A mudança do clima nas cidades brasileiras é um desafio de adaptação e equidade. Inundações, alagamentos, deslizamentos, secas e ondas de calor são cada vez mais frequentes e intensas. Quando atingem o meio urbano, geralmente afetam mais quem é mais pobre. Cidades precisam se adaptar com urgência, a começar pelas áreas e populações mais vulneráveis. Implementar soluções baseadas na natureza de forma sistêmica pode contribuir para a redução de desastres relacionados às mudanças do clima e ainda gerar múltiplos benefícios para a economia, o ambiente e as pessoas.
As cidades são especialmente vulneráveis aos impactos da crise climática. Os centros urbanos são ambientes impermeáveis, construídos de modo a controlar e conter a natureza: as chuvas, a radiação solar, os rios. Este modelo de urbanização trouxe as cidades até aqui, como responsáveis por 70% das emissões de gases de efeito estufa.
No Brasil, o desafio é ainda mais complexo por conta da lacuna histórica de acesso a infraestruturas e serviços básicos, como saneamento e habitação, e de sua implementação desigual no território. Essas iniquidades não são substituídas, mas exacerbadas pela pressão da crise do clima sobre as cidades brasileiras, onde vive 86% da população. É preciso, simultaneamente, fechar essas lacunas e adaptar as cidades.
A reintegração da natureza à paisagem urbana de forma sistêmica é parte da resposta a esse desafio. Além de permitirem sanar o gap de infraestrutura de forma mais sustentável, as chamadas soluções baseadas na natureza (SBN) são uma estratégia promissora de adaptação climática e equidade. Com planejamento adequado, as SBN podem reduzir vulnerabilidades, evitar perdas e gerar resiliência para comunidades historicamente desassistidas. Como parte da infraestrutura urbana, ecossistemas íntegros ajudam as cidades a se proteger de inundações, ondas de calor e outros impactos. Ainda promovem bem-estar humano, proteção dos recursos naturais e representam uma oportunidade para o Brasil avançar em uma retomada verde da economia.
Crise climática já impacta cidades brasileiras
Os impactos da crise climática não vão acontecer – eles já estão acontecendo. Dados do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) evidenciam mudanças como o aumento das temperaturas e das chuvas nos últimos sessenta anos. Na cidade de São Paulo, por exemplo, a ocorrência de temporais acima de 80 milímetros passou de três dias por ano entre 1961 e 1970 para nove dias por ano entre 1971 e 1990, e 16 dias por ano entre 1991 e 2020.
A ciência tem demonstrado que os impactos climáticos já estão mais severos e generalizados do que se esperava e seu agravamento será inevitável no curto prazo. É preciso que adaptação às mudanças climáticas e mitigação de gases de efeito estufa ocorram em paralelo, e muitas soluções baseadas na natureza – como a restauração de florestas e de manguezais – abordam esses dois desafios simultaneamente.
O que são soluções baseadas na natureza
Soluções baseadas na natureza são soluções inspiradas e apoiadas pela naturezaque proporcionam simultaneamente benefícios ambientais, sociais e econômicos. A União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), organização que cunhou o termo, define as SBN como “ações para proteger, manejar de forma sustentável e restaurar ecossistemas naturais e modificados, que abordam desafios sociais de forma efetiva e adaptativa, promovendo o bem-estar humano e benefícios para a biodiversidade”.
Em meio urbano, alguns exemplos de SBN são jardins de chuva, telhados verdes, parques lineares e fluviais, renaturalização de rios e restauração de encostas. Em um contexto de clima em mudança, intervenções como essas contribuem para a drenagem das chuvas e recarga dos aquíferos; regulação da temperatura e redução do calor urbano; e redução de erosão e prevenção de deslizamentos. No entorno das cidades, a restauração de florestas contribui para a quantidade e qualidade da água que chega aos reservatórios, bem como para reduzir o risco de enchentes e inundações.
Serviços ecossistêmicos são elemento central das SBN
As SBN são parte de uma gama de abordagens para adaptação que têm a natureza como elemento central. Termos como adaptação baseada em ecossistemas, infraestrutura verde, infraestrutura verde-azul, infraestrutura natural, entre outros, também têm se difundido para tratar de abordagens relacionadas ou similares. Essas soluções geram uma cadeia de impactos positivos porque os ecossistemas que protegem, recuperam, manejam e criam, prestam múltiplos serviços aos seres humanos e à vida no planeta.
