Em 7 de junho de 2022 foi lançado o podcast A Mulher da Casa Abandonada, que narra a história real de uma mulher da aristocracia brasileira que escapou de um julgamento nos Estados Unidos nos anos 2000, causando grande comoção ao longo dos quase 2 meses em que os episódios foram lançados. Dos elementos que compõem a narrativa, a casa e o bairro acabaram por se tornar importantes coadjuvantes da história, e de sua repercussão, ilustrando e escancarando como nossa sociedade, e território, são moldados a partir do racismo estrutural.
O podcast idealizado, escrito e apresentado por Chico Felitti conta a história de Margarida Bonetti uma mulher branca herdeira da aristocracia brasileira que despertava curiosidade em seus vizinhos do bairro do higienópolis ao residir em um antigo palacete abandonado. No decorrer da narrativa, descobre-se que Margarida é foragida procurada pelo FBI por ter sido acusada de agressão e de manter uma mulher negra em trabalho análogo à escravidão em território estadunidense. Segundo consta em documentos oficiais, o crime foi julgado nos Estados Unidos e o marido de Margarida foi condenado, preso, cumpriu pena e pagou indenização à vítima, enquanto Margarida fugiu para o Brasil e se escondeu no palacete desde então.
Desde que foi lançado, o podcast tem mais de 7 milhões de downloads em suas diferentes redes de divulgação, tornando-se o maior do Brasil e atingindo altos números também fora do país em lugares como Irlanda, Austrália, Reino Unido e Estados Unidos. Ao mesmo tempo, para aqueles que passam por São Paulo, o bairro Higienópolis e as redondezas da Rua Piauí se tornaram ponto turístico. O enredo do podcast desperta um questionamento primário: como é possível que uma criminosa procurada internacionalmente resida em uma região tão central e valorizada? O estranhamento do público reflete a estrutura racista da nossa sociedade, que também está escancarada no território.
O bairro Higienópolis em São Paulo é, historicamente, um bairro projetado e construído para a elite. Da colonização portuguesa até o século XVIII, os atuais bairros de Higienópolis, Pacaembu e Perdizes compreendiam a "Sesmaria do Pacaembu" de propriedade dos jesuítas. Com a expulsão dos jesuítas, o território começou a ser loteado e vendido às famílias da aristocracia da época, que construíram palacetes inspirados no modo de vida da nobreza europeia, muitas vezes trazendo o projeto e os materiais de construção da Europa. Até hoje, as famílias desse período seguem presentes no nosso imaginário, sendo homenageadas, como é o caso da Avenida Angélica e as Ruas Maria Antônia e Dona Veridiana, que são homenagens às filhas de barões paulistas.
Com o Ciclo do Café, momento de crescimento econômico do estado de São Paulo apoiado na exploração de mão de obra majoritariamente negra, o bairro cresceu, sempre ocupado pela camada mais alta da sociedade. Já se fundindo ao que seria o tecido urbano da época, no final do século XIX, o bairro Higienópolis foi o primeiro da cidade a receber redes de abastecimento de água e de coleta de esgoto. Ao longo do século XX, a diáspora rural trouxe ao bairro mais aristocratas, incentivando a verticalização da região. O processo de verticalização do bairro envolveu a demolição de muitos palacetes e o envolvimento de importantes arquitetos, especialmente durante os anos da arquitetura moderna, com nomes como Vilanova Artigas, Franz Heep e Artacho Jurado, responsáveis por importantes projetos modernos de apartamentos.
Assim, o bairro nasceu e cresceu ocupado pela elite aristocrata paulista, com forte influência da cultura europeia, apoiada em uma estrutura social que, primeiramente era escravagista e depois se desenvolveu para a lógica da servidão. Do mesmo modo, a arquitetura respondeu a essas transformações sociais, saindo da senzala, passando pela edícula e chegando até os quartos e dependências dos empregados nos apartamentos, algo comum na região. Os imponentes edifícios de Higienópolis, bem como os casarões que resistiram à verticalização, são evidência dessa lógica social, que transborda para o tecido urbano.
Margarida Bonetti residia justamente em meio às evidências dessa sociedade escravagista, em um palacete da década de 1950, com 20 cômodos e 300 metros quadrados de área construída, pertencente à família do Barão da Bocaina, seu avô. Um palacete que, assim como tantos outros, só consegue ter esse tamanho e essa estrutura se sustentado a partir da exploração da mão de obra de empregados. A compreensão da história do bairro de Higienópolis, e de tantos outros bairros ricos das cidades brasileiras, faz com que histórias como a de Margarida não sejam surpreendentes, pois, tanto o tecido urbano, quanto as classes dominantes são evidência de uma organização social que tem como origem a escravidão dos negros e dos povos originários, e que não foi rompida desde então.
Ao mesmo tempo, o meio construído, a arquitetura, tem potencial para servir como prova concreta, evidência física da história e dos processos sociais. A reflexão a partir dela, porém, só é possível se houver uma mudança social que encare o racismo enquanto problema estrutural. Na prática, a cidade guarda inúmeras cicatrizes da escravidão, valorizando edifícios e palacetes enquanto bens patrimoniais, negligenciando toda a exploração humana envolvida para sua existência. Curiosamente, a história de uma foragida do FBI faz lembrar que é preciso mudar nossa leitura dos edifícios históricos e redirecionar as narrativas da história nacional em busca de reparação.