Moradas Infantis em Canuanã: encontro entre arquitetura vernacular e tecnologias industriais

O premiado projeto Moradas Infantis em Canuanã foi desenvolvido pelos estúdios de arquitetura Aleph Zero e Rosenbaum entre 2016 e 2017. Localizado em uma escola rural mantida durante quase 40 anos em Formoso do Araguaia, no Tocantins, atende cerca de 842 alunos em um regime de internato. Os arquitetos foram escolhidos para requalificar o alojamento, formado por duas vilas idênticas, uma para mulheres e outra para homens, propostas para 270 alunos cada uma, e elaborar uma solução arquitetônica que organizasse o espaço habitacional dos estudantes em uma área escolar.

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Por se tratar de um contexto desafiador, entre terras indígenas, em local de difícil acesso, o projeto se baseou sobretudo no encontro entre arquitetura vernacular e as altas tecnologias industriais, por meio de um processo participativo – de diálogo com os alunos e seus professores – para a elaboração de um desenho de quase 25.000 metros quadrados para cada um dos dois blocos. Entre as estruturas pré-fabricadas em madeira laminada, produzidas pela Ita Construtora em São Paulo, e transportadas para Canuanã, existe a tentativa de ressaltar as narrativas locais por meio da criação coletiva e da incorporação de técnicas vernáculas.

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Localização e contexto. Imagem elaborada pelos autores

Às margens do Rio Javaés, no município de Formoso do Araguaia, no Tocantins, está o Colégio Dr. Dante Pazzanese, também conhecido como Fazenda-escola Canuanã. Parte desse complexo, a residência estudantil Canuanã foi projetada pelos estúdios de arquitetura Aleph Zero e Rosenbaum em 2016/17. O projeto foi encomendado pela Fundação Bradesco, braço filantrópico de um dos maiores bancos do país, que financia e administra 40 escolas gratuitas em todo o Brasil.

A fazenda-escola está localizada no lado oposto da fronteira sudoeste do Parque Indígena do Araguaia, a 300 km de Palmas, capital do Tocantins, à qual está ligada por uma estrada de difícil acesso. A região está localizada na intersecção de biomas como a Floresta Amazônica, o Pantanal e o Cerrado e mantém altas temperaturas durante todo o ano. A escola funciona como internato, atendendo cerca de 872 alunos desde a educação infantil até o curso técnico em agricultura. Na região, as distâncias são muito longas e o deslocamento é difícil, impossibilitando deslocamentos frequentes entre a casa e a escola. A maioria dos alunos chega ao internato aos 7 anos e passa boa parte da infância no espaço escolar.

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Moradias Infantis / Rosenbaum® + Aleph Zero. Foto © Leonardo Finotti

A delicadeza do contexto, um internato isolado no interior do Tocantins, em uma zona de preservação marcada por conflitos territoriais, disputas entre fazendeiros, posseiros e indígenas (SEGAWA, 2018), é um evidente desafio que marca o projeto desde a escolha dos arquitetos. Apesar de estar estabelecido na cidade de São Paulo, o escritório de Rosenbaum já havia trabalhado com comunidades tradicionais em seu projeto “A Gente Transforma”, que busca gerar transformações por meio de pesquisas e criações coletivas (ROSENBAUM, 2016). Tendo isso em mente, pode-se dizer que a primeira premissa do projeto foi que ele fosse construído a partir do diálogo.

A aproximação entre os arquitetos e Canuanã se deu por meio de duas viagens de 15 dias cada, durante as quais visitaram o complexo escolar, visitaram fazendas, cidades e casas de famílias de alunos. Pedro Duschenes (um dos associados do Aleph Zero) conta, em conferência que proferiu no CAU/PR em 2019, que essas visitas foram importantes para propor tipologias e elementos da construção local, como fechamentos em adobe, aberturas geradas pelo posicionamento de intertravamento de tijolos. e o uso extensivo de varandas, que foram adotadas no projeto.

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Moradias Infantis / Rosenbaum® + Aleph Zero. Foto © Leonardo Finotti

Além das visitas, foram realizadas diversas reuniões com professores, diretores, pais de alunos e funcionários agrícolas para discutir o funcionamento da escola, a localização dos programas e a relação dos alunos com o espaço. Fizeram apresentações e participaram de oficinas nas quais foram discutidas direções por meio do desenho, maquetes, conversas e do próprio corpo. Segundo Rosenbaum, todo o estudo preliminar do projeto foi feito durante a estadia em Canuanã, a partir do que as crianças apresentaram durante o dia. A necessidade de desmistificar o status da escola como espaço de aprendizagem e transformá-la em um território digno de um lar, por meio da elaboração de um elemento único (uma grande direção) que garanta o acolhimento e a individualidade dos alunos, mas estimule a convivência, foram os principais pontos levantados, que nortearam o desenvolvimento do projeto (DUSCHENES, 2019).

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Planta de situação. Desenhos elaborados pelos autores

O projeto consiste em dois blocos duplos, um feminino e um masculino, propostos para 270 alunos cada, implantados nas margens do complexo, reestruturando em geral a ocupação da fazenda. As antigas acomodações localizavam-se no centro, bem próximas aos espaços das salas de aula. Além da noção de "caminhar da casa para a escola", o distanciamento efetivo desses programas foi o início de um plano mais amplo de setorização da fazenda, que prevê a criação de um eixo educacional central, cercado por residências de alunos, professores e funcionários, consecutivamente, possibilitando uma melhor leitura espacial e funcional da escola (UTRABO, 2017).