SBN urbanas e sua contribuição para a adaptação
A seguir, listamos alguns exemplos de SBN urbanas e seus benefícios – sobretudo para adaptação climática e resiliência. Essas soluções, no entanto, têm muitos outros impactos positivos, como detalhamos acima. É importante que todos sejam levados em consideração para uma avaliação de custo-benefício assertiva.
- Telhados verdes: o recobrimento de telhados com solo e vegetação pode evitar alagamentos ao retardar a entrada da água da chuva no sistema de drenagem. Regula a temperatura interna das edificações e ajuda a atenuar o impacto do aumento da temperatura e de ondas de calor sobre a população. Projeta-se que o número de equipamentos de refrigeração quase triplique até 2050.
- Jardins de chuva: jardins em depressões escavadas no solo, que acomodam a água da chuva proveniente do escoamento superficial. São utilizados em calçadas, canteiros centrais e rotatórias. A água pode ser purificada antes de infiltrar no solo e recarregar o aquífero. Outras SBN empregam princípios similares, como bacias de detenção, trincheiras de infiltração e biovaletas, e podem ser usadas de forma combinada, criando um sistema de drenagem sustentável complementar à infraestrutura de drenagem convencional.
- Agricultura urbana: hortas comunitárias podem conferir função social a terrenos ociosos e gerar segurança alimentar, renda e resiliência para as comunidades. Técnicas adequadas recuperam o solo, favorecendo a infiltração da água e a biodiversidade. Na Argentina, a agricultura urbana se tornou política pública para resiliência social, econômica e climática.
- Parques lineares: um parque linear é um sistema contínuo de áreas verdes ao longo de elementos lineares da paisagem, como rios, córregos e ruas. Pode incluir a renaturalização dos corpos d’água antes canalizados, recuperando as margens e áreas de várzea, que alagam em momentos de cheia ou após chuvas intensas. Contribuem para o escoamento e retenção natural das águas, além, é claro, do aumento das áreas verdes na cidade.
- Restauração da vegetação nativa em morros: recuperar áreas degradadas, em especial topos e encostas de morro, contribui para a estabilidade do solo e a mitigação da erosão e de deslizamentos.
- Restauração da vegetação costeira: a restauração de ecossistemas costeiros, como manguezais e recifes de coral, é uma medida de adaptação à elevação do nível no mar e a tempestades mais frequentes, uma vez que esses ecossistemas amortecem o impacto das ondas e protegem comunidades de inundações. Também fortalece a resiliência de populações que dependem desses ecossistemas como meio de subsistência. Manguezais também são uma medida relevante de mitigação, já que esses ecossistemas retiram até cinco vezes mais carbono da atmosfera do que florestas.
- Corredores ecológicos: são espaços verdes lineares que conectam fragmentos de vegetação, favorecendo a movimentação da fauna e o fluxo gênico das populações. Corredores verdes melhoram as condições de drenagem e recarga de aquífero e contribuem para atenuar o calor. Medelín implementou uma rede de 36 corredores em vias e corpos d'água importantes. A temperatura no entorno caiu até 4°C.
Esta não é uma lista exaustiva de soluções baseadas na natureza que contribuem para a adaptação das cidades. Organizações como o Banco Mundial, o CGEE e o Instituto de Pesquisas Tecnológicas oferecem catálogos, guias e estudos de caso de SBN, que destacam suas funções e benefícios e orientam o planejamento adequado.
O que não é SBN
Nem toda infraestrutura sustentável ou cujo funcionamento envolve processos naturais é uma SBN. Como exemplos de soluções sustentáveis que não são SBN, pode-se citar painéis de energia fotovoltaica, aerogeradores e cisternas. Para serem consideradas SBN, as soluções devem ser baseadas diretamente em ecossistemas funcionais e, segundo muitas das organizações que estudam a abordagem, precisam sempre resultar em impactos positivos para a biodiversidade e a integridade dos ecossistemas.
Por que implementar SBN para adaptação em cidades
Planejar as cidades com base apenas em infraestrutura cinza pode privar as populações dos múltiplos serviços fornecidos por ecossistemas naturais, além de acelerar a degradação desses serviços ecossistêmicos. Isso inclui serviços diretamente relacionados a adaptação e mitigação climática, como a moderação de eventos extremos, a captura de carbono e a regulação do ciclo hidrológico.
