A RUÍNA Arquitetura busca por uma maior consciência socioambiental, bem como a valorização dos materiais enquanto incentiva a reutilização como uma alternativa para a indústria da construção civil. Em sua prática, criam novas possibilidades para materiais recuperados, reduzem a quantidade de resíduos de demolição e, com eles, fornecem materiais de construção com um menor impacto ambiental. Em 2024, o escritório foi selecionado como parte das Melhores Novas Práticas de Arquitetura do ArchDaily por sua atenção ao contexto, visando minimizar o impacto no ambiente construído por meio do reuso eficaz de materiais e resíduos de construção. Sua participação na Trienal de Arquitetura de Sharjah de 2023 mostra como ideias locais podem alcançar reconhecimento global.
Entre exercícios projetuais e experimentais, em aulas ou no canteiro, as arquitetas Julia Peres e Victoria Braga, fundadoras da RUÍNA, focam num processo circular com a intenção de reduzir ao máximo o entulho proveniente da demolição - e com isso reduzir inclusive os custos da obra -, traçando estratégias de reaproveitamento dos materiais de modo que eles retornem à função original ou sejam incorporados a uma nova utilidade. Conversamos com elas para compreender como enxergam a prática arquitetônica sob essa ótica.
Victor Delaqua (ArchDaily): Como vocês enxergam os resíduos de demolição dentro do tópico "o futuro dos materiais de construção"?
Julia Peres e Victoria Braga (RUÍNA): O campo prático da arquitetura na contemporaneidade atravessa majoritariamente pela demolição. Mesmo o próprio ato de construir pressupõe hoje um modelo baseado na desconstituição de um lugar: a exploração intensiva de recursos naturais diversos, com processos predatórios de extração; a sub-utilização dos materiais e construções - na maior parte das vezes, o tempo de utilização dos edifícios e seus materiais é consideravelmente inferior ao seu tempo útil de fato -; e por fim uma destinação pouco ou nada responsável ecologicamente, como se os resíduos acumulados aos milhões de toneladas todos os dias fossem simplesmente desaparecer em algum momento, o que sabemos que não vai acontecer. Esse sistema produtivo linear provou-se absolutamente falho, danoso e já representa uma ameaça latente à sobrevivência no planeta.
Portanto, sem dúvida nos parece imprescindível ao campo da arquitetura assimilar a demolição como uma atividade urgentemente relevante para mobilização de novas ideias e proposições atentas ao tempo que vivemos e às demandas mais latentes dos nossos ecossistemas.
O traço que mais prontamente caracteriza o contexto urbano é a hegemonia de espaços construídos pela sociedade humana - e principalmente a sociedade humana condicionada pela cosmovisão ocidental. Precisamente nesse tipo de espaço em particular, a demolição é totalmente indissociável da arquitetura, pois é ação sem a qual a arquitetura não poderia sequer existir enquanto prática.
Dentro de uma perspectiva de conscientização disso, existe uma ideia muito interessante e necessária de que as cidades compõem as chamadas “minas urbanas”: elas oferecem todos os recursos materiais necessários à sua própria e constante renovação, sem que a arquitetura tenha que recorrer ao modelo linear e de extração de recursos naturais.
Dentro dessa lógica que se baseia na promoção da circularidade dos sistemas produtivos, os ditos “recursos” já estariam à disposição da cidade nela própria, dentro dessa “mina urbana”, cotidianamente.
Nesse sentido, enquanto "recurso" para a constituição de novas tecnologias materiais, a RUÍNA entende que os resíduos de demolição detêm um potencial sem precedentes no que diz respeito às alternativas para processos produtivos cada vez mais circulares, processos criativos mais instigantes, com responsabilidade social e em consonância com a sustentabilidade do planeta.
Vocês podem falar mais sobre a relação de custos, tempo de experimentação e o processo de prototipação de amostras com os materiais de demolição durante uma obra até atingir a definição das soluções técnicas e estéticas mais adequadas?
