O cômodo feito para os trabalhadores "descansarem", como é dito no discurso atual em que se tenta camuflar a origem e o significado do conhecido “quarto de serviço”, "quartinho de empregada’’ ou "quartinho da bagunça’’ que normalmente é encontrado próximo a áreas de trabalho da morada contemporânea, tem um significado histórico, cultural, social e econômico dentro do contexto atual que pouco é questionado.
Se traçarmos uma linha do tempo deste ambiente chegaremos à sua primeira materialização no Brasil na época da colônia e império — as chamadas senzalas, que nada mais eram o complemento da casa-grande local onde viviam os proprietários dos grandes latifundiários da época. A senzala funcionava como ambiente para “abrigar” os escravos que serviam à casa-grande, e esse ambiente quase sempre se encontrava segregado de alguma forma, seja na parte externa da casa ou em seu porão, com condições de construção, conforto, acabamentos e salubridade inferiores ao da casa-grande. Assim era delimitada essa relação de patrão e servidor que se prolonga até os tempos atuais. Na ilustração de Cícero Dias do Engenho Noruega, localizando em Pernambuco, é possível notar a segregação da senzala (à direita) em relação à casa-grande (à esquerda): esta, por aspectos dimensionais e qualidade construtiva, se mostra hierarquicamente superior.
Após a abolição da escravatura e o declínio da monarquia instaurada no Brasil, as cidades começam a crescer exponencialmente e as tecnologias sanitárias a evoluir. As casas-grandes dos engenhos começam a dar lugar às mansões e casarões urbanos naquelas que se tornaram as grandes cidades brasileiras. A senzala deixa de existir e dá lugar à edícula, localizada no fundo do lote, que tinha como finalidade abrigar os prestadores de serviços doméstico, mas que ainda era enraizada nas lógicas segregacionais das casas-grandes dos engenhos.
Geralmente a edícula tinha quartos e banheiros, a depender do número de prestadores de serviço e uma saída independente para a área externa do lote. Esse ambiente rapidamente é incorporado ao interior da casa, mas sempre localizado próximo às áreas de serviço, como a cozinha, que são cômodos mais desvalorizados ou tratados como os menos importantes dentro da morada. À partir da década de 1930, esses padrões passaram a ser reproduzidos nos apartamentos, embora em área reduzida, mas mantendo os resquícios da época colonial-imperial. Localizados próximos às áreas de serviço, os quartinhos de empregada muitas das vezes apresentavam condições piores que às das edículas, carecendo de ventilação e luz natural devido à ausêmcia de janelas. A presença desse ambiente também era um indicativo do poder aquisitivo da família, pois o número de quartos de empregada indicaria quantos empregados domésticos estariam trabalhando simultaneamente na moradia (VIANA, 2016).
O quartinho atualmente
A partir também de 1930, surge o avanço da tecnologia dos equipamentos de cozinha, dos alimentos industrializados e os produtos de limpeza que fecilitaram os serviços domésticos nas residências e acabam por diminuir a quantidade de prestadores de serviço dentro dos apartamentos e casas. Mesmo assim, o ambiente persiste nas residências construídas após este período. A regularização da profissão vem em 1972, com a Lei presidencial nº 5.859, e em 1988 são garantidos outros direitos, como o repouso semanal remunerado. Até então, era comum que os empregados domésticos dormissem durante toda semana em seus trabalhos e voltassem durante os finais de semana para seu lares. Havia casos, ainda, em que o empregado vinha de outro Estado em busca de oportunidades de emprego e acabava por morar integralmente na residência onde trabalhava.
O tempo de deslocamento que tem como um de seus motivos a segregação econômica presente nos bairros das cidades (outra característica herdada dos tempos coloniais), onde existem bairros com a renda per capita altíssima e bairros pobres, acaba legitimando por parte dos patrões os “quartinhos de empregada”, pois assim o funcionário não teria que passar horas se locomovendo para seu lar. Essa justificativa contribui para o aumento das horas de trabalho dos empregados domésticos, que não teriam uma jornada definida, trabalhando muitas horas a mais e em qualquer horário que fosse de necessário ao patrão. Em 2013, foi aprovada a proposta de Emenda Constitucional nº 478, que determinou o pagamento de horas extras e o registro dos funcionários que trabalham mais de 3 vezes por semana na residência. Em 2015, foi garantido também direito de adicional noturno.
A combinação desses fatores resultou na diminuição desses profissionais, que passaram então a trabalhar como diaristas, ou seja, pagos pelo dia ou hora trabalhada. O quartinho, que ao londo da história passou por diversas mudanças, agora se encontra subutilizado, em sua grande maioria usado para guardar bagunças das residências contemporâneas (MORAIS, 2019).
O "quartinho" presente nas Melhores Casas do ArchDaily
Com todas as considerações anteriores, foi analisado o artigo As melhores casas de 2021 publicado no ArchDaily Brasil. O intuito é analisar quantas dessas casas continham o ambiente e de qual forma ele estava disposto nos projetos. Também é importante mostrar que mesmo casas premiadas denominadas como as “melhores do ano” trazem consigo esse ambiente que é carregado de significados do passado colonial brasileiro.
Das 50 casas apresentadas no artigo (28 no Brasil e 22 em outros países), 12 continham o quartinho de empregada ou edícula. Destas, dez eram brasileiras e duas internacionais. Os ambientes foram encontrados em tamanhos e disposições variadas. A presença do ambiente é corriqueira nas casas de padrão alto, e aparece sempre ao lado de áreas de serviço, como cozinha e lavanderia, e com um tamanho pequeno em relação aos outros ambientes da casa.