SBN são concebidas e geridas para fornecer esses e outros serviços ecossistêmicos. Por gerarem impacto positivo em áreas tão diversas, SBN são uma oportunidade para governos locais e regionais. Ao trabalharem em conjunto, diferentes departamentos podem atingir metas com um custo inferior à abordagem tradicional, em que desafios diferentes são enfrentados com soluções isoladas.
Por exemplo: um parque linear pode ter como função principal evitar inundações ao recuperar a permeabilidade do solo em uma ampla área. Mas traz múltiplos cobenefícios. O aumento da cobertura vegetal contribui para reduzir o calor e para a mitigação. Constitui um corredor verde para a fauna, além de um espaço para lazer e atividade física. E gera ganhos econômicos ao promover a melhoria da saúde, o turismo e atividades comerciais.
Estudos indicam que a infraestrutura baseada na natureza pode custar 50% menos do que alternativas de infraestrutura cinza equivalentes, e gerar valor adicional de 28% com benefícios como a redução da poluição, captura de carbono, promoção de espaços para o lazer e estímulo ao turismo.
Onde priorizar SBN urbanas para adaptação
SBN podem ser implementadas em diferentes escalas. Em uma rua ou bairro, podem contribuir para o escoamento das chuvas em pontos de alagamento. Mas também podem ser parte da infraestrutura na escala da cidade, compondo uma rede de SBN combinadas com infraestruturas convencionais. Essa abordagem tem se difundido como caminho para adaptar os centros urbanos aos impactos climáticos cada vez mais intensos e frequentes.
Priorizar áreas de maior exposição e vulnerabilidade ao planejar e implementar SBN permite reduzir os riscos localizados a que populações historicamente desassistidas estão expostas, aumentar a resiliência e ao mesmo tempo fornecer acesso a novos serviços e oportunidades. É este o caminho a seguir em cidades desiguais como as brasileiras. O planejamento das soluções deve ser feito com intensa participação das populações locais, para que se identifiquem as áreas prioritárias, os obstáculos e facilitadores para implementação.
Maximizar os benefícios das SBN como estratégia de adaptação, no entanto, depende de uma abordagem na escala da paisagem, que proteja, restaure e gerencie ecossistemas urbanos, rurais, costeiros e marinhos. Isso porque a integridade e conectividade dos ecossistemas é chave para a manutenção da biodiversidade e para a resiliência das próprias SBN a impactos climáticos futuros– como inundações, secas e incêndios – e consequentemente, para reduzir riscos climáticos para as pessoas e a economia.
Engajamento local é chave para impacto social positivo
A intervenção de SBN deve abordar desafios sociais de forma efetiva. A melhor forma de identificar os desafios mais urgentes é por meio de um processo de consulta transparente e inclusivo, que envolva as partes interessadas, sobretudo as comunidades a serem impactadas pela intervenção.
A participação social ajuda a garantir uma distribuição equitativa dos benefícios. Na busca por cidades mais resilientes e inclusivas, deve-se considerar a maior vulnerabilidade de grupos como mulheres, povos indígenas, idosos, pessoas que vivem na pobreza, pessoas com deficiência e comunidades que dependem diretamente dos recursos naturais ou estão fisicamente expostas aos impactos climáticos. Um processo de participação contínuo ao longo da implementação e monitoramento dos projetos garante que a estratégia possa ser ajustada para resultados ambientais, sociais e econômicos mais assertivos.
Governos têm a oportunidade de aproveitar planos e processos já existentes, e espaços deliberativos constituídos, como os comitês e conselhos municipais, para incorporar a informação e discussão dessas soluções no combate aos desafios que as comunidades vulneráveis enfrentam.
Dar escala à implementação de SBN ainda é desafio
Incorporar as SBN às políticas e planos que regem o desenvolvimento urbano, a resiliência e a ação climática dentro e além dos limites da cidade é crucial para que as SBN constituam estratégias efetivas de adaptação e resiliência. No entanto, é um desafio institucional unir diferentes órgãos da administração municipal em torno do planejamento, projeto e implementação dessas soluções. Embora os benefícios das SBN sejam evidentes para órgãos de meio ambiente, por exemplo, são menos difundidos entre áreas técnicas de infraestrutura. Cidades têm conseguido superar essa barreira qualificando a governança e as políticas. É o caso de Barcelona, que criou um órgão de ecologia urbana, que coordena a atuação das secretarias municipais em linha com os objetivos ambientais e climáticos da cidade.