A reutilização de resíduos da demolição em projeto/obra de imediato reduz gastos com: 1) material (a redução é maior ou menor a depender do tipo de aplicação desses resíduos e quantidades) e 2) gestão do descarte de resíduos (custas de aluguel de caçamba principalmente). Algumas demandas que o reaproveitamento pode exigir em obra são espaço para armazenamento dos materiais e eventualmente a utilização de algum equipamento específico que otimize os processos - o que tem um custo.
O reaproveitamento é prática comum em obras de grande porte (muito mais pela sua dimensão econômica que ecológica) justamente por conta da grande quantidade de materiais e trabalhadores envolvidos, além do acesso a maquinários. Já nas obras de pequeno e médio porte, no geral, pouco ou nada se reaproveita, e são as que mais produzem RDC (resíduos da demolição e construção civil) nas cidades. Há falta de informação e engajamento para a reutilização de materiais em projetos de portes menores: projetos/obras com reuso e reciclagem de materiais frequentemente são estigmatizados por uma determinada estética (da precariedade) ou mesmo acabam sugerindo que seu custo deve ser drasticamente inferior a uma obra convencional. Mas no fim, como em qualquer obra, tudo se resume a contexto e não existem regras pré-determinadas. Uma coisa é certa: dependendo das condições, há potencial para se chegar em um custo drasticamente inferior e os recursos estéticos para se chegar aonde se quer são diversos.
O processo de experimentação e prototipagem é fundamental para encontrar as melhores soluções e compreender até onde é possível chegar em termos práticos com o reaproveitamento. Alguns processos podem ser pensados e realizados antes do contexto da obra, outros não. Isso significa necessariamente que o projeto não se encerra no desenho: deve funcionar como um processo aberto a ajustes, modificações e até mesmo novas soluções durante o processo de execução. Novamente é necessário abandonar uma lógica processual linear (e autoritária) e abraçar um movimento circular, que promova autonomia. Nesse movimento, em escalas maiores ou menores, o tempo do projeto se confunde com tempo de obra e vice-versa.
Os materiais reaproveitados possuem um apelo sustentável e, ao serem únicos, fogem de uma lógica mercadológica na qual se produz um enorme montante do mesmo produto. Além dos casos onde a singularidade é desejada, como escalonar essas produções ou técnicas para atender uma quantidade maior de pessoas?
Uma das grandes contradições da reciclagem é justamente seu escalonamento em indústria global. Fazer chegar um material reciclável distante milhares de quilômetros do local em que será reprocessado - para então tornar-se produto reutilizável - significa seguir por uma lógica não muito diferente dos processos produtivos mais convencionais, cujo resultado já sabemos.
Lançar um olhar atento à ideia de localidade, sem abrir mão da capacidade de operar em rede, parece um caminho alternativo necessário e possível.
Reaproveitar materiais de demolição em obra é um exemplo do que significa operar na menor das escalas locais - o material sequer deixa o lugar em que se encontrava para logo ser reinserido na sua função original ou distinta (caso do projeto de renovação do Apartamento Paraíso). Imagine o alcance da mudança se em toda reforma de pequena ou média escala fosse necessário considerar o reaproveitamento de materiais e resíduos de demolição?
No Brasil o cenário da reciclagem e do reuso em arquitetura é incipiente em todos os sentidos. Não temos uma regulamentação dentro da indústria da construção civil que trate dessas questões de forma efetiva. Mas temos iniciativas como a Arquivo SSA, que é referência e pioneira no assunto, operando em Salvador - BA com desmontagem e reinserção de componentes para reuso em projetos de arquitetura. A criação de um Guia de Políticas Públicas para o Reemprego de Elementos de Arquitetura justamente abre caminho para que essas práticas isoladas e ainda de curto alcance ganhem escala nacional e passem a fazer parte de uma prática ampliada.
