O processo de expansão das cidades, com o surgimento de novas frentes de povoamento, ocasiona uma consequente migração de partes da população residente e dos setores produtivo e comercial para novas áreas. Esse fenômeno tem, como um de seus resultados, o esvaziamento funcional e demográfico de regiões consolidadas das cidades brasileiras, levando a uma concentração de terrenos e edificações ociosos, subutilizados e degradados.
Especialmente em áreas centrais de grandes cidades, localiza-se uma grande quantidade de imóveis públicos em estado de latência, o que gera o questionamento inicial deste texto: o que leva o poder público a não lhes dar uma utilização condizente com os objetivos do planejamento urbano, de forma a aproveitar a infraestrutura já existente nestas áreas?
A partir da observação desta situação em diferentes cidades e Estados brasileiros, constata-se que a recorrência da participação de imóveis públicos na formação de vazios urbanos se relaciona com a ausência de uma gestão eficaz do conjunto destes bens, os quais estão presentes não apenas nas regiões centrais, mas ao longo das cidades, em número cada vez maior.
É importante ressaltar que este aumento se deve a dois motivos principais: a facilidade com que novos imóveis passam a integrar o estoque público e, em paralelo, a dificuldade hoje existente para que deixem de integrá-lo, quando não utilizados devidamente.
Há vários mecanismos de entrada de imóveis no patrimônio público para além da própria aquisição direta: a legislação da maioria das cidades determina que, ao se realizarem novos loteamentos residenciais, um percentual dos terrenos seja doado ao Município; há também a possibilidade que, caso o proprietário tenha débitos tributários e mantenha seu imóvel em mau estado de conservação, este possa ser arrecadado pelo poder público, o que também ocorre quando alguém falece e não deixa herdeiros reconhecidos; a desapropriação, por sua vez, implica na transferência de um imóvel para o poder público, mediante indenização, quando há justificada utilidade ou necessidade pública, ou interesse social.
Estes imóveis são transferidos para a esfera pública sem, na grande maioria das vezes, haver um sistema de gestão que consiga monitorar as prioridades de destinação, ou empenhar a receita necessária para adequar o imóvel às necessidades do uso, levando, portanto, à situação de desocupação por décadas.
A profusão de mecanismos de entrada resulta, assim, na existência de bens públicos ociosos não apenas nas áreas esvaziadas e nas frentes de expansão da cidade, como também em lugares onde há grande demanda por utilização e adensamento populacional.
Nestas áreas, é frequente que mesmo os imóveis públicos em uso não alcancem os potenciais construtivos consolidados, ficando bem abaixo dos coeficientes de aproveitamento estabelecidos pelo planejamento urbano para incentivar que mais pessoas morem e trabalhem em lugares infraestruturados.
Como exemplo podemos citar a Rua Conde de Baependi, no bairro do Flamengo, Rio de Janeiro, que possui atualmente um coeficiente de aproveitamento de 3,5, com gabarito máximo de 11 pavimentos (incluindo garagem, cobertura e pavimento de uso comum). Dois imóveis nessa rua, de propriedade do Estado, são ocupados pelo Tribunal Regional Eleitoral e pela Superintendência de Transporte do Palácio da Guanabara e possuem apenas dois pavimentos. Eles são cercados por edifícios particulares de uso misto que, em maioria, alcançam os índices construtivos permitidos.
O quanto estes imóveis poderiam colaborar para o adensamento populacional, inclusive podendo integrar programa de habitação de interesse social em área infraestruturada caso, via concessão ou outro instrumento pertinente, mantivessem o uso público nos pavimentos inferiores e permitissem a construção de mais 9 pavimentos residenciais no lote?
O exemplo apresentado, segundo os especialistas em finanças públicas Dag Detter e Stefan Fölster, é recorrente quando se trata de imóveis estatais, pois há um problema conceitual com a determinação do verdadeiro valor da propriedade, já que a avaliação é feita sem se considerar o custo de oportunidade da terra. Eles exemplificam o fenômeno através do caso das forças armadas ao longo do mundo, que:
“[…] não raro usam prédios e terras com valor de mercado muito elevado para finalidades que poderiam, sem sombra de dúvida, estar localizadas em propriedades de menor valor. Exemplos recentes são os diversos quartéis na Área central de Londres, como o Chelsea Barracks, que está situado em uma das áreas residenciais mais caras [da cidade].”
Desafios na avaliação das propriedades se somam aos de cadastro, já que, com frequência, os registros dos imóveis e o próprio controle de sua utilização estão fragmentados e espalhados por diversas secretarias, departamentos, autarquias etc. Estas não compartilham informações entre si, nem com o cidadão, incorrendo em falta de articulação e de transparência. Somam-se casos de Estados e Municípios brasileiros que não sabem nem mesmo a quantidade exata de imóveis que possuem, muito menos a destinação a que se empregam. Segundo artigo do sociólogo Alberto Silva:
“Levantamento do governo do Amazonas em maio de 2019, estimou [possuir] 2.200 imóveis, dos quais 60% estariam na capital, Manaus. […] O Governo de Pernambuco está implementando, desde 2016, um projeto de catalogação de 7 mil imóveis que estima possuir (Sousa et al. 2016). […] Levantamento feito sobre os bens imóveis públicos do Rio Grande do Norte com dados de 2017 aponta que havia 3.520 imóveis. Destes, 1.215 estavam em uso, outros 15 tinham alguma destinação conhecida e os demais 2.289 estavam sem destinação definida.”