O aspecto inovador também significa que não há dados abundantes ou metodologias consolidadas para detalhar os impactos das soluções baseadas na natureza voltadas para adaptação, ainda que o cenário venha mudando. Segundo estudo recente do WRI, aprimorar o monitoramento da eficácia das SBN para adaptação é importante para aumentar o acesso de projetos do tipo a financiamento. No Brasil, é fundamental que mais cidades testem as SBN em seus próprios contextos, compartilhem os resultados e inspirem outros municípios a abraçarem a natureza como parte da solução dos diversos desafios urbanos que o país enfrenta.
Destravando o financiamento à infraestrutura sustentável
Um desses desafios é o financiamento de infraestrutura. O cenário fiscal apertado das cidades brasileiras torna urgente destravar o acesso dos governos locais a recursos. Embora haja um fluxo crescente de financiamento climático disponível no mundo, apenas 1,5% desses recursos foi para SBN para adaptação em 2018.
Em 2021, um estudo do WRI Brasil, GIZ e Ministério do Desenvolvimento Regional, apontou alguns dos entraves ao acesso das cidades ao financiamento climático. As barreiras incluem as baixas capacidades fiscal e técnica nas cidades, o apoio ainda incipiente dos bancos nacionais e regionais de desenvolvimento à infraestrutura urbana de baixo carbono, e um ambiente regulatório desfavorável à participação do capital privado por meio da emissão de títulos verdes e climáticos.
Superadas essas barreiras, as SBN constituem uma oportunidade de acessar recursos e conciliar a ampliação do acesso a infraestrutura e serviços com a ampliação da resiliência urbana, a promoção de emprego e renda e a redução da desigualdade. O Brasil está bem posicionado para aproveitar esse tipo de financiamento, pois, entre outros aspectos, possui diversas instituições financeiras de desenvolvimento com atuação consolidada no fornecimento de infraestrutura. Uma das recomendações é prover capacitação técnica nas cidades para elaboração de bons projetos sustentáveis. Ampliar e acelerar a capacitação em projetos para adaptação baseada em ecossistemas pode contribuir para mudar o paradigma atual de formulação de políticas públicas e projetos pelo setor público no Brasil.
SBN estão em ascenção – é preciso acelerar
No mundo todo, governos, sociedade civil e setor financeiro têm dado passos para promover a incorporação da natureza como parte do desenvolvimento e da transformação das cidades. A iniciativa Cities4Forests busca catalisar apoio político, social e econômico entre os governos municipais e habitantes das cidades para integrar as florestas internas, próximas e distantes nos planos e programas de desenvolvimento. Das 81 cidades-membro, dez são brasileiras.
No Brasil, SBN são um tema emergente. A Aliança Bioconexão Urbana une oito organizações nacionais, incluindo o WRI Brasil, para acelerar a implementação de SBN em cidades brasileiras. O governo brasileiro e a Comissão Europeia estabeleceram um diálogo intersetorial que gerou conhecimento sobre a oportunidade das SBN em cidades. A Fundação Grupo Boticário, que atua no financiamento de SBN, também tem publicações sobre o tema. Todos esses esforços têm contribuído para a produção de conhecimento sobre essas soluções, a identificação dos desafios e a construção de soluções para que ganhem escala.
Pelo impacto positivo que representam para a resiliência, a adaptação e a mitigação das mudanças do clima, a biodiversidade, as pessoas e a economia, é preciso acelerar a implementação das SBN. Moderar ou evitar danos causados pelos impactos da mudança do clima é um imperativo humano, dado o impacto desproporcional de eventos extremos sobre populações historicamente desassistidas. Um imperativo econômico, já que investir em resiliência traz benefícios múltiplos. E um imperativo ambiental, já que o clima em mudança acelera a degradação da natureza e dos serviços ecossistêmicos dos quais a humanidade depende.
Mudanças climáticas são o problema de agora somado aos problemas de sempre. As soluções baseadas na natureza são parte de um conjunto estratégico de ferramentas com as quais as cidades contam para dar o ritmo e a escala necessários à mitigação e adaptação climáticas. Acelerar sua implementação pode ajudar o país a reduzir vulnerabilidades e desigualdades e melhorar a qualidade de vida urbana.
Via WRI Brasil.