Foram analisadas cinco residências que continham o ambiente, quatro das quais no Brasil:
Casa Maestro / AR Arquitetos (Brasil)
Na Casa Maestro é possível verificar o quartinho próximo às áreas de serviço da casa, totalmente segregadas dos demais ambientes. Enquanto esse cômodo espreme-se tentando achar espaço entre a garagem e o corredor de acesso das áreas de serviço, demais ambientes esbanjam integração e metragem quadrada com pouquíssimos elementos que possam interromper sua fluidez. Curiosa é a comparação do tamanho do quartinho com o tapete apresentado na planta.
Casa Montemor / Brasil Arquitetura (Brasil)
Na residência projetada pelo Brasil Arquitetura, assim como no projeto anterior, o quartinho se encontra próximo às áreas de serviço da casa. É possível notar a tripartição burguesa na casa, com a área íntima, social e de serviço claramente definidas. Diferente do projeto anterior, este tem a cozinha separada da área social. Da mesma forma, o quartinho se mantém na área de serviço, “camuflado” atrás da cozinha, seu único acesso possível. Novamente, é importante destacar o tamanho deste ambiente em relação aos objetos decorativos da casa: o tapete da sala mais uma vez apresenta uma dimensão maior que a do quartinho.
Casa Colina / Bloco Arquitetos (Brasil)
Na Casa Colina, do escritório brasiliense Bloco Arquitetos, também é possível notar uma separação dos ambientes por uso, mas agora eles se mesclam com a abertura de portas que acabam por integrar os ambientes, mudando-os. O quartinho de empregada se encontra novamente em posição desprivilegiada em relação aos outros ambientes. Seu acesso se dá pela garagem, dispensando passagem pelos ambientes mais nobres da casa. Novamente, o ambiente luta para encontrar espaço entre a garagem e a área de serviço.
Casa JCA / Bernardes Arquitetura (Brasil)
A Casa JCA, projetada pelo escritório de arquitetura Bernardes Arquitetura, se organiza em dois níveis, um deles chamado subsolo. É nele que se encontra o quartinho de empregada, junto às áreas de serviço e uma sala de cinema. Nesse caso, o ambiente está distante da cozinha, mas próximo à lavanderia e à garagem, com acesso pela área externa, quase que de maneira exclusiva. O programa principal da casa acontece no piso superior. Nesse projeto, a diferença de nível funciona como elemento segregador.
Residência Ara Pytu / José Cubilla (Paraguai)
É interessante notar que esse ambiente não aparece apenas no Brasil. No caso da residência Ara Pytu, o quartinho aparece próximo às áreas de serviço. O ambiente não tem acesso direto à casa, obrigando o prestador de serviço a passar pela lavanderia para conseguir acessar os outros ambientes. É importante destacar que o Paraguai também passou por intenso processo de colonização.
Conclusão
O ambiente que passou por diversas modificações através dos séculos vem caindo em desuso em decorrência do surgimento de novas tecnologias importadas para dentro das casas e de leis trabalhistas que garantem aos prestadores de serviço condições mais justas de trabalho. Entretanto, por mais que se veja uma diminuição desse programa em projetos construídos nas últimas décadas, ainda é comum encontrá-lo em residências contemporâneas, principalmente em casas de alto padrão. Quase sempre em áreas desprivilegiadas da casa e, por vezes, sem atender às normas de iluminação, ventilação e dimensões mínimas.
O arquiteto e urbanista tem papel fundamental na disseminação desse ambiente — ou sua erradicação. É importante que profissionais e clientes compreendam o verdadeiro significado do "quartinho" e como ele pode afetar a vida de uma pessoa. Então, como arquitetos, devemos deixar de projetar casas que tenham esses ambientes? Após realizar este estudo, digo que sim. Trata-se de uma questão ética e racial materializada em um cômodo que está diretamente ligado a um passado colonial e segregador. Como profissionais e agentes diretos de mudanças sociais, devemos colocar questões como estas sempre à frente de pressões e tendências do mercado.
Bibliografia
- DiEESE, Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconomicos. Dados atualizados do IBGE.
- FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Rio de Janeiro, 1933.
- MELLO, Bruno César Euphrasio.E O NEGRO NA ARQUITETURA BRASILEIRA? ”. In: Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 145.01, Vitruvius, jun. 2012.
- MORAIS, Fernando de Oliveira; OS QUARTOS DE EMPREGADA NOS APARTAMENTOS MODERNISTAS NA ORLA DA - CIDADE DE JOÃO PESSOA (PB). 2019
- MOREIRA, Susanna. AS MELHORES CASAS DE 2021. In: ArchDaily.
- SANTOS, Suellen Dayse Versiani. A CASA BRASILEIRA DO SÉCULO XIX E SEUS DESDOBRAMENTOS NA PRODUÇÃO RESIDENCIAL. 2011
- TIEGHI, Ana Luiza; GAVRAS Douglas. Quarto de serviço resiste nos imóveis de luxo, mas tem dias contados, 2022.
- VIANA, Maria Boratto Xavier; TREVISAN, Ricardo. O “QUARTINHO DE EMPREGADA” E SEU LUGAR NA MORADA BRASILEIRA. Porto Alegre, 2016.
* Este artigo foi produzido por Erik Batista, aluno de graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília para a disciplina Arquitetura e Urbanismo da Atualidade, ministrada pelo arquiteto, pesquisador e professor Paulo Tavares.