No sentido da difusão de reflexões, práticas, de conhecimentos e técnicas, acreditamos que a academia cumpre um papel fundamental na sociedade - sem abster-nos de um olhar crítico, pois essa mesma academia reproduz historicamente classismo, racismo e machismo.
Enquanto espaço institucionalizado de produção do conhecimento científico e, portanto, espaço ao qual as estruturas de poder dão ouvidos mesmo que tardiamente, o ensino talvez seja a melhor ferramenta e a universidade o espaço mais estratégico para que essas práticas alcancem uma quantidade maior de pessoas, uma vez que esses conhecimentos são assimilados e introduzidos nas políticas públicas.
Neste ano a RUÍNA tem construído essa aproximação da prática com a academia por meio de uma disciplina ministrada na FAU Mackenzie intitulada “(Des)construir e Ocupar: o reuso como prática social e propositiva”, em parceria com professores, estudantes e a Ocupação 9 de Julho/MSTC. A metodologia e resultado dos processos desenvolvidos na disciplina foram registrados em uma cartilha de experimentos com elementos construtivos a partir do reuso e reciclagem de materiais.
No ano passado vocês lançaram um catálogo de materiais de construção recuperados em demolições. Como vocês avaliam o resultado desse projeto hoje?
Os catálogos que produzimos fazem parte de uma frente de pesquisa e atuação do escritório chamada RUÍNA Materiais. Essa frente se dedica especialmente à identificação e catalogação de elementos de arquitetura advindos de demolições ou desmontagens e sua gestão para reinserção em projetos nossos, de terceiros ou mesmo diretamente com usuários.
Avaliamos o resultado dos catálogos como ferramenta de difusão e a prática da reinserção como muito positiva, pois possibilitou o contato com uma rede de arquitetes que trabalham com obra e se deparam cotidianamente com a quantidade de material que é convencionalmente descartado, possibilitando uma conscientização de que existem alternativas e que elas estão ao nosso alcance. Alguns dos escritórios de arquitetura e autônomos que buscaram materiais catalogados pela RUÍNA Materiais inclusive assimilaram essa outra perspectiva de processo de projeto (inversão da ordem projetual), em que se considera os elementos construtivos selecionados para utilização para então adaptar o desenho a eles.
Vocês abordam o reuso também como uma prática social e propositiva, como as questões de reciclagem atravessam essas camadas?
A arquitetura é uma ciência social aplicada. Qualquer projeto de arquitetura é necessariamente social - deveria ser - no sentido que atua no campo do espaço habitado para sociabilidade, para seres humanos e não-humanos. Entender o reuso e a reciclagem como perspectivas e práticas que fazem parte da atuação da arquitetura necessariamente perpassa compreender seu aspecto social inerente.
Assim como no Brasil, grande parte do Sul Global, estigmatizado como “subdesenvolvido”, vive uma realidade em que o reaproveitamento não é apenas uma alternativa, mas uma necessidade em resposta às limitações socioeconômicas latentes. As mazelas que atingem nosso país e tantos outros são produto direto do desenvolvimento em escala global, e não sintoma de um suposto subdesenvolvimento. Portanto, a possibilidade de superação desse contexto está em promover mudanças radicais na forma como entendemos o que é desenvolvimento. O lugar em que queremos chegar apropria-se dessa constatação para fomentar novas tecnologias materiais, gerar autonomia em todos os contextos socioeconômicos e principalmente naqueles em que há falta de acesso à informação e meios de produção, evidenciando que as matérias-primas existem e não podem mais depender da extração dos recursos naturais do planeta. No campo da arquitetura, é preciso lembrar que tudo o que aprendemos veio das ruínas: elas formam nossa percepção, pois são nossos recursos epistemológicos mais importantes. A prática do reuso pode tomar o conceito de ruína como ferramenta para resgatar a memória material e imaterial: pensar e agir no presente, reconhecendo o passado, para garantir a autoconsciência e um futuro sustentável.