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Moradias Infantis / Rosenbaum® + Aleph Zero. Foto © Leonardo Finotti

Os 45 quartos de cada bloco foram organizados em 9 partes no térreo, localizadas em torno de 3 pátios que servem como espaço de socialização entre os alunos e jardins com canteiros e espelhos d'água, que aliviam a temperatura do ambiente. Cada dormitório tem 6 camas, banheiro compartilhado e uma pequena lavanderia. A nova configuração das casas foi pensada pelas crianças para proporcionar maior individualidade. Acima dos quartos, de uma altura de 9 metros, estabelece-se um piso habitável, equipado com espaços de expressão corporal, salas de estudo, televisão e jogos. O pavimento de atividades é composto por diversos terraços interligados por largas passarelas, com ambientes protegidos apenas por leves ripados de madeira.

Se os quartos foram reorganizados para garantir momentos de privacidade, o restante do complexo dá lugar a uma ampla gama de atividades imaginadas pelas crianças. A socialização é intensificada pelos espaços de uso livre protegidos pela cobertura que repousa sobre todo o conjunto, proporcionando sombra e unidade. A racionalidade do projeto é dinamizada pelas diferentes relações de altura proporcionadas pelas passarelas e varandas, que reduzem a escala e a vastidão.

Este projeto foi realizado devido à união entre as demandas espaciais e as decisões de construção. Devido ao difícil acesso ao terreno, os arquitetos optaram por uma obra pré-fabricada, que resolveu questões de tempo e viabilidade económica, mas resultou numa obra bastante diferente da dinâmica construtiva vernacular.

Todas as peças estruturais foram feitas pela Ita Construtora em São Paulo e transportadas para Canuanã, o que exigiu uma grande organização em termos de logística. A madeira era trazida da Bahia para São Paulo para ser processada e depois enviada para o canteiro de obras. Assim, para minimizar erros, uma maquete em escala 1:1 de um trecho do projeto foi construída em terreno próximo à construtora. Além disso, todas as peças foram dimensionadas a partir dos carros, com tamanho máximo de 9 metros, o que reduziu o custo do frete.

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Detalhes construtivos. Desenhos elaborados pelos autores

Os pilares e a extensa cobertura metálica foram a primeira etapa da obra a ser realizada. A proteção contra tempestades equatoriais e altas temperaturas foi um ponto importante no programa, bem como na fase de construção, protegendo tanto os materiais de trabalho quanto os trabalhadores. A opção pelo uso de tijolos de terra e cimento com terra do canteiro de obras exigiu a instalação de uma pequena olaria no local. Devido à variação da cor natural da terra, foi organizado um sistema de lotes nos tijolos, que foram misturados para evitar diferenças bruscas nas cores das paredes. Para a produção, foram selecionados os trabalhadores com maior habilidade fabril e que produziam em média 1.000 tijolos por dia. A escolha do material, aliada à ventilação cruzada permanente do edifício, garantiu temperaturas amenas nos espaços internos, eliminando a necessidade de dispositivos de refrigeração.

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Vista em perspectiva da construção da morada. A montagem prévia da cobertura permitiu que o canteiro de obra e a construção dos blocos dos dormitórios se desenvolvessem sob abrigo. Elaborado pelos autores
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Planta módulo de dormitórios; Elevação módulo de dormitórios; Aberturas em blocos de adobe, técnica utilizada em casas de caboclos da região; e Painéis de identificação dos quartos confeccionados pela aldeia Canuanã, a partir de grafismos tradicionais. Elaborado pelos autores

A montagem foi realizada em oito meses e finalizada em apenas um ano. Pensando nisso, o canteiro de obras foi planejado com acesso independente, para que não afetasse o cotidiano da escola. Além disso, os tapumes da construção tinham "espaços de espia", permitindo que as crianças acompanhassem a construção a uma distância segura.

A incorporação de tecnologias construtivas locais, como o uso extensivo de varandas, cobogós e paredes de alvenaria de adobe para garantir o conforto térmico, demonstra uma preocupação dos arquitetos não só em propor, mas também em valorizar e aprender com o contexto. Se, por um lado, a construção industrializada gerou uma estrutura estranha em seu entorno (pelo alto detalhamento das peças, pelas características espaciais resultantes e principalmente pela grande escala dos edifícios) foi também o que deu forma a um projeto realizado por muitas mãos.

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Moradias Infantis / Rosenbaum® + Aleph Zero. Foto © Leonardo Finotti

A potência do projeto está no belo e cuidadoso conjunto arquitetônico, mas também, enfaticamente, em tudo que o antecede. Começa com as crianças refletindo criticamente sobre qual é o seu espaço de vida e se baseia no conhecimento prático de quem vai habitá-lo. O diálogo traça pontes imateriais entre as crianças, a escola, o contexto que as cerca, os saberes locais e as tecnologias industriais. O processo de construção colaborativa (tanto teórica quanto material) resulta em um corpo que [e oposto ao estranho, que já nasce apropriado, sendo a materialização das transformações já iniciadas.

Referências bibliográficas

Esse texto faz parte do trabalho de análises de obras produzido para a XXII Bienal Panamericana de Arquitetura de Quito, no ano de 2020. Sob a coordenação e participação das professoras Cristiane Muniz e Marianna Al Assal.

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Sobre este autor
Cita: Alexandre Kok, Caio França, Gabriela Rudge, Lara Girardi, Lia Soares, Maria Clara Calixto, Marina Liesegang, Marina Saboya, Pedro Trama, Tamara Silberfeld e Valentina Kacelnik. "Moradas Infantis em Canuanã: encontro entre arquitetura vernacular e tecnologias industriais " 13 Ago 2022. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/985951/moradas-infantis-em-canuana-encontro-entre-arquitetura-vernacular-e-tecnologias-industriais> ISSN 0719-8906

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