Já o Município do Rio de Janeiro lista 7021 imóveis próprios, dos quais, a partir de uma vistoria, observa-se que centenas já não existem mais, por terem sido demolidos para obras viárias. Questionada sobre a utilização atual de seus imóveis, a Secretaria Municipal de Fazenda informou não contar com um sistema que possa disponibilizar, de forma integrada, os dados relativos à sua utilização. O Município informa, ainda, existirem 577 edifícios e terrenos sob titularidade da Prefeitura do Distrito Federal e 575 sob titularidade do Antigo Estado da Guanabara, entidades políticas extintas, respectivamente, em 1960 e 1975 — o que atesta o estado da desatualização cadastral.
Realizando-se uma reflexão a partir dos dados apresentados, nos parece clara e urgente a necessidade de melhoria nos processos de gestão dos imóveis públicos no Brasil, em todas as esferas de governo. Como coloca Donald Marron, diretor de iniciativas de política econômica do Urban Institute:
“Os governos controlam suas dívidas até o último centavo de sua respectiva moeda, e no entanto sabem muito pouco a respeito de prédios, empresas, recursos naturais e outros ativos que possuem. […] Ao administrar melhor seus ativos, os governos podem melhorar a transparência, impulsionar o crescimento e fortalecer sua posição fiscal.”
O primeiro passo para uma destinação de uso mais coerente se relaciona obrigatoriamente com um esforço para a sua atualização cadastral, incluindo a implementação de sistemas de gestão integrados e georreferenciados. Tais sistemas devem, forçosamente, dar transparência aos contratos de utilização bem como aos processos de concessão ou alienação destes imóveis. Segundo Dag Detter e Stefan Fölster:
“O emprego de melhores metodologias contábeis ou orçamentárias por si só não garante automaticamente a melhor utilização desses ativos. Faz-se necessária também a organização profissional e consolidada, com intenção de administrá-los. A atual estrutura institucional em muitos países nos leva a fazer a seguinte pergunta: o governo está ao menos interessado em uma governança mais eficiente?”
A isso, complementamos que tal governança deve ter como foco a utilização dos imóveis públicos e das receitas a eles relacionadas de forma a contribuir com os objetivos do planejamento urbano, atendendo aos princípios e objetivos que no Brasil são estabelecidos pelos Planos Diretores.
A partir de um controle dos ativos que se tem em mãos, fica mais fácil planejar quais deles são prioritários para emprego em funções de interesse público e quais poderiam ser concedidos ou alienados para captação de recursos e aumento da capacidade de investimento das administrações públicas, o que pode colaborar para a recuperação do restante do estoque edificado e para melhorias na cidade e em seus equipamentos públicos.
Para a melhoria da gestão, paralelamente à atualização cadastral, é necessário buscar a desburocratização e atualização dos métodos de alienação. Isso não quer dizer deixar de obedecer aos pressupostos constitucionais, mas sim, atentar para mecanismos mais condizentes com o cenário socioeconômico atual.
Iniciativas interessantes vêm ocorrendo, por exemplo, na implementação de Fundos de Investimento Imobiliário (FIIs): para otimizar a gestão dos seus bens imóveis, o poder público pode transferi-los a um fundo, cujo administrador pode ser um banco público ou agente privado, havendo a possibilidade do ente governamental atuar como cotista, de forma parcial ou mesmo total. O administrador do fundo deve gerir os imóveis de forma a dar-lhes o melhor uso possível, realizando melhorias para alugá-los, arrendá-los ou mesmo vendê-los.
Paralelamente, vem se observando, a nível federal, estadual e municipal, um movimento para a implementação de métodos de alienação menos burocráticos, como a Proposta de Aquisição de Imóveis. Tal mecanismo, inicialmente implementado pela União e agora em processo de implementação no Rio de Janeiro, possibilita que qualquer pessoa física ou jurídica manifeste interesse na aquisição de um imóvel público, mediante apresentação de um laudo de avaliação privado. A partir da provocação, cabe aos governos, dentro de um prazo e de acordo com seu critério de oportunidade e conveniência, aceitar ou recusar. Caso aceite, o governo inicia o processo de licitação, via concorrência, segundo os trâmites legais.
Este tipo de mecanismo é importante, pois, atualmente, imóveis públicos só podem ser vendidos a partir de uma iniciativa dos governos — o que é complicado, visto que boa parte deles não têm ciência do total de imóveis que possuem e dependem de equipes internas para realização das avaliações, nem sempre condizentes com os valores de mercado.
É fundamental que se equilibrem os mecanismos de entrada e saída de imóveis da esfera pública. A alienação de próprios públicos não deve ser tratada como uma mera questão de arrecadação de receita, mas sim, de forma integrada, como estratégia de combate aos vazios urbanos provocados ou fortalecidos pela (falta de) ação do poder público.
Via Caos Planejado.