual as histórias são contadas e recontadas. Não se trata apenas de reescrever o passado, mas também de pensar sobre o nosso presente e o futuro que almejamos.
Referências Bibliográficas
BECHARA, Renata Carneiro. A atuação de Lina Bo Bardi na criação do Sesc Pompéia (1977-1986). Tese (mestrado), FAUUSP. São Carlos, 2017.
GRINOVER, Marina; RUBINO, Silvana (orgs.). Lina por escrito: textos escolhidos de Lina Bo Bardi. São Paulo, Cosac Naify, 2009.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2019.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento – Justificando, 2017.
RUBINO, Silvana. Lugar de mulher: arquitetura e design moderno, gênero e domesticidade. Tese (Livre-docência), IFCH-UNICAMP. Campinas, 2017.
SANTOS, Simoni Adriani dos. Senhoras e criadas no espaço doméstico: São Paulo (1875-1928). Tese (mestrado), FFLCH-USP. São Paulo, 2015.
O ensaio apresentado é um desdobramento do trabalho de conclusão de curso realizado na Escola da Cidade em 2020 com orientação da professora Dra. Amália Cristóvão dos